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Vaquejada: a essência de um "esporte" que explora animais

4 de março de 2012
14 min. de leitura
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Introdução

Foto: reprodução blog Dimas Santos

Ela ainda não é muito conhecida no restante do Brasil, mas é uma tradição muito popular no Nordeste, e se estende também a algumas cidades de outras regiões. “Valeu boi” é o bordão mais conhecido que se usa nela. Ainda mais óbvia do que no rodeio é a forma como o lado dos animais é desconsiderado, a exploração e agressão contra eles. Falo da vaquejada, o segundo grande “esporte” de uso de animais no Brasil.

Este artigo pretende mostrar ao país o que está acontecendo em centenas de pistas-arenas da região Nordeste e, em menor frequência, de outras regiões, à revelia do olhar da maioria dos defensores animais. Os detalhes mais importantes – regras, violações éticas e violências explícitas – de um “esporte” que, assim como o rodeio, alterna violência contra animais na arena e música popular num palco adjacente mas, ao contrário daquele, permanece impune, desimpedido e com muito pouca oposição.

O que é a vaquejada? E quais são suas regras básicas?

A vaquejada é uma atividade recreativo-competitiva, considerada por seus admiradores um “esporte”, surgida no Nordeste, que consiste centralmente em fazer dois vaqueiros a cavalo perseguirem um boi, emparelhá-lo com os cavalos e conduzi-lo a uma área-objetivo, entre duas linhas paralelas de cal, onde o derrubam. A perseguição e derrubada se dá numa pista-arena de areia não tão fofa e não tão dura, tendo a área demarcada pelas faixas de cal 10 metros de comprimento.

Após a derrubada, um juiz arbitra sobre o resultado da derrubada do boi. Se este, enquanto tombava, ficou por um instante com as quatro patas voltadas para o céu, o juiz declara ao público “Valeu boi!”, sinal de que a dupla de vaqueiros ganhou pontos. Se o boi não jogou as patas para cima, ele declara “Zero boi!”, e a dupla não pontua. [1]

Cada evento dura três dias – sendo o primeiro o dia de reconhecimento da pista e treinamento – e envolve em média a concorrência de 400 duplas de vaqueiros. Cada dupla persegue e derruba três bois por dia, sendo explorados geralmente bois de tamanho e peso quase iguais para que a disputa entre as duplas não seja desigual. É dada premiação dos primeiros até os vigésimos colocados. [2] E envolve-se também muita música, com bandas de “forró eletrônico”, forró tradicional e também de outros estilos, como axé.

Foto: reprodução Midiacountry

Um “esporte” pautado pela violência e pela escravidão

Não é sequer necessário ler laudos científicos ou denúncias de ONGs defensoras dos animais para saber que a vaquejada é essencialmente uma atividade que explora e violenta animais. Basta assistir a uma única competição para ver que a violência ali é algo praticamente óbvio, muito embora seja tornada uma violência “aceitável” pela sociedade regional, a qual hoje tem uma grande dependência socioeconômica da pecuária.

O ato de fazer animais de natureza pacata (bois) correrem, persegui-los e derrubá-los no chão como se fossem brinquedos já é em si uma forma de tratá-los como coisas e agredi-los. É fácil chegar a essa conclusão se imaginariamente colocarmos um ser humano no lugar do boi. Uma pessoa de cabelo longo que, depois de ter sido provavelmente incitada ao pânico no brete, corre desesperadamente dos seus algozes e passa a ser perseguida por dois vaqueiros a cavalo ou a pé. Sente um medo duplo: dos breteiros e dos vaqueiros. Até que é puxada pelo cabelo e, derrubada, rola no chão, sentindo a dor da queda e aquilo de que tinha medo concretizado – a violência.

E isso sem falar na exploração também dos cavalos. Por mais que sejam supostamente tratados como “irmãos” antes e depois da competição da vaquejada, no momento da gincana eles são tratados como nada mais do que automóveis, controlados por uma série de instrumentos – como “professora”, rédeas, cabresto etc. – e incitados à alta velocidade. É um agravante o fato de que às vezes são usados açoites e esporas para incitar o cavalo a continuar correndo. [3]

Tratar dessa forma animais como objetos acaba tendo, seja intencionalmente ou contra a vontade dos organizadores da atividade, implicações sérias, de machucar de verdade os animais. Um exemplo de como a violência explícita ante arena de fato faz parte dos procedimentos da vaquejada é o relato dos ativistas Gabriela Toledo e Carlos Rosolen, da ONG Projeto Esperança Animal, sobre uma vaquejada que aconteceu em Cotia/SP:

