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Especismo: o nazismo invisível do cotidiano

28 de fevereiro de 2012
10 min. de leitura
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Fernando Schell PereiraO vegano Fernando Schell Pereira, 31 anos, é um dos cérebros por trás do ativismo pró-animais no Rio Grande do Sul, com reconhecida atuação em diversas frentes. Ex-mMembro da Vanguarda Abolicionista, da qual é um dos fundadores, criador do Princípio Animal e praticante do boxe olímpico, aventurou-se pelas faculdades de Biologia e Engenharia Ambiental, e no final de 2011 graduou-se em Filosofia. Ao longo do curso, sua militância já era assunto entre colegas e professores, e até mesmo o tradicional ‘churrasco da Filosofia’ virou um jantar vegano com direito a palestra e distribuição de materiais. Por fim, seu projeto de conclusão, polêmico, comparou o especismo ao nazismo – publicado em http://biblioteca.unilasalle.edu.br/docs_online/tcc/graduacao/filosofia_licenciatura/2011/fspereira.pdf. Fez filmagens em abatedouros, pesquisou em farta bibliografia para tratar de tão espinhoso tema e, por ocasião da banca examinadora, acusou professores e platéia de serem nazistas. A idéia foi provocar reflexão, e os resultados foram surpreendentes. Leia abaixo a entrevista concedida com exclusividade para a ANDA.


ANDA – Nazismo é um tema que já deixa as pessoas ressabiadas. Como foi a recepção por parte da banca examinadora sobre o assunto de su TCC?

Nando – Chamei os presentes de nazistas.Nas argumentações finais, fechei a analogia com a provocação diretamente aos professores e demais presentes, enfatizando nosso tratamento em relação aos não-humanos com tamanha pretensão de ainda sermos animais racionais de moralidade pura,ou seja, os fazendo lembrar que não estamos moralmente longe daqueles homens que submetiam suas vitimas como meios, da maneira que julgamos os não-humanos também como meios para nossos eternos fins. Permeando sempre que, da mesma forma que Eichmann não se sentia culpado por suas atribuições como encarregado do transporte de judeus e da ‘solução final’, o especista também não se enxerga como o mal, ainda mais um pai de família, um bom avô, um ótimo marido… da mesma forma que os agentes da SS foram em seu íntimo familiar, uma espécie de ‘moral de leões’. É a mesma sensação que temos com nossos familiares onívoros – não são pessoas insanas, mas consomem animais e, pior… mesmo já conhecendo boa parte da realidade a que são submetidos esses seres na produção. O mal tende a ser projetado, colocando o fardo da culpa sempre nos outros. Enquanto não doutrinarmos o olhar para os não-humanos, a violência continuará velada, crescendo com as crianças e formando adultos especistas.

ANDA – Geralmente quem vai para a banca de monografia está temeroso, preocupado em se formar. Mas você chamou o pessoal de nazista, e qual foi a reação?

Nando – Percebi certo olhar atento de um professor que não estava na minha banca. E lembro que ao ver seu olhar ‘curioso’ logo pensei – “ele deve ter achado um absurdo”.
Mas, para surpresa geral, após a defesa ele veio me parabenizar. “Estou há um mês sem comer carne depois da minha viagem à Argentina”, comentou. Confesso que fiquei atônito, pois esse professor contava com boas doses antropocêntricas em suas aulas, e perguntei se havia algum motivo especial. “Tive algumas experiências desagradáveis, e por uma questão de evolução decidi parar de comer carne”. Essas foram as palavras. E me disse que gostou muito da minha provocação, porque ele próprio sentia-se um nazista dentro dessas proporções em relação ao tratamento moral para com os animais.

ANDA – Não houve receio em abordar essa analogia? Aqui no Brasil o Holocausto Animal teve que se explicar para o Ministério Público, e o PETA sofreu processo por uma campanha similar.

Nando – Não ao ponto de desistir. Procurei orientação de uma advogada somente depois da apresentação e entrega do trabalho final. E também por ser um ambiente acadêmico, não há melhor lugar para discutir problemas respaldados por bibliografias – não fui o primeiro nem serei o último a traçar essa equivalência moral. Derrida dedica algumas linhas de seu ‘O animal que logo sou’ a essa analogia. Mas não segue com descrições mais atentas, que foi o que priorizei na primeira parte do trabalho, tentando trazer uma coleta de informações sobre o tratamento das vitimas do holocausto humano para dar ênfase ao pano de fundo do tratamento especista aos não-humanos.

