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Ateísmo ideológico e direitos animais

26 de fevereiro de 2012
23 min. de leitura
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1ª parte: Ateísmo ideológico e Direitos Animais

Introdução

Encontrar pontos de convergência entre os Direitos Animais e o ateísmo é um desafio. Porque, se se considerar o ateísmo puramente como a descrença em deuses, não há nada que ligue essa mera descrença ao ideal da libertação animal. E há uma enorme diversidade de pensamentos, ideologias e convicções entre os ateus, não havendo nenhum “mandamento ateísta” que exija ou recomende o respeito aos animais não humanos.

Porém, há uma vertente ateísta, em franco crescimento hoje em dia, que, não implicando apenas o não crer em divindades, converge todo um ideário que, no final das contas, acaba tendo sim uma ligação relevante com os DA. Essa corrente é que será abordada neste artigo.

Ateísmo e diversidade de pensamentos

O ateísmo, desde sempre, é marcado por uma enorme diversidade de pensamentos, de ideologias, de hábitos, de identidades culturais, até mesmo de crenças espirituais. No que tange ao pensamento, há ateus otimistas, há os pessimistas, há os realistas, há os que alternam seu astral com frequência. Há aqueles que acreditam fielmente no amor, há os que não acreditam mais, há os céticos que só acreditarão no amor de namorad@ quando começarem a senti-lo… Há os que adoram dinheiro e bens materiais, há os que preferem a simplicidade, há os que só querem dinheiro com moderação…

Nas ideologias, há ateus de esquerda, de direita, de centro, de extrema-esquerda etc. Há ateus socialistas, liberais, conservadores ao molde americano, libertários de direita, libertários de esquerda, anarquistas, anarcocapitalistas, simpatizantes de regimes autoritários, e assim por diante. Tem os ateus pró-laicismo, tem aqueles que sonham em ver o Brasil se tornar um Estado confessional ateísta, tem os que são em cima do muro. Tem os que querem que a liberdade religiosa continue como está, tem os que querem a religião ser proibida por lei, tem os que desejam muito que a religião seja regulamentada por lei – ainda que isso demande uma nova assembleia constituinte no caso do Brasil…

Na Filosofia, há ateu de tudo quanto é tipo: materialista-marxiano, idealista-hegeliano, kantista, platonista, epicurista, maniqueísta, niilista, cientificista, metafísico, positivista, existencialista… Há aqueles também que acham a Filosofia uma perda de tempo.

Também mesmo em termos de espiritualidade, há uma enorme diversidade de crenças entre ateus. Há aqueles bem materialistas, que não acreditam em nada que não seja detectável pelo método científico, não creem em nada sobrenatural ou transcendente. Há também, por outro lado, os ateus que creem no sobrenatural – por exemplo, em espíritos, em reencarnação espiritual de humanos a humanos, em hierarquia de evolução espiritual, em fantasmas, nas chamadas “ciências alternativas” etc.

Há aqueles que creem que morreu, acabou; há os que acreditam em reencarnação, uns de uma forma, outros de outra. Há os que se inspiram em religiões como o budismo e o taoísmo para delinear sua filosofia de vida, e há os que se baseiam puramente em valores irreligiosos. E assim por diante.

E, dentre os ateus, vem se destacando uma divisão cada vez mais conhecida hoje em dia: os chamados neoateus, que defendem que as religiões sejam erradicadas das sociedades modernas por tudo que suas vertentes fundamentalistas e cleros fizeram ao longo da História humana. Defendem que isso seja feito não com violência, leis draconianas ou outros atos impositivos, mas com pesados investimentos em educação laica; em divulgação do pensamento ateísta, da Ciência e da Razão; na multiplicação de debates – que muitos neoateus infelizmente tratam como batalhas argumentativas perde-ganha ao invés de como processos dialéticos de aprendizagem mútua – entre ateus e religiosos; no incentivo à cultura secular; entre outras providências.

