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Falácia de apelo à relevância econômica

8 de março de 2012
8 min. de leitura
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Entre pessoas que defendem ideias e ações de exploração violenta de animais humanos e não humanos e do meio ambiente como um todo – como o agronegócio, a pecuária, o desenvolvimentismo sem sustentabilidade etc. –, é quase que imperativo justificá-las com sua importância econômica. Por mais cruéis e antiéticas que sejam essas atividades, tornam-se aceitáveis para seus defensores apenas pelo fato de contribuírem para a economia da região, do país e do mundo.

A esse pensamento, que possui um sério problema de coerência lógica, chamo de falácia de apelo à relevância econômica ou Argumentum ad Oeconomicum. Consiste na fórmula:

X tem grande relevância econômica, logo X é bom.

Que pode variar sob a forma de:

X tem grande relevância econômica, logo X é válido/certo/ético.
X tem grande relevância econômica, logo X deve ser aceito.
X tem grande relevância econômica, logo criticar X é um absurdo.
X tem grande relevância econômica, logo não é aceitável condenar/proibir X.

Isso é uma falácia lógica porque relevância econômica e ética não são intrinsecamente ligados. Não é porque algo é importante para a economia que deve ser plenamente tolerado e sua existência louvada. E o sistema socioeconômico de um país pode modificar-se de modo a sobreviver à supressão legal e social de uma atividade que feria preceitos éticos e superar a abolição dela.

Pode-se considerar o Argumentum ad Oeconomicum semelhante ao apelo à antiguidade. Enquanto neste último o caráter de antigo e tradicional de uma ação ou ideia tenta justificar a validade ética ou argumentativa dela, o primeiro faz o mesmo em relação ao caráter de economicamente significativo dessa ação ou ideia para a unidade geográfica (local, região, país ou planeta).

A grande prova histórica da inexistência de relações inerentes entre fator econômico e aceitabilidade moral é a escravidão humana. Por milênios ela foi a espinha dorsal da economia de centenas de povos e nações ao redor do planeta. Foi “necessário” tratar seres humanos como mercadoria e propriedade de outras pessoas, que ocupavam níveis elevados na hierarquia social, e lhes aplicar privações e violência física no intento de forçá-los ao trabalho involuntário e compulsório, para que a economia dessas civilizações se mantivesse em pleno funcionamento.

Assim foi na Grécia Antiga, na Roma Antiga, em muitos povos da África, em centenas de outros povos, na Israel bíblica (supondo que tenha existido como a Bíblia descreve) e também no Brasil das épocas colonial e imperial. No caso do nosso país, os escravos, fossem índios sequestrados, negros arrancados de sua terra natal ou descendentes de africanos, eram considerados “as mãos e os pés do senhor de engenho” e também eram o motor daquela agrária economia brasileira. E a violência física era, digamos, essencial para a manutenção do ritmo de produção, à base das chicotadas, do uso de algemas, dos castigos corporais em pelourinhos e de outros meios violentos.

Por séculos afirmou-se que, sem escravidão, a colônia brasileira não andaria. O mesmo se aplicava ao Império, que só viveu, decadentemente, um ano e meio sem a escravatura legalizada. E provavelmente a importância econômica foi o argumento mais forte usado pelos brasileiros opositores do movimento abolicionista humano dos séculos 18 e 19 – e dedutivelmente em todo o mundo.

Estava claro, para os abolicionistas, que o fator econômico não justificava eticamente que se tratasse seres humanos como coisas que podiam ser comercializadas e controladas à base de violência. Defendia-se também, com razão, que a economia de outros países sobreviveu à abolição de regimes escravocratas substituindo-os por trabalho assalariado – então longe do ideal de dignidade e igualdade entre as pessoas mas desprovido dos problemas ético-morais da escravidão.

Provava-se assim que justificar moralmente uma ação por ela ter relevância econômica era usar uma falácia lógica. Mostrou-se que economia não está acima dos Direitos Humanos, da dignidade, da Ética.

Porém, ainda não caiu a ficha para os usuários das mais difundidas (no Brasil) versões modernas do Argumentum ad Oeconomicum – os defensores do agronegócio, da exploração animal dotada de fins lucrativos e do desenvolvimentismo. Abaixo descrevo as três:

a) Agronegócio: Seus defensores argumentam que o modelo agrícola dominante baseado na monocultura de grandes extensões e na pecuária de larga escala é essencial para a economia brasileira, o que faz sentido se consideramos que ainda hoje ele mantém um enorme peso econômico positivo – “a participação do agronegócio no Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro foi de 22,4% em 2010, sendo responsável por 37% das exportações e 1/3 dos empregos formais”, segundo levantamento da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil. Também é defendido que a atividade é responsável por uma grande parcela dos alimentos consumidos internamente pelos brasileiros, especialmente em se tratando de certos alimentos de origem animal – como a carne bovina.

