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Porta-voz alfa: a história exemplar do Projeto GAP

25 de fevereiro de 2012
21 min. de leitura
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Foto: Egberto Nogueira/Revista Piauí

Por Luiz Henrique Ligabue

Caco, um sujeito forte e peludo de 27 anos, está limpo. Há mais de quatro anos conseguiu largar o Prozac sem que as alucinações voltassem. Os demônios se foram, mas pelo resto da vida estará sujeito a recaídas. Usa Florais de Bach de maneira profilática, para reduzir a ansiedade. O maior problema de Caco é a automutilação.

Criado em berço esplêndido, rico como poucos, Caco foi adotado ainda bebê por um casal de imigrantes tchecos e se tornou o temporão mimado. Nunca precisou dividir o quarto e tinha todas as vontades atendidas. Na infância, passeava por Curitiba numa Mercedes-Benz. Mas não era metido, ao contrário. Simpático, cheio de dentes, era só sorriso. Adotado pelos maiores fabricantes de material usado na produção de fraldas, vivia na sede da empresa da família. Adorava o pequeno zoológico que havia por ali e era mantido como hobby pelos pais. Foi justamente ali que suas dificuldades começaram.

Aconteceu na adolescência, quando recebeu companhia feminina pela primeira vez. Ciumenta do namorado garboso, a destrambelhada companheira mordeu a mão da sogra. Resultado: Caco foi posto na solitária. Mas não perdeu as mordomias. Passeava pela fábrica, distribuía abraços e sempre dava um jeito de fugir. Numa escapada, ficou animado demais: pulou sobre carros estacionados, invadiu salas e brincou com computadores e papéis do escritório. Só sossegou quando o pai adotivo chegou e o abraçou.

À medida que crescem, chimpanzés passam de bebês peludos a enormes problemas, com unhas, dentes, pés e mãos potentes. Com Caco não foi diferente. O fato de ser um Pan troglodytes se impôs ao mundo quando ele tinha 10 anos e teve de ser transferido para o zoológico de Curitiba.

Como não se adaptou, foi transferido de Curitiba para Sorocaba. Ganhou uma jaula diminuta de chão de cimento e paredes de grade. Pior, ficou sujeito à visitação pública, à exposição total. Caco não entendia por que sua vida tinha descambado daquele modo. As pessoas chegavam cheias de alegria, fazendo micagens, querendo brincar, e ele respondia com montes de cocô, socos e movimentos frenéticos. As pessoas riam e ele ficava mais nervoso, parecia querer matá-las, e aí achavam graça. Angustiado, começou a enfiar as unhas na canela, cada vez mais forte até conseguir arrancar um grande pedaço de carne. Berrou, berrou e não parou mais. As feridas, cada vez maiores, infeccionaram. Os visitantes já não viam graça nele.

Caco começou a receber doses de Valium. Ficava sonolento, abatido, bobo. Recebeu a medicação por seis anos, até ela não fazer mais efeito. As mutilações voltaram a ocorrer a um intervalo de 45 dias, no máximo. Um veterinário convenceu diretores do zoológico que a única saída de Caco estava no Santuário dos Grandes Primatas, nos arredores da cidade. O Santuário de Sorocaba faz parte do Great Ape Project, o GAP, um movimento internacional que luta pelos direitos dos grandes primatas – bonobos, chimpanzés, gorilas e orangotangos.

Para se chegar ao Santuário de Sorocaba, é preciso pegar uma saída de terra quase imperceptível na altura do quilômetro 90 da rodovia Castelo Branco. Na paisagem tomada por colinas desponta um complexo de muros de concreto chapiscado que lembra uma penitenciária. Seguindo o caminho, há um corredor de muros altos. Mais à frente, há um gramado com cerca elétrica, onde chove barro. É Luke, um gigantesco chimpanzé de 17 anos que recebe os convidados com bolas de terra. Um pouco mais adiante, numa passarela gradeada, está Vitor: alto, forte e ameaçador, no vigor de suas 14 primaveras. Vitor esmurra as grades, cospe, berra, deixa claro quem manda ali, mesmo tendo apenas um braço.

Luke é goiano, tem propensão para as artes e trabalhou no circo. Gosta de desenhar desde criança, de correr, de brincar, de desamarrar os tênis dos visitantes, além de atirar coisas nos transeuntes. Durante algum tempo, implicou com humanos, mas suas restrições diminuíram bastante nos últimos tempos. Já chimpanzés machos ele não atura nem de longe. Vive em um gramado de 7 mil metros quadrados. Como é esperto, percebeu que é melhor respeitar a cerca elétricado que viver atrás de grandes muros.

Foto: Reprodução/Revista Piauí

Vitor, o grandão, perdeu o braço esquerdo ainda bem novinho, no criadouro onde nasceu, no Paraná. Não se sabe a causa da mutilação, porém a infecção foi tamanha que tiveram de amputar. Perdeu valor como mercadoria, e foi vendido para um circo como se fosse uma peça de mostruário, com o desconto compensando as avarias da exposição. A cara de bravo e os modos rudes são fachada para espantar os desconhecidos – e escondem um coração mole. Ele recebe os amigos com um grande sorriso.

