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A hora de abrir a porta da geladeira ou 'Animais-figurinhas-raras'

2 de março de 2012
3 min. de leitura
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“É chegada a hora da reeducação de alguém / Do Pai, do Filho, do Espírito Santo / Amém / O certo é louco tomar eletrochoque / O certo é saber que o certo é certo / O macho adulto branco sempre no comando”
(Caetano Veloso, em ‘O Estrangeiro’)

Então as pessoas aprenderam na tenra infância – e depois, ao longo da vida, são incapazes de contestar – que tudo está compartimentado, que cada certeza vem com uma etiqueta própria, a tag correspondente na indexação da vida. Ai do aluno que não desenhar corretamente a pirâmide alimentar na prova de Ciências, com porquinho, prato de arroz e feijão, frutas, manteiga e tal. Tudo de forma hierárquica à moda da escola-igreja-família. Aquela é a resposta certa, e nem todos têm um rap na ponta da língua para tentar, ao menos tentar, questionar o que está vindo de cima, containers de decretos chovendo sobre nossas cabeças.

Nisso, dizer que não consome produtos de origem animal, não usa sapato de couro, não dá chinelada em barata, não faz aquilo outro, é bater de frente com um pensamento já bem cimentado na cabeça da maioria. Que, vá lá, acha um horror que alguém mate um cachorrinho a chutes ou dê arpoadas em uma baleia, tadinha, mas segue a vida no trator eterno das certezas. Vai deixando suas marcas por onde passa, e a dor é nos outros, nos inferiores, menores, indefesos e domesticados, um horizonte de seres invisíveis.

De outra sorte, essas certezas engatilhadas e prontas para disparar é que colocam alguns animais – e bota ‘alguns’ nisso – como figurinhas raras a completar o álbum do conservacionista, o filatelista ambiental, o numismata da natureza, o que se preocupa com a biodiversidade como se fosse TOC. Aquela coisa de ‘preciso tocar em cada poste pelo qual passar’, mas aplicado a não humanos – exceto os da pecuária, que são saboreados com bom gosto e sem peso algum na consciência, na hora de palitar os dentes e chupar discretamente os fiapinhos.

O que traz a desgraça do nosso amigo peixe, ao qual se aplicam as mais risíveis lendas urbanas – ‘não sente dor’, ‘tem consciência coletiva’, ‘não é carne, é fruto do mar’ – para que o cidadão autodeclarado consciente e conhecedor do mundo possa comer aquele filezinho sem grilo, com umas gotas de limão por cima, e talvez uma casquinha de siri como acepipe. A raiz bíblica, suponho, que colocou o nosso amigo peixe nessa situação ímpar, explicita o caráter de autossugestão necessário para que nenhum sininho dispare na consciência de quem se refestela, à mesa, com dor, escravidão e/ou morte de outros animais, lá longe e fora do alcance dos sentidos.

Hierarquicamente abaixo de si, claro.

E no momento em que um monólogo/diálogo se inicia visando ao esclarecimento de pontos como esse – de como os não humanos estão fora do círculo de significação moral, como até outros humanos estiveram, historicamente – a reação das pessoas ainda vai do estranhamento incrédulo ao deboche desconcertado, como se estivesse diante de um doido, em pleno desvario, soprando bolhas de sabão de informações absurdas. Tudo é normal para quem não se habitua a questionar, sendo anormal a pergunta fora de hora, a opinião não desenhada com régua e compasso. E essa fórmula toda que o sistema lhe apresenta é algo natural, tradicional, mesmo que azeitada com a opressão de bilhões – somente em Corumbá/MS são 2 milhões de ‘cabeças’ de gado, aguardando o apetite de famílias humanas, a hora de abrir a porta da geladeira.

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