E outra diferença muito notável entre os ateus é a própria divisão sua entre ateus veg(etari)anos que zelam pelos Direitos Animais e ateus onívoros/carnistas que fazem pouco caso do tema – além de existirem vegetarianos que não ligam muito para os DA e onívoros interessados na questão. Há inclusive aqueles ateus que divulgam o veg(etari)anismo e os DA e também aqueles que, fazendo a contraparte conservadora, defendem a continuidade do livre consumo de alimentos de origem animal e tentam argumentar por que o veg(etari)anismo pelo animais não faria sentido.

O ateísmo ideológico

Além dos neoateus, a outra grande categoria ateísta que chama a atenção, dessa vez com menos reações discordantes e mais aceitação entre o universo ateísta, é uma que combina e unifica diversas correntes de pensamento: o ateísmo em si, o humanismo secular, o ceticismo científico, a filia à Ciência e à Razão e a defesa do Estado Laico – chamada neste texto de ateísmo ideológico. A combinação é tão forte que alguns teóricos [1] hoje dão, pautados nela, uma definição ao ateísmo bem mais ampla do que a de simples ausência de crença em divindades.

De fato conseguem criar algo próximo a uma definição paralela de ateísmo, ou pelo menos uma categoria muito forte, que consiste:

a) na descrença em deuses, envolvida em ricas razões e contextos;
b) no humanismo secular, pautado em causas como a defesa dos Direitos Humanos, das liberdades individuais e da cultura de paz – alguns o estendem ao antimilitarismo;
c) no respeito devotado à Ciência e à Razão como fundamentos do intelecto humano;
d) no ceticismo científico, oposto a crenças mitológicas, superstições e pseudociências;
e) na defesa do Estado Laico, garantidor da liberdade de crer e não crer no que quiser em termos de religião e não ser molestado pelas religiões por isso e dos direitos de minorias direta ou indiretamente prejudicadas por lobbies religiosos.

E de fato, pelo que se pode aferir quali-quantitativamente nas aglomerações de redes sociais e fóruns de internet, essa é a parcela de ateus que mais vem crescendo entre todas as ideologicamente diversas categorias ateístas. Em números e em notoriedade intelectual. Vem crescendo bastante o número de blogs e associações que, tendo muitos membros ateus, prezam pelo humanismo secular, pela divulgação da Ciência e do pensamento racionalista e pela militância pró-laicidade.

É essa categoria que tem mais a ver com os ideais abolicionistas, ainda que os Direitos Animais não sejam parte integrante dessa nova “definição estendida” de ateísmo. Para apontar as conexões entre essa categoria de ateísmo e o DA, este artigo foi escrito.

Ateísmo ideológico e Direitos Animais

Nunca foi nem nunca será prerrequisito ser vegetariano para ser um ateu dessa categoria. Mas é difícil negar que há conexões entre os diversos aspectos do ateísmo ideológico e os Direitos Animais – e que, no final das contas, torna-se questão de coerência um ateu dessa categoria se tornar veg(etari)ano e simpatizante ou defensor da causa abolicionista animal.

Cada aspecto citado do ateísmo ideológico tem algo que combine com a ética animal:

a) Descrença em deuses (e em códigos morais absolutistas)

A inexistência de deuses e a irreligião implicam que não existe uma ética/moral absoluta e de origem divina regendo a conduta dos seres humanos. Nisso os ateus se deixam reger por uma ética exclusivamente secular, que muda ao longo dos tempos – e são suscetíveis a analisar, aprovar e assim aceitar as mudanças progressistas nessa ética.

Essa ética secular, que Richard Dawkins chama de zeitgeist moral, vive em permanente mudança, há milênios, e continuará se transformando até a extinção da humanidade. Antigamente legalizava a opressão oficializada de minorias (mulheres, estrangeiros, pessoas de outras religiões etc.), inclusive permitindo a escravidão de seres humanos. Pouco a pouco foi (e vem) derrubando uma a uma as regras morais permissivas à opressão, com implantação da democracia, abolição de leis racistas, conquista de direitos pelas mulheres, mundialização dos Direitos Humanos, aceitação jurídica integral da homoafetividade, regulação legal das relações entre o ser humano e a Natureza a que ele pertence…

E o próximo passo desse progresso ético tende a ser o reconhecimento cada vez mais abrangente e consistente dos animais não humanos como sujeitos de direito, na sua condição de pacientes morais suscetíveis às consequências das ações dos humanos agentes morais. Negar esse avanço e crer que os animais não humanos não podem, ou não devem, ser eticamente respeitados é subestimar a mutabilidade do zeitgeist moral secular, ou mesmo duvidar dela.