O argumento acaba, no entanto, não respondendo por que se deve tolerar, legal e socialmente, as diversas ações espúrias usadas por parte significativa da elite desse setor: trabalho semiescravo; intimidação e assassinato de militantes ambientalistas e pró-reforma agrária atuantes na localidade; grilagem de terras; falsificação de documentos; corrupção de autoridades jurídicas e políticas locais; coronelismo e patrimonialismo; uso de poder político para inibir avanços e causar retrocessos em legislações ligadas aos direitos trabalhistas, à proteção animal, à sustentabilidade, preservação e fiscalização ambientais, ao uso de agrotóxicos, etc.; violência física explícita, uso de hormônios, confinamento e outros abusos contra animais “de criação”; entre outros.

b) Pecuária, rodeios, vaquejadas etc.: Um dos argumentos mais usados por opositores dos Direitos Animais é o de que a pecuária e atividades de entretenimento correlatas (no Brasil, rodeios, vaquejadas e corridas forçadas de animais) compõem parte altamente significativa da economia rural local, regional, nacional e mundial. Segundo dizem, se tais atividades forem criminalizadas por uma futura lei de libertação animal, a economia rural vai parar e muitos trabalhadores e empresários ficarão sem fonte de renda.

Essa alegação acaba dando a ideia de que, simplesmente por ser economicamente relevante, a exploração animal é moralmente certa e deve ser aceita e perpetuada. Tenta justificar a violência contra animais não humanos, muitas vezes física e explícita, com o pretexto da economia. Mas não percebe o defensor que está repetindo a mesma falácia dos seus ancestrais das antigas fazendas e engenhos: defendendo que a escravidão é boa e certa porque movimenta a economia do país – variando apenas a espécie escravizada – e colocando o incremento das (extremamente concentradas) riquezas do país acima do direito de outros de não ser oprimido, de ter sua dignidade intrínseca reconhecida perante toda a sociedade.

Em outras palavras, quem defende que a pecuária, os rodeios, as vaquejadas e as corridas forçadas de animais devem continuar existindo porque rendem dinheiro à coletividade, está necessariamente defendendo que, em nome do dinheiro e da nação, os animais devem continuar escravos do ser humano, dominados por um sistema de opressão, sujeitos a todas as formas de violência proporcionadas por ele, tratados como mercadorias, e todas as suas semelhanças à escravidão humana devem ser ignoradas ou aceitas.

c) Desenvolvimentismo sem preocupação ambiental: Empreendimentos como o Complexo Industrial-Portuário de Suape e a Usina Hidrelétrica de Belo Monte, que só vêm à existência graças a intensiva destruição ambiental e opressão cultural (respectivamente das comunidades tradicionais que habitavam o estuário do Rio Ipojuca e dos indígenas que habitam as margens do Rio Xingu), são apaixonadamente defendidas pelos simpatizantes do desenvolvimentismo. O argumento mestre, como de se esperar, é a alta importância econômica dessas construções para a região e para o país.

Segundo eles, Suape é a menina-dos-olhos do crescimento econômico de Pernambuco, Belo Monte é a garantia da continuação do desenvolvimento brasileiro nas próximas décadas, construir indústrias e fazendas sobre ecossistemas é “necessário para que o país cresça”, o sacrifício ambiental é um “mal necessário” para o bem dos brasileiros, e assim por diante.

Assim como nos outros dois casos, a economia é colocada acima do bem e do mal, da Ética, do respeito aos seres viventes e até mesmo dos Direitos Humanos. Não lhes importa se Belo Monte irá causar danos irreversíveis às culturas indígenas do Xingu e às comunidades ribeirinhas não indígenas e destruir mais de 500km² de floresta amazônica; se Suape já destruiu cerca da metade dos mangues, restingas e fragmentos de mata atlântica do estuário do Ipojuca e vai destruir (e poluir) mais no futuro; se o Código Florestal ruralista, também defendido por grande parte dos desenvolvimentistas, será responsável pela destruição de extensões inimagináveis de biomas e pela piora da qualidade de vida dos próprios brasileiros que seriam supostamente “beneficiados” pelo “desenvolvimento” proporcionado…

Em suma, não importa aos defensores desse modelo de “desenvolvimento” se o empreendimento terá um impacto ambiental tão grave que, em última análise, colocará em risco a vida até deles próprios. Destruir o meio ambiente e desalojar comunidades tradicionais para eles é “bom” apenas porque tem elevada relevância para a economia da região ou do país.

***

Não é difícil identificar o apelo à relevância econômica e em que temas ele está mais presente. Espero que, com este artigo, os defensores dos animais, do meio ambiente e de outras causas progressistas possam dizer perante usuários dessa argumentação que defender atos criminosos e imorais só porque “são importantes para a economia” é uma falácia lógica e associar positivamente economia e aceitabilidade ética é algo logicamente frágil, senão inválido.

Vale dizer que um dos pilares que sustentam a argumentação reacionária, em qualquer assunto, é o conjunto das falácias lógicas – apelo à antiguidade, Ad Populum, Ad Baculum, falsa dicotomia, falsa analogia, falácia do espantalho etc. E o Argumentum ad Oeconomicum se encaixa muito bem nesse conjunto. Assim sendo, o conservadorismo, argumentativamente falando, não consegue se manter de pé por muito tempo diante das refutações vindas dos defensores de ideias progressistas, ligadas ao respeito aos direitos e à extensão dos mesmos a mais sujeitos morais (ecossistemas, animais não humanos, minorias humanas etc.).

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