Chegamos perto do brete. Diversos animais misturados e com aparência assustada. Um vaqueiro começou a “tocá-los com um pedaço de pau” para a fila que daria acesso para a arena. O espaço apertado permitia apenas um boi por vez. Ali os animais eram avaliados. Quando tinham chifres, seus chifres eram serrados com serrote. Muitos chifres sangravam. O que chamou a atenção foi a agressividade com que os vaqueiros amarravam esses animais para poder serrar a ponta de seus chifres. Alguns se debatiam, caiam no chão. Outros tentavam pular a porteira que dava acesso à arena e quando isso ocorria os vaqueiros batiam com pedaços de pau em suas cabeças. Mais de 15 animais passaram por esse procedimento. Houve situações em que os animais tiveram suas patas presas entre as madeiras do corredor da arena e por pouco não tiveram suas patas quebradas.

Quando a porteira era aberta os animais saiam em disparada batendo suas patas, cabeça, peito na porteira, pois ela era muito estreita. Houve casos em que os vaqueiros fecham a porteira na cara dos animais ou no meio do corpo e sempre com muita agressividade.

Não havia fiscais nem veterinários presentes no local.

Investigando o evento descobrimos que muitos animais já morreram na arena ao bater a cabeça nas madeiras. Outros tiveram seus rabos arrancados durante a prova, pois os vaqueiros estavam utilizando uma luva não adequada. A prática de serrar os chifres é super comum. Muitas vezes usam os mesmos animais por mais de uma vez durante a prova. [4]

O artigo jurídico do advogado Thomas de Carvalho Silva [5] mostra com ainda mais propriedade como a vaquejada, mesmo aquela desprovida de ilegalidades, agride os animais. A princípio ele faz uma citação de um trecho de um parecer técnico da Dra. Irvênia Luiza Prada:

Ao perseguirem o bovino, os peões acabam por segurá-lo fortemente pela cauda (rabo), fazendo com que ele estanque e seja contido. A cauda dos animais é composta, em sua estrutura óssea, por uma seqüência de vértebras, chamadas coccígeas ou caudais, que se articulam umas com as outras. Nesse gesto brusco de tracionar violentamente o animal pelo rabo, é muito provável que disto resulte luxação das vértebras, ou seja, perda da condição anatômica de contato de uma com a outra. Com essa ocorrência, existe a ruptura de ligamentos e de vasos sangüíneos, portanto, estabelecendo-se lesões traumáticas. Não deve ser rara a desinserção (arrancamento) da cauda, de sua conexão com o tronco. Como a porção caudal da coluna vertebral representa continuação dos outros segmentos da coluna vertebral, particularmente na região sacral, afecções que ocorrem primeiramente nas vértebras caudais podem repercutir mais para frente, comprometendo inclusive a medula espinhal que se acha contida dentro do canal vertebral. Esses processos patológicos são muito dolorosos, dada a conexão da medula espinhal com as raízes dos nervos espinhais, por onde trafegam inclusive os estímulos nociceptivos (causadores de dor). Volto a repetir que além de dor física, os animais submetidos a esses procedimentos vivenciam sofrimento mental.

A estrutura dos eqüinos e bovinos é passível de lesões na ocorrência de quaisquer procedimentos violentos, bruscos e/ou agressivos, em coerência com a constituição de todos os corpos formados por matéria viva. Por outro lado, sendo o “cérebro”, o órgão de expressão da mente, a complexa configuração morfo-funcional que exibe em eqüinos e bovinos é indicativa da capacidade psíquica desses animais, de aliviar e interpretar as situações adversas a que são submetidos, disto resultando sofrimento.

O brete, que é uma área do parque de vaquejada relativamente misteriosa, que não costuma revelar voluntariamente o que faz para causar a carreira dos bois, é denunciado por Thomas Carvalho como um local de maltrato: “Para que o bovino, manso e vagaroso, adentre a arena em fuga, o animal é confinado em um pequeno cercado, onde é atormentado, encurralado, espancado com pedaços de madeira, e submetido a vigorosas e sucessivas trações de cauda.” [5]

Geuza Leitão, da UIPA, confirma que “não são divulgados para o publico os métodos cruéis utilizados para ocasionar a corrida dos bois” e denuncia “seu confinamento prévio por longo período, a utilização de açoites e ofendículos, a introdução de pimenta e mostarda via anal, choques elétricos e outras práticas caracterizadoras de maus-tratos”. O mero relato de Leitão sobre as vaquejadas para o jornal O Povo é insuficiente para caracterizar uma autêntica evidência ou prova das violências explícitas da vaquejada, mas, considerando a ausência de debate no Nordeste, perante a opinião pública, sequer sobre a fiscalização das vaquejadas, é dedutível que esses atos aconteçam muito mais frequentemente do que os simpatizantes da atividade imaginam.