Portanto, a descrença em deuses e, por tabela, em códigos morais absolutos facilita bastante o entendimento de que a incorporação dos Direitos Animais ao paradigma ético vigente é parte da incontível evolução do nosso sistema ético-moral [2].

b) Humanismo secular

Este, pelo visto, ainda é limitado à espécie humana, e poderá ser sucedido aos poucos por um supra-humanismo que inclua tanto os animais humanos como os não humanos como sujeitos morais. Mas mesmo hoje ele já possui semelhanças muito fortes e numerosas com o ideal do abolicionismo animal: a oposição a opressões seja quais forem; o estabelecimento de uma cultura de paz e respeito aos vulneráveis; a rejeição do “direito” dos mais fortes de dominarem os mais fracos e lhes imporem suas vontades; a oposição a atos desnecessários de violência; a reivindicação de direitos integrais a categorias oprimidas; a preocupação com a sobrevivência futura e harmonia da humanidade – considerando-se que a pecuária está ajudando a comprometer o futuro da espécie humana, através do seu enorme impacto ambiental –; entre outros aspectos.

Analisando-se bem a proposta dos DA, é possível concluir que, considerando-se a exploração animal algo que atenta, ainda que indiretamente, contra os pilares do próprio humanismo, o veganismo e a adesão à luta pela abolição desse sistema de escravidão acabam sendo praticamente um imperativo ético aos humanistas seculares, sob pena de estarem sendo incoerentes e contradizendo seu próprio ideário.

Afinal, se os animais não humanos são tão ou mais oprimidos do que os seres humanos pelos quais o humanismo tanto zela, por que não se preocupar com eles também? Por que continuar consentidamente participando, por via do consumo, de um sistema que oprime seres que deveriam ter direitos, quando se é humanista e desejador do fim de todo e qualquer paradigma que negue direitos a quem os merece?

c) Filia à Razão e à Ciência

Os Direitos Animais possuem bases racionais e científicas cada vez mais fortes. Seja no que tange os estudos sobre senciência, consciência e comportamento animal, seja nas sólidas bases fincadas na Filosofia da Ética, seja na factualidade das denúncias contra as atividades de exploração animal, seja nos estudos dos impactos ambientais da pecuária e da pesca, os DA possuem uma forte, e cada vez mais difícil de negar, estrutura racional e científica.

As recorrências a apelos sentimentais orais ou gráficos são apenas uma faceta periférica da militância animalista. Há em contrapartida essa robusta fundamentação filosófica e científica, e o pelotão de filósofos e cientistas abolicionistas só vem aumentando ao redor do mundo e fortalecendo essa base intelectual do vegano-abolicionismo.

Por outro lado, o especismo e o carnismo vêm sendo dissecados por esse movimento e denunciados como carentes de bases racionais fiáveis. E é possível perceber na internet que a maioria dos formadores de opinião que ainda estão do lado antropocêntrico não vem conseguindo sustentar seus argumentos ou mesmo simplesmente argumentar sem que recorram a ideias contraditórias, ofensividade de linguagem, manifestação de paixões deletérias – como o prazer viciado do paladar em torno das carnes – e/ou evidências científicas questionáveis e precárias, contrariando tanto a Razão como a Ciência.

Em suma, a racionalidade e cientificidade, que marcam o ateísmo ideológico, estão cada vez mais a serviço dos Direitos Animais, tanto respaldando-o como desmontando os argumentos do lado oposto – carnismo e especismo.

d) Ceticismo científico

Ainda é pouco comum na internet brasileira que ateus declaradamente céticos se invistam em desconstruir os argumentos e preconceitos do carnismo e do especismo, tal como se faz muito com técnicas pseudocientíficas como a homeopatia e a clarividência, com crenças religiosas e com lendas de internet. Mas há um enorme potencial para que o ceticismo científico se alie permanentemente com os Direitos Animais, no que se refere a questionar e desmontar as crenças antropocêntricas.