ANDA – Ao dizer que o mal se configura no caso Eichmann, que exemplo prático poderia descrever em relação aos não-humanos?

Nando – O tenente-coronel da SS tinha convicção de que não fez nada de mal, de que apenas seguiu protocolos de seus trabalhos, e com muito orgulho. Jamais se colocou na posição de um perverso, pois era aquilo o que deveria ser feito. Assim como tantos outros racistas do regime, Eichmann exercia seu trabalho sem a menor linha de raciocínio culposo, o fazia de puro mérito espiritual – se formos analisar o comportamento de um zootecnista, por exemplo, não seria difícil identificar em ambos o mesmo grau de indiferença moral e atribuição trabalhista similar no manejo das vitimas. Portanto, a comparação que faço não pretende dizer que todos especistas são como Eichmann, mas que todos tem algum grau, sim, de fragmentação daquilo – ou daqueles – que consideram dignos de moralidade. Tal como o especismo, a predileção do nazismo por alguns humanos, a exclusão moral dos ciganos, negros, judeus, homossexuais e todos que o nazismo não julgasse ‘útil’ ou ‘puro’, se dava de maneira similar. Porque sua exclusão do circulo moral era de proporções extremas, desconsiderando a vitima ou o outro como ‘humano que sente’, os colocando na categoria de coisas, propriedade, meios. Colocando-os na categoria dos animais não-humanos… Podemos ver isso perfeitamente no comportamento de um ente querido, pessoa de nosso convívio, de boa índole, mas que não se abstém de uma dieta carnista, mesmo sabendo de boa parte das atrocidades que a indústria faz aos animais de produção. Infelizmente o discurso ético não é suficiente – e nem tão óbvio como pensamos – e as pessoas são fragmentadas. A chamada esquizofrenia moral já não me surpreende mais. Estas fragmentações morais estão em vários níveis da sociedade humana, não apenas na discussão da ética animal, mas em relação ao tratamento entre o racismo e suas variáveis. E acredito que, ao pretender que seja explicita e convincente, estajamos partindo de um principio de que reagimos a verdades no seu desvendar, mas isso não funciona assim. As pessoas são peritas em deixar pra lá aquilo que não lhes toca. Traçando o sentido de Verdade como aquilo que é íntimo de seu entendimento, de seu limite de compreensão.

ANDA – Você relatou uma visita a um abatedouro em seu trabalho. Qual tua percepção sobre o lugar e o trabalho executado pelos funcionários?

Nando – Desde o primeiro momento, já estava claro para mim que precisaria vivenciar o relato. Consegui por muita sorte, a autorização para entrar em um abatedouro e filmar tudo. Não foi fácil, isso já se supõe, é claro. Mas o que mais me deixou pensativo não foram os assassinatos, mas o comportamento especista. A naturalidade daquelas pessoas – sobretudo do veterinário que me acompanhou – traçando caráter de ‘pessoas normais’ em gente que perfeitamente vai para casa, tem família e cumpre com suas obrigações de bons cidadãos, pais de família. Eram como nazistas, em nome da técnica da morte. Não de assassinato, já que tal termo se destina à dignidade humana, mas do abate, da matança destinada ao mercado e cultivada pela tradição inquestionável de comer não-humanos. Fui bem recebido e tive todas as apresentações técnicas possíveis sobre como funcionam os procedimentos de abates. A impressão é de que tinha em minha frente um verdadeiro encarregado de câmaras de gás, ou um tenente como Eichmann. Alguém absolutamente normal e de bom convívio, de comportamento amistoso e cordial, assim como Eichmann fora descrito por psiquiatras quando avaliado. E,sobretudo, um homem orgulhoso de seus atos, de sua técnica empregada em nome do desenvolvimento industrial, do controle de qualidade.

ANDA – Ao longo do curso de Filosofia, como foi sua experiência com a temática animalista?