A vaquejada, de fato, tanto faz jus ao atributo de “esporte” injustamente violento [7] que pelo menos duas vaquejadas já foram judicialmente censuradas nos últimos anos: a de Serra do Ramalho/BA, em junho de 2007 (mas liberada pouco depois) [8], e a de Xerém/RJ, em setembro de 2009 [9] (esta presumivelmente não mais liberada, uma vez que o seu site oficial não é mais atualizado desde 2009 [10]).

Essa violência, seja explícita e óbvia ou implícita e aceita, só acontece para valer por causa de uma importante premissa moral arrogada pelos organizadores de vaquejadas, vaqueiros e outras pessoas envolvidas na atividade: bois e cavalos, como sendo seres moralmente inferiores, são propriedade dos humanos, e assim sendo seus proprietários podem usá-los livremente sempre que lhes demandarem utilidade.

Considerando que a igualdade moral entre todos os seres humanos e o não ser tratado como propriedade de outrem são um direito humano fundamental e os animais não humanos são hoje desprovidos desse direito ainda que o mereçam, estes últimos estão de fato submetidos a uma arbitrária inferioridade moral, que permite que sejam usados como coisas utilitárias pelos humanos.

Caso não existisse essa desigualdade moral entre animais humanos e não humanos, os últimos também teriam o pleno direito de serem sujeitos e senhores de suas próprias vidas, vivendo estritamente de acordo com seus próprios interesses (de continuar vivo e evitar sua própria dor e sofrimento) e sendo proibida a sua escravização.

Mas não é o que acontece hoje. Graças à inferioridade moral imposta para os animais não humanos e à liberdade de propriedade privada, os vaqueiros, os donos (sic) de animais e os organizadores de vaquejadas são livres para usar sua “propriedade viva” como bem entenderem. [11] Como intencionam obter sustento do entretenimento de uso de animais, exploram então os seus cavalos e bois na atividade da vaquejada.

Mesmo que haja aqueles que dizem tratar seus cavalos como “irmãos”, “filhos” ou “amigos”, é notável que na verdade não há entre o vaqueiro e o cavalo uma autêntica relação de amizade ou de consideração análoga à familiar, mas apenas de afeto e gratidão por sua tão útil propriedade. Os vaqueiros geralmente adquirem (sic) os seus cavalos através de leilões, locação ou outras formas de comércio [12], e amigos e familiares não podem ser comprados ou alugados. E também é possível questionar se eles teriam a mesma “consideração” pelos animais se estes tivessem desempenho mau ou decadente nas competições.

Propriedade privada que são, tanto cavalos como bois são dados à luz com fins exclusivamente terceirizados, lucrativos e alheios aos seus interesses próprios de seres sencientes. No caso dos cavalos, são fecundados mediante seleção genética pelo uso do sêmen de machos “premiados”, herdando-lhes a força e agilidade. [13]

De uma atividade cujo alicerce indissociável é tratar animais como escravos, como propriedade humana, é esperado o uso de violência, por mais que haja leis exigindo respeito ao “bem estar animal”, assim como acontece na pecuária, na vivissecção, na compra e “posse” de animais domésticos e em qualquer outra atividade de exploração animal. Aliás, a própria escravidão animal é em si uma violência, um maltrato, visto que submete suas vítimas a atividades cuja participação eles não podem escolher entre aceitar e recusar, indo contra os interesses imediatos do próprio animal – usufruir da liberdade (que ele não tem) e satisfazer suas necessidades à sua maneira.

Considerações finais

Basta assistir a poucos vídeos sobre vaquejada que percebemos como essa atividade “esportiva” é uma ação de violência e escravidão contra animais não humanos que não escolheram tal fado, algo ausente nos verdadeiros esportes. Porém, uma forte camada cultural, regionalmente moldada a partir de uma dependência socioeconômica da exploração animal por via de uma pecuária explicitamente violenta [14], protege-a de ser encarada como aquilo que realmente é: uma agressão física explícita e injustificável contra bois e uma redução dos cavalos ao status de automóveis controláveis.

Porém, mesmo sendo uma atividade claramente pautada na exploração violenta de animais não humanos, é muito pouca – para dizer a verdade, residual – a mobilização de oposição de entidades de defesa animal contra a vaquejada no Nordeste. Isso deve-se em parte, provavelmente, à intimidadora força político-econômica da pecuária e da vaquejada na região – o que inclui o apadrinhamento de eventos do tipo por deputados [15] –, que impõe sérios riscos de represália a pessoas e organizações sem força política que se opuserem publicamente a esse tipo de evento.

O que resta, no momento, é fazer a militância nordestina de defesa animal crescer descentralizadamente e se robustecer a ponto de conquistar o apoio de políticos e juristas da região. É também fazer o “trabalho de formiguinha”, criando e ampliando pouco a pouco, à maneira de cada pessoa e entidade, o debate sobre a vaquejada e suas violências.

Para quem já é contra a vaquejada desde antes de ter lido este texto, fica aqui a convocação para que, de alguma maneira, ajude a expandir esse debate, para que os animais parem de sofrer diante dos espectadores e participantes desse tipo de competição. Para quem gosta, fica o convite para pensar sobre as implicações éticas e a violência dessa atividade para os animais – comece a enxergar o lado que a vaquejada e seus atores humanos não leva em consideração: o lado dos animais, o que eles sentem ao serem controlados, esporeados, açoitados, açulados, perseguidos e derrubados no chão. Para quem ainda não sabia realmente o que é e em que consiste a vaquejada, agora já sabe e tem ciência da necessidade de ela ser proibida.

Referências

[1] “Vaquejada” – Wikipédia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Vaquejada (acessado em 05/12/2011)

[2] “Um esporte emocionante” – Parque Ana Dantas: http://www.parqueanadantas.com.br/index2.php?mod=12 (acessado em 05/12/2011)

[3] O uso “moderado” de esporas e açoites é previsto pelas regras de pelo menos algumas vaquejadas, como por exemplo o Regulamento Geral de Vaquejada ABQM: http://www.abqm.com.br/IVaquejada/regulamento.pdf (acessado em 06/12/2011)

[4] “Relato de uma vaquejada” – PEA – Projeto Esperança Animal: http://www.pea.org.br/denuncia/vaquejada.htm (acessado em 06/12/2011)

[5] SILVA, Thomas de Carvalho. A prática da Vaquejada à luz da Constituição Federal de 1988: http://jusvi.com/artigos/38272/2 (acessado em 08/12/2011)

[6] “Vaquejada é crueldade contra animais?” – O Povo: http://www.opovo.com.br/www/opovo/opiniao/630544.html (acessado em 08/12/2011)

[7] Artes marciais, boxe, wrestling e outros esportes de luta podem ser considerados usuários de uma “violência não injusta”, uma vez que os lutadores escolhem estar ali e seguir tal carreira e assumem para si as consequências da violência trocada na arena.

[8] “Justiça determina suspensão de vaquejada em Serra do Ramalho” – Farol da Cidade: http://www.faroldacidade.com.br/?lk=4&id=6967 (acessado em 08/12/2011)

[9] “Vaquejadas são proibidas em Xerém” – SRZD: http://www.sidneyrezende.com/noticia/55221+vaquejadas+sao+proibidas+em+xerem (acessado em 08/12/2011)

[10] Os últimos eventos descritos no site oficial do Parque Ana Dantas (Xerém/RJ) são de 2009, conforme se pode notar em: http://www.parqueanadantas.com.br/index2.php?mod=53 e http://www.parqueanadantas.com.br/index2.php?mod=20 (acessados em 08/12/2011)

[11] Isso considerando-se que o Artigo 32 da Lei de Crimes Ambientais é formalmente ignorado pelos atores envolvidos nas vaquejadas e até mesmo pelas leis federais que oficializam essa atividade como um “esporte” e o vaqueiro competidor como “atleta”.

[12] Um exemplo de como os cavalos de vaquejada são tratados como objetos dotados de utilidade e valor em dinheiro é esta página: http://www.cavalodevaquejada.com/2010/02/classificados-cavalo-de-vaquejada/ (acessado em 08/12/2011)

[13] Um exemplo era o cavalo Signo Forte, falecido em fevereiro de 2010 e “recebedor” de prêmios em vida. Ele era descendente de dois cavalos competidores: Apollo (pai) e Dash For Cash (bisavô paterno e materno). Conforme http://www.cavalodevaquejada.com/2010/02/morte-signo-forte/ (acessado em 08/12/2011)

[14] O maior exemplo da violência explícita da pecuária nordestina é o fato de a grande maioria dos matadouros de Pernambuco serem clandestinos e/ou abaterem animais com métodos obviamente cruéis como a marretada craniana. Conforme http://consciencia.blog.br/2011/12/os-matadouros-imundos-de-pernambuco-e-um-convite-a-reflexao.html (acessado em 08/12/2011)

[15] Um exemplo: http://imagens.consciencia.blog.br/arquivos-anexos/cartaz-vaquejada-2008.jpg (acessado em 08/12/2011)

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