Tal como pseudociências, o carnismo e o especismo são, como é possível verificar em análise crítica rigorosa das suas justificativas, sustentados por teorias científicas ultrapassadas, falácias lógicas e preconceitos contra vegetarianos e veganos. São um prato cheio para trabalhos de ceticismo, em especial no que tange a aposentar argumentos como “O ser humano precisa de carne” ou “A ‘lei da sobrevivência’ nos obriga a criar e matar animais para proveitos nossos” e apontar falácias [3].

Está ficando cada vez mais difícil ser ao mesmo tempo verdadeiramente cético e carnista militante sem ser fortemente questionado, visto que tal posição é muito contraditória e, conforme se flagra hoje em dia, compromete seriamente essa qualidade de cético.

Considerações finais à 1ª parte

Ainda é possível ser ateu e especista ao mesmo tempo, mas o ateísmo ideológico, pautado em valores como o humanismo secular, a racionalidade militante e o ceticismo científico, tem conexões e semelhanças muito fortes com os Direitos Animais. Tanto que se torna complicado não ver contradições no pensamento de alguém que é ateu, humanista-secular, cético, racionalista e pró-científico mas segue pensamentos baseados em preconceitos, teorias científicas vencidas, paixões (como o prazer do paladar) e até falácias lógicas.

Dado esse grande potencial de aliança entre os DA e o ateísmo ideológico, já selada por muitos ateus veg(etari)anos, é possível afirmar que há tantas ou mais razões para ateus dessa categoria se tornarem simpatizantes ou defensores dos DA quanto/que para hindus e jainistas serem vegetarianos. Não há obrigação coercitiva nem mandamento divino que determine que ateus ideológicos devam se tornar vegetarianos e considerar os animais não humanos sujeitos morais plenos, mas há sim o respeito coerente ao complexo ideológico que esse tipo de ateísmo traz consigo.

Afinal, não convém a um humanista secular apoiar ou consentir com um sistema que oprime seres vulneráveis e nega direitos a quem os merece. Idem a um cético usar falácias e teorias científicas ultrapassadas. A um racionalista e amigo da Ciência defender algo deletério na base da paixão, da reação adversa visceral e de dados cientificamente duvidosos. A alguém que não acredita em deuses e em suas morais absolutas defender que a Ética não mude a ponto de incluir os animais não humanos como sujeitos morais.

Ser “vegano porque ateu ideológico” não é exatamente como ser vegetariano porque hindu. Não é uma ordem divina. Ou uma regra cuja violação acarreta punição. Mas é uma recomendação da Razão e também da consciência ética. É uma correção das qualidades de humanista secular, cético, racionalista, amigo da Ciência, reconhecedor da mutabilidade da ética humana, negador de morais petrificadas. Enfim, de ateu ideológico.

2ª parte: Reiterando as relações entre o ateísmo ideológico e os Direitos Animais

(Réplica ao artigo Do humanismo ao veganismo: non sequitur, que havia sido feito em resposta à primeira parte deste texto)

A partir da dialética obtemos aprendizados muito importantes, e este pretender ser o caso também. Foi publicado pouco depois da publicação da 1ª parte deste artigo um texto que questiona as conexões e laços de coerência entre a categoria de ateísmo que chamo de ateísmo ideológico (AI) e os Direitos Animais (DA). Esta segunda parte, a comentar cada parte dele, pretende novamente defender essa relação, ainda que, como já dito na primeira, não haja uma coerção ou imperativo externo a exigir que todos os ateus ideológicos e os demais humanistas seculares tornem-se veg(etari)anos e defensores dos DA.

O autor do texto inicialmente divide os valores do AI em negativos – baseados na negação do religioso e do sobrenatural, como a ausência de éticas absolutas no ateísmo, o ceticismo científico e o racionalismo – e positivos – o humanismo secular (HS), em específico a defesa dos Direitos Humanos. E levanta a dúvida sobre a ligação de cada um desses valores com a consideração aos DA.