Caco estava ultrassensível quando chegou ao Santuário, no Natal de 2001. Qualquer coisa poderia desencadear uma nova crise, que fazia com que os outros chimpanzés surtassem. Chamado para avaliar o caso, um psiquiatra receitou Prozac líquido. Como chimpanzés amam tomar remédios – mais um elo perdido da evolução? –, o efeito foi rápido. Oito meses mais tarde, ele aceitou a companhia de July, uma chimpanzé de 18 anos que viveu em circos e zoológicos. Paciente e meiga, ela tem olhos castanho-claros e, apesar do buço e cavanhaque brancos, é bem coquete: gosta de ser cumprimentada com beijos no dorso de sua mão. July também venera refrigerantes; faz de tudo por uma garrafa pet das grandonas. Foi essa simpática figura que ajudou Caco a superar as fases mais difíceis do tratamento. Mas a cara gorda e o olhar sofrido atestam o que ele passou.

July o ajudou, mas tem medo dele. Apesar de não se mutilar mais, Caco se desespera ao ver humanos desconhecidos. Começa a bater em tudo, se joga no muro, nas grades, não enxerga o que está à sua frente, nem July, coitada. Por isso, moram num dos recintos mais afastados do Santuário, um canto tranquilo, com vista para um pequeno lago. São felizes a seu modo, cada um na sua, com momentos de carinho mútuo.

Yuri, um indivíduo meio curvado de 30 anos, é um marco na história simiesca nacional: até ser resgatado, em maio de 2009, era o último chimpanzé circense em atividade. Gosta muito de humanos porque passou a maior parte da vida literalmente rodeado por eles – e por motos. Yuri é motociclista especializado em Globo da Morte. Pilotava uma motoca invocada, motor dois tempos, escape com ponteira, tanque vermelho e rodas de aros pequenos. Botava o capacete, proteções de motocross amarelas, dispensava botas e lá ia ele: vrrruuummm. Pouca gente sabe, mas Yuri torce pela Argentina. Como, aliás, todos os membros da família Ayres, oriunda da margem portenha do estuário do Prata e composta de circenses especializados no Globo da Morte há várias gerações.

Depois de resgatado, Yuri nunca mais pilotou. Hoje vive com Nancy, Lucy e Noelzinho. Logo que chegou, tomou um corre de Nancy. Afinal, era tão somente um estranho. Lucy, que tem 30 anos, é esguia e gosta de andar de pé. Ficava apenas observando Yuri e sua corcunda, adquirida por décadas em jaulas e motocicletas. Acabaram se aproximando. Noelzinho, de 3 anos, o primeiro filho que não foi tirado de Lucy, chegou estabelecendo contato, dando murros nas costas do novato. Pode-se dizer que Yuri vive bem, apesar de não ter mais a adrenalina do Globo da Morte.

Um amigo dos velhos tempos de Yuri é Alex, um argentino que conserva o corpo atlético e a barriga tanquinho. Também oriundo do circo, entende bem espanhol e português, apesar de não conversar em nenhuma das duas línguas por uma mera questão evolutiva: macacos não falam.

Ainda garotão, Alex demonstrou potencial para o picadeiro e logo os humanos providenciaram um jeito de prolongar a carreira sob a lona: arrancaram-lhe todos os dentes. Vivia com o tratador, um grande companheiro de exercícios. Acordava e corria direto para as barras. Nas viagens, costumavam dividir o quarto. Alex ia ao banheiro sozinho durante a noite, sem nunca ter sido acusado de deixar a tábua com respingos, provavelmente por urinar acocorado no vaso. Banheiro de porta fechada, como se sabe, preserva a relação.

Alex gosta muito de humanos, sobretudo de humanas. Só não podem ser mulheres conhecidas, como tratadoras e veterinárias, triviais demais para ele. Quem não gosta dessa história é Carolina, uma orelhuda de 28 anos, ex-companheira de Luke. Ela vive com Alex, por quem é completamente apaixonada e morre de ciúmes. Mas, ao que parece, Alex não se interessa por sexo. Carolina se esforça e até recorre a truques humanos – por exemplo, a técnica usada por Monica Lewinsky para cair nas graças de Bill Clinton. Porém, a mente perturbada de Alex quer apenas loiras, às quais ele não resiste, pondo-se a louvar Onan sempre que as vê.

Outro que tem a mesma predileção por platinadas é Bongo, um angolano gordo e boa praça de 15 anos. Ele morou em Portugal e veio ao Brasil para não ser sacrificado, depois de viver com uma fêmea de bonobo que foi vendida e o deixou sem casa e destino certo. Em Sorocaba, leva uma vida de marajá. Ganhou um recanto espaçoso, com árvore e piscina. Como é voyeur, Bongo fica nas janelas, acompanhando a rotina dos vizinhos Luke e Vitor.

Mas ele não gosta de companhia. Mônica, uma jovem beldade, foi viver com ele e acabou agredida. Justamente ela, uma dengosa que sempre gostou de comida na boca e de cafunés, foi tratada a murros e pontapés pelo brutamontes hirsuto. Ela desconhecia a história pregressa de Bongo, o trauma causado pela separação da fêmea, e a sua preferência pelo biótipo Scarlett Johansson e pelo sexo solitário.

A masturbação frenética é um sintoma comum entre chimpanzés de cativeiro, prática que os faz perder o interesse pelas fêmeas. Bob sabe disso. Ao receber café da manhã, fica excitado e se dedica ao autoerotismo. Desenvolveu uma técnica bizarