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...“E o gigante acordou”. Acordou?

26 de junho de 2013
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Ao sair às ruas durante as manifestações, foi uma grata surpresa encontrar pessoas que nunca haviam se posicionado com relação à causa alguma empunhando uma bandeira. Aquelas que faziam o coro da “indignação é uma mosca sem asas, não ultrapassa as janelas de nossas casas(1)”….estavam marcando presença. Protestando.

Encontrei pessoas que aplaudiram a “cura gay”, mas estavam lá. Vi pessoas que se posicionam contra o casamento gay, contra a mulher ser dona do próprio corpo, contra às vezes nem elas sabem o que; pessoas que seguem o coro do “caminhando, depredando e seguindo a canção(2)”, pois depredaram o restaurante universitário no protesto contra o aumento do preço da refeição para sobrar mais dinheiro para a droga do final da tarde, alimentando um sistema que elas mesmas criticam; pessoas com preconceito de raça, de classe social.  Encontrei pessoas que debocharam de um grupo de intercambistas indianos que estavam comigo em certa ocasião, devido aos seus costumes e aparência bem diferentes dos nossos. Pessoas que até ontem estavam vibrando com a copa e as olimpíadas aqui no Brasil também estavam nas ruas, engrossando o coro das reivindicações. Com toda a óbvia incoerência entre suas atitudes (sob o meu ponto de vista) e mesmo que por vezes parecessem “indecisos cordões(2)”, encontrar essas pessoas foi bom. Afinal, a mobilização de cada um é legítima face ao desfile de mandos e desmandos que oprimem a cada dia.

Encontrei pessoas que anteriormente já havia encontrado em certos embates de ideias. Pessoas que tentam a todo momento, desmoralizar a causa animalista abolicionista, hipnotizadas por argumentos vazios, porém, apelativos do senso comum irrefletido. Afinal, é mais confortável adotar uma postura de cegueira seletiva com relação ao sofrimento animal presente em certos hábitos, do que de fato, assumir sua responsabilidade e participação na crueldade para com os animais que não tem voz para protestar. Levantar a bandeira da causa animalista não é nada fácil dentro da atual lógica ensandecidamente consumista. Dá trabalho e consome massa cinzenta. Enfim, essas pessoas também estavam lá.

Entre a massa heterogênea, encontrei também os de sempre. Em sua maioria, estudantes que sempre estiveram na vanguarda dos movimentos sérios e pacíficos (mas nada passivos). Encontrei colegas professores e professoras, sempre envolvidos em discussões políticas e alertas aos mandos e desmandos das entrelinhas. Amigos ativistas que estão sempre no “front” das manifestações mais arrojadas (o que, confesso, não é o meu caso) e uns poucos colegas que muitas vezes, mesmo solitários, com sol ou com chuva, sempre saíram às ruas, para chamar a atenção para causas que vão além do próprio umbigo, como a animalista abolicionista. Tem também as pessoas que “não vi”. Mas dessas, não vou comentar nada. Nem vou falar sobre alguns atos de apologia ao ódio e à violência. Todos sabemos o quanto isso representa em termos de retrocesso.

Acompanhei na mídia as notícias. Todos pudemos perceber a grandeza da maioria dos atos que se multiplicaram pelo país.

Tudo isso nos coloca a pensar, entre outras coisas, sobre qual a linha tênue que fez essas pessoas que nunca empunharam bandeira nenhuma, saírem do comodismo e irem às ruas. Não é difícil fazer relação entre a causa que mexe com o próprio umbigo e o número de pessoas que compõe as mobilizações. Não estou dizendo que o movimento não é legítimo, longe disso. Apenas estou dizendo que as mobilizações demonstram que quanto mais longe a causa está do seu umbigo, mais difícil empunhar uma bandeira. É mais difícil levantar a bandeira de uma causa que não atinge diretamente os interesses de quem protesta.

Por isso que, nesses dias de protestos pelo Brasil e mundo afora, quando dizem que “o gigante acordou”, impossível não lembrar dos que nunca dormiram. Entre estes, os animalistas abolicionistas. Pessoas que enxergam a relação entre exploração de animais humanos e não humanos. Pessoas que tentam ser a voz daqueles que seguem silenciosa e cotidianamente resignados, a marcha fúnebre da crueldade. Daqueles animais que sequer são considerados em quaisquer decisões de cunho político nesse país a não ser pelo viés da exploração de seus corpos e dos produtos de seus corpos. Pessoas que tentam ser a voz dos animais que estão nos laboratórios, nos estábulos, nos pet shops, nas granjas, nos zoológicos, nos lares (sim, nos lares de pessoas que concebem animais como objetos, brinquedinhos sem alma) e etc. Seres que seguem uma marcha silenciosa rumo à degradação de sua identidade, a mercê das decisões de outros. Animais objetos de negociação e lucro sem direito de amamentar, prover suas crias, viver com seus iguais. Privados dos cuidados maternos e de qualquer dignidade que lhe assegure uma existência suportável. Animais simplesmente invisíveis à grande massa. E quem protesta a favor deles, pode ser alvo de rótulos de senso comum. Mas que pouco ou nada dizem para quem sabe, de fato, a que veio.