Primeiro aborda o ceticismo mesclado com o antiabsolutismo moral típico da irreligião. Afirma a princípio que ainda é preciso que o indivíduo se subscreva a um código moral que exerça uma robusta força coercitiva para mudar hábitos essenciais como o consumo. Porém, é necessário esclarecer que hoje em dia o número de vegetarianos e veganos não vem precisando dessa coerção externa para crescer, mas sim da pura consciência ética, que hoje em dia [4] emana muito mais da própria pessoa, a partir da reflexão ético-filosófica com efeitos práticos, do que de coação por outrem.

Se há influência externa, não é uma influência vigilante e punitiva, como o texto parece vislumbrar, mas sim meramente educativa, baseada na exposição de fatos sobre a pecuária e a pesca e o questionamento dialético dos valores do carnismo (ideologia oculta que fundamenta o consumo de produtos derivados do corpo ou secreção de alguns animais), o que induz tanto ao choque entre o hábito e crença de consumo e a realidade como à ação socrática de “parir o conhecimento”.

Em seguida, coloca: “Na ausência de uma clara motivação para mudar algo tão básico, por que fazê-lo?” Clara motivação ou motivações é o que não falta, e ela(s) é(são) baseada(s) fundamentalmente na alteridade, aquela mesma que nos faz reconhecer os direitos e a dignidade de todas as outras pessoas, e, dependendo do indivíduo, também na compaixão e na empatia.

Se há pessoas que só pararão de consumir animais mediante coerção legal, isso não necessariamente diz respeito à conexão (ou ausência dela) entre o ateísmo antiabsolutista moral e os DA, mas sim à dificuldade e/ou resistência da pessoa de assimilar novos valores progressistas. Se esses indivíduos existem, isso não anula o fato de que inúmeros outros estão aderindo ao veg(etari)anismo ético sem a necessidade de qualquer controle social.

Em relação à frase seguinte, sobre a indiferença do ceticismo ético em relação a romper ou continuar com o especismo, ele por si só não induz à ruptura com a velha ética antropocêntrica, mas facilita muito, visto que, como dito, permite ao indivíduo a flexibilidade de adotar uma ética mutável e progressista, ao contrário de muitas religiões, que dificultam essa adoção.

Adiante, o autor mescla ceticismo científico e racionalismo e prossegue afirmando:
“Não somos levados aos hábitos alimentares por conclusões racionalistas, isto é, não comemos carne por entendê-la necessária. A decisão sobre o que comer – assim como muitas outras decisões de prática social – é pautada antes por valores culturais. Se a decisão fosse fortemente racionalista, comeríamos cachorros e gatos no ocidente com a mesma naturalidade com a qual comemos vacas e porcos; evidentemente, não é esse o caso.”

Não é o caso de milhões, ou mesmo bilhões, de pessoas. Para elas, a cultura per se não é o exclusivo indutor do consumo de animais. Há todo um aparato desinformativo, que vai desde o bombardeio aos telespectadores de TV e leitores de jornais e portais online com reportagens tendenciosas, sobre como o vegetarianismo seria uma dieta “que inspira cautela”, até as orientações errôneas antivegetarianas dadas por nutricionistas que desconhecem ou pouco sabem sobre o tema da Nutrição Vegetariana.

Isso sem falar nas campanhas alienantes que podem se tornar cada vez mais comuns, como o Serviço de Informação da Carne e o extinto Instituto Pró-Carne. Além dos preconceitos nutricionais de senso comum que ainda rondam entre a sociedade e motivam que, por exemplo, pais forcem seus filhos a comerem carne a contragosto ou vegetarianos que, mal orientados nutricionalmente, contraem alguma doença ou deficiência de ordem alimentar voltem ao consumo de animais.

Tudo isso induz as pessoas a crerem de fato que consumir animais seria essencial e não fazê-lo prejudicaria muito a saúde. E isso realmente inibe muita gente de se tornar vegetariana ou vegana e prestar um respeito mais abrangente pelos animais não humanos e os faz continuar comendo carne. São esses preconceitos e manipulações, pertinentes ao tema da Ciência e da Razão e não mais à cultura, que o ceticismo científico, em (futura) aliança com a militância veg(etari)ano-abolicionista, poderá confrontar e desmontar – aliás, já está fazendo-o, vide alguns artigos meus.