Nando – No ínicio, foi conflitante. Tive uma ingênua percepção de que as predileções da libertação animal seriam bem recebidas no ambiente acadêmico – ingenuamente eu acreditava que aquele livro, ‘Libertação Animal’ de Peter Singer, fosse conhecido, ao menos pelos professores. Ao me deparar com boas doses de desdém em relação ao assunto, confesso que fiquei decepcionado. Mas fui domesticando esta decepção em produção. Hoje vejo o resultado positivo de sempre ter trazido à tona a temática e nunca me abster de uma longa conversa debatendo o assunto com algum interessado ou pretensioso provocador.
Coloco como resultado positivo o fator social no embate em defesa dos não humanos. Você não precisa ser um herói – como muitos insistem por ai, mas que não saem de seus computadores – e a libertação animal não é uma ideia, mas um fetiche para algumas pessoas que se dizem ativistas e acabam por simplesmente discutir teorias do que é certo ou errado, mas incapazes de lutarem, de fazer aquilo que um não-humano pediria para que fizessem, os livrassem de qualquer maneira da cruel realidade à qual estão inseridos a cada minuto de suas vidas. Sendo esta atitude ‘abolicionista’ ou ‘ bem-estarista’. Precisa ser laboral, precisa estar aplicada intrinsicamente em nossas atitudes. Não se deve ser um chato, um idealista bibliotecário – é preciso exercer seu papel de cidadania e, por consequência, agir como cidadão, cobrando seu papel em sociedade. Tomar frente das politicas públicas, buscando sempre maximizar a abolição, mesmo que esta venha a passos de formiga, minimizando o sofrimento aterrador a que os não humanos são submetidos. Para este mínimo e único caminho prático, é preciso ação, é preciso jogo de cintura para com um mundo especista. Deixar de lado nossos egos e enxergar que a libertação animal não é um idealismo qualquer – se levarmos realmente a sério – e perceber que em grande parte este problema deve ser tratado no âmbito politico e educacional. Parar de comer animais e seus derivados é o primeiro passo nesta caminhada, estendendo então, através de nossas ações econômicas, uma abertura moral para a compreensão lógica do que esta acontecendo, de que a atitude de não comer animais também é viável economicamente e ‘sustentável eticamente’, tornando-se fluente dentro das perspectivas lógicas do capitalismo. De que não se trata apenas de um caminho ético no tratamento, mas, sobretudo econômico e que faz sentido.

ANDA – Percebe-se no teu trabalho que as descrições acerca do nazismo humano são mais longas e minuciosas. A que poderia atribuir o ‘peso’ diferenciado em relação ao holocausto animal, nas descrições?

Nando – A intenção realmente foi deixar mais extensa as descrições do holocausto humano – pode ser até um pouco incoerente – mas para salientar os fatos. Tudo o que acontecia com aquelas pessoas foi de grande valor para a pretensão de fechar a analogia com o especismo, com o tratamento que infligimos aos não-humanos. No começo do trabalho trouxe a importância dos direitos como visceral arma na defesa à integridade física, relatando a maneira de como o regime nazista se apossou de suas vitimas, retirando direitos e identidades sociais, seus trabalhos. Vulnerabilizou seu caráter moral enquanto cidadãos, também como sujeitos-de-uma-vida. Já que os direitos do homem passaram longe, abria-se espaço para as atrocidades nazistas.

ANDA – Seu trabalho optou por mostrar o holocausto animal no cotidiano, aquilo que as pessoas têm contato mais direto/perceptivo. Fale um pouco sobre isso.

Nando – Procurei relatar apenas a experiência tátil que as pessoas geralmente têm ao seu alcance no cotidiano, mostrando animais de rodeio, circo, domesticados ou zoológicos, por exemplo. No capítulo das vestimentas falei apenas do couro, e assim por diante. Quis com isso tentar ilustrar com maior facilidade a discussão moral destes animais presentes. Se eu fosse falar em casacos de pele de coelhos angorás, ou raposas, isso já não atingiria o mesmo tom, pois as pessoas – como eu insisto em dizer – são fragmentadas em seu julgamento moral. Simplesmente não lhes toca aqueles animais que não têm contato visual ou já teve na construção de seu caráter. Por isso a relação que temos com cães e gatos é mais explorada no senso comum daqueles que dizem amar os animais, mas continuam comendo carne de outros, pois não enxergam ou convivem diretamente com esses ‘outros’ de confinamento, estão longe do olhar, longe do coração.

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