Sempre estivemos senão nas ruas, em outros espaços de discussão como universidades e escolas, ainda que sozinhos. Sempre sabotamos, através de nossas escolhas, empresas, produtos e serviços que envolvam uso (com sofrimento ou não) de animais; sempre estivemos alerta para ler as entrelinhas das propostas bem estaristas que dão a falsa impressão à grande massa de que ela pode dormir sem culpa; sempre repudiamos alguns meios de comunicação, parceiros e legitimadores da exploração de animais humanos e não humanos. Sempre estivemos presentes, mesmo que em minoria, nas discussões decisivas de cunho político. Muitas vezes, mesmo sendo voto vencido, não somos inexpressivos ou inexpressivas. E ouso afirmar que aos poucos o movimento vem conquistando mais adeptos e adeptas através da importância que representa para todos, alienados, ou não, a causa animalista abolicionista, pois nas raízes da exploração dos animais não humanos, residem muitas mazelas com conseqüências desastrosas para os não humanos. Fazer as conexões é importante. E muito. Mas o mais importante é justificar as mobilizações animalistas abolicionistas pelo viés biocêntrico, não antropocêntrico e utilitarista.

Não estou colocando os animalistas abolicionistas acima do bem e do mal. E também não estou falando dos que se dizem animalistas abolicionistas mas estão apenas empolgados com o “modismo vegan”. Mesmo porque essa escolha pessoal vai além de modismos. Nem dos adeptos e adeptas das “segundas sem carne” e dos “bem estarismos” da vida. Estes sucumbem ao primeiro embate. Falo dos animalistas abolicionistas por opção consciente e que protagonizam movimentos abraçando outras causas além do abolicionismo animal, porque entendem e conseguem fazer a conexão com relação às causas da exploração de animais humanos e não humanos. E cotidianamente protestam. Seja indo às ruas, escrevendo, pesquisando, denunciando ou ensinando nas escolas, retirando as máscaras.

“O gigante acordou” mas alguns animalistas abolicionistas nunca dormiram! Alguns integrantes do MST nunca dormiram, alguns movimentos indígenas nunca dormiram, movimento GLSBTTI nunca dormiu. Uma pequena parcela do movimento estudantil sério nunca dormiu. E tantos outros que precisam sair às ruas para serem vistos. Bem como os simpatizantes de todas essas causas. Nem sempre ouvidos porque a grande “massa”, ou o “gigante”, permanece dormindo para questões que não dizem respeito ao próprio umbigo. Essas outras causas, os animalistas abolicionistas também abraçam. São sempre os mesmos que estão nas manifestações reivindicando pelos animais humanos e não humanos também.

Muito se culpa “a mídia” pela alienação coletiva. Qual mídia? Quem faz a mídia? Quem tem o poder de escolha? Segundo Bujes, (2009), estamos em uma espécie de vertigem que pulveriza as relações, desenvolve o individualismo e faz do espaço midiático um espelho.  Mas a mídia, sozinha, não poderia transmitir verticalmente as programações e seus conteúdos, contribuindo para a alienação da massa. Se o faz, é porque encontra um público receptivo. Canclini (2010) alerta que os processos de consumo são muito mais complexos do que uma relação entre meios manipuladores e dóceis audiências. Estudos sobre comunicação de massa tem demonstrado que a hegemonia cultural não acontece somente em ações verticais de emissor para receptores, mas é mediada por elementos como família, bairro, grupo de trabalho e etc. Parece óbvio mas basta olhar à volta. Todos são produtos do meio em que vivem. Poucos conseguem subverter a letargia coletiva.

Subvertendo a “ordem”, as pessoas finalmente aderiram em um número expressivo, às várias manifestações. É emocionante realmente constatar que esse levante teve a adesão de uma significativa parte do “gigante”. Estudantes, na sua maioria.  Mas foram às ruas, senhoras e senhores, a intelectualidade, artistas globais e outros tais. Até pais com suas crianças.

Mas impossível não constatar também, que os estádios continuam cheios durante os jogos da copa das confederações, que algumas mídias e alguns discursos ainda seguem no sentido de fazer de conta que nada está acontecendo. Há um esforço para conter esse estado de mobilização e fazer a população voltar ao estado de hipnose coletiva. Há que se manter alerta também a manifestantes oportunistas que trazem subentendido no pacote de suas reivindicações, o enorme desejo de virar celebridade ou pleitear um cargo público como objetivos maiores. Há exemplos pipocando por aí. E ha manifestantes que, sem embasamento algum acabam errando feio o alvo de suas críticas. Que o foco não se perca, que a energia não acabe e que a outra parte do gigante desperte. Inclusive para outras questões que não dizem respeito só ao próprio umbigo.
Não podemos esquecer que grande parte do gigante permanece hipnotizada. Dormindo, sim, mas em um berço que não é esplêndido. Ele é feito de sangue, corrupção, privação de direitos e usurpação de liberdade de todos os animais. Humanos e não humanos.

Referências:

BUJES, Maria Isabel. Sobre outdoors ambulantes ou De como transformamos o que somos. In: a Educação na Cultura  da Mídia e do Consumo. Marisa Costa (org.). Rio de Janeiro: Lamparina Editora, 2009.

CANCLINI, Néstor Garcia. Consumidores e cidadãos.  Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010
Referências às canções:

1 ROSA, Samuel e AMARAL, CHICO.  Indignação. 1992. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=jDdjsa-ay-s

2 VANDRÉ, Geraldo. Pra não dizer que não falei das flores. 1968. Hino de resistência estudantil e civil. Depois do Festival Internacional da canção, teve sua execução proibida na ditadura militar. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=wkEGNgib2Yw No texto, a menção a “caminhando, depredando e seguindo a canção”, faz alusão a “caminhando, cantando e seguindo a canção”, esse sim, trecho da música. Outra menção diz respeito a “indecisos cordões”.

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