Continuando o texto, coloca-se que “encontram-se sim nos valores negativos do ateísmo majoritários motivos para abandonar a conduta onívora; mas, sem dúvida, encontram-se na mesma quantia motivos para abandonar a conduta vegetariana”. Este artigo de réplica desde já demanda ao autor da resposta a mostrar, de forma mais detalhada do que o exposto nela, quais seriam esses motivos para abandonar o vegetarianismo ou o veganismo enquanto hábito de consumo de orientação ética.

Na colocação seguinte, de que “[n]a questão moral, o ceticismo leva a entender a questão como uma escolha arbitrária”, isso é verdade. Mas o ceticismo também permite à pessoa concluir que uma das alternativas é mais coerente que a outra, mesmo ambas sendo defendidas com seus melhores argumentos possíveis. E a consequência lógica seria escolher a opção mais sensata.

Sobre a afirmação de que os animais “também não foram feitos para uma vida de fraternidade conosco”, ignora-se ali a qualidade deles de sujeitos morais. Não é necessário que nós seres humanos convivamos com eles em fraternidade, tal como a Bíblia cristã fala em Isaías 11:7 [5] sobre predadores e presas viverem juntos e em comunhão, mas sim simplesmente que os respeitemos em seu direito de não serem propriedade humana e em seus interesses individuais enquanto seres sencientes e deixemo-nos no seu canto, vivendo e morrendo ao sabor da Natureza.

O passo seguinte do texto é mudar para os valores positivos – no caso, o que é defendido pelo humanismo secular. É posto então que não há relação intrínseca entre, por exemplo, feminismo e oposição à pecuária, ou entre defesa de civis desarmados em zona de guerra e oposição ao morticínio de animais “de consumo”. Acontece que a conexão entre os princípios do HS e os DA não está na realmente questionável relação direta entre os temas defendidos por cada um, mas sim nos alicerces éticos de ambos. De tal maneira que o HS poderá, num futuro indeterminado, evoluir para Supra-Humanismo (ou outro nome que definisse melhor a nova ideologia pós-humanista), algo que defenderá simultaneamente os animais humanos e não humanos e o meio ambiente como um todo.

Ser humanista para com os animais não humanos da mesma forma que para com os humanos não é questão de exigência lógica, mas de coerência. Porque, reiterando o que foi dito no texto sobre AI e DA, é muito contraditório um humanista que já tomou conhecimento do direito dos seres sencientes de não ser propriedade crer que os princípios do HS, apesar de todas as semelhanças com os DA, não podem ser aplicados aos animais não humanos na medida das diferenças entre eles e os humanos [6].

O autor em seguida faz uma colocação relevante: o texto anterior não chegou a tocar na palavra especismo – justifico aqui que não foi necessário usá-lo [7]. Prossegue afirmando, em seu último contra-argumento, que o termo em sua definição não diria por que é errado ser especista, colocando em seguida:

“Ainda se espera uma argumentação consistente que defenda a igualdade das espécies: até lá, a infâmia do especismo será algo altamente duvidoso. Além disso, como evitar um mínimo especismo? Mesmo os vegetarianos apenas alargam um pouco a lista de espécies que têm o respeito necessário para não serem comidas.”

É necessário esclarecer: a igualdade entre as espécies animais na filosofia abolicionista é determinada basicamente pela senciência, que é a habilidade de grande parte dos animais de sentir dor, sofrer, manifestar emoções e ter consciência de que está vivo e lhes confere interesses individuais ausentes em espécies e reinos não sencientes, como os de querer continuar vivo e não sofrer.

E a saber: vegetarianos e veganos não comem animais de nenhuma espécie. Se alguns ainda consomem laticínios e ovos e produtos não alimentícios com ingredientes de origem animal, é porque o vegetarianismo é a fase alimentar de transição ao veganismo, a qual começa no parar de comer animais mortos e se conclui no vegetarianismo estrito, que por sua vez realmente isenta o prato de qualquer alimento de origem animal.

Além disso, na grande maioria dos casos de escravidão animal, as espécies exploradas – como espécies de mamíferos, aves, anfíbios, peixes, moluscos e crustáceos – têm sua senciência já conhecida pelo ser humano. E o especismo, que nega os direitos desses animais enquanto seres sencientes e os rebaixa a objetos/produtos cujo sofrimento seria nulo ou irrelevante, “permite” que sejam explorados. Ou seja, ser antiespecista é mais fácil do que se imagina no senso comum.

Em relação a matar outros animais em certas situações em vez de considerá-los também sujeitos de uma vida, convém expor:
a) Insetos e outros animais menores são mortos por veg(etari)anos apenas quando representam ameaça à integridade físico-biológica dos humanos. Se matam pernilongos que voam no quarto, é porque algum desses bichos pode ser vetor de algum micro-organismo perigoso à saúde humana.
b) As mortes de animais rasteiros ou pragueiros na agricultura são contingenciais e inevitáveis, e não podem ser elevadas a uma questão de preocupação dos DA porque não dizem respeito a tratar animais como propriedade, mas sim a algo que (ainda) não pode ser evitado.

É de se reiterar que há conexões lógicas entre o ateísmo ideológico e os Direitos Animais. Um ateu-ideológico não é obrigado a se tornar veg(etari)ano e defender os animais não humanos contra a opressão, mas fazê-lo é parte da evolução e completamento de sua condição de racionalista, cético, humanista secular e opositor das “morais absolutas”.

Este artigo e o anterior, ao contrário do que o texto aqui respondido tenta argumentar em sua consideração final, não intencionam coagir os ateus-ideológicos e demais humanistas seculares. Mas sim questionar a condição ideológica daqueles que prezam pelo progresso ético, pela Razão, pela Ciência, pelo ceticismo e pelo HS mas negam respectivamente a inclusão dos animais não humanos ao progresso ético de nossa sociedade, defendem de forma passional o consumo dos mesmos, contrariam ou ignoram os cada vez mais numerosos tratados científicos apoiadores do vegetarianismo e da senciência animal, usam de falácias lógicas para defender o consumo de animais e têm seus hábitos baseados em valores opostos aos princípios do HS.

Notas:

[1] Åsa Heuser e Camilo Gomes Jr. são dois exemplos de ateus que defendem que o ateísmo transcende a simples não crença em deuses e inclui o humanismo secular e o ceticismo científico.

[2] É perceptível que alguns carnistas questionam os Direitos Animais como se sua eventual sanção fosse a imposição de uma moral absolutista. Porém, nenhum teórico de Direitos Animais consideram os DA como o limite ou auge da evolução ética das sociedades modernas. Encaram-nos sim como apenas mais um passo importante na eterna mutação do zeitgeist moral, que será sucedido por outros avanços futuros (como, prevejo eu, a legalização da poligamia e do nudismo casual).

[3] Há inúmeros tipos de falácias lógicas, que podem ser contados às dezenas, na argumentação carnista-especista. A saber: falácias do espantalho, falácias naturalistas, ad hominem, falsas dicotomias, falsas analogias, apelos à autoridade anônima, non sequitur, reductio ad absurdum, apelos ao ridículo, declives escorregadios, distorções de fatos, tu quoque, apelos à autoridade, generalizações apressadas, apelos à tradição, apelos à multidão etc.

[4] Fala-se “hoje em dia” neste artigo por se levar em consideração um provável futuro em que a produção e consumo de alimentos de origem animal sejam tornados crimes contra a vida animal, dada a perspectiva futura de politização da militância abolicionista.

[5] “A vaca e a ursa pastarão juntas, seus filhos se deitarão juntos, e o leão comerá palha como o boi.

[6] Entenda-se como sendo essas diferenças, por exemplo, a inaplicabilidade de direitos civis e políticos e de alguns direitos humanos (como o à nacionalidade e ao asilo político) aos animais não humanos. O único direito que lhes fará a diferença é o de não ser propriedade, até porque este implica todos os demais direitos concernentes à relação unilateral humanos-não humanos – à vida, à integridade física, à liberdade, ao respeito a seus interesses individuais etc.

[7] Depois da publicação da segunda parte deste artigo, o autor da resposta à primeira, em comentário ao Consciencia.blog.br, esclareceu que a alegação de falta de referência direta ao especismo era pelo texto dele, não pelo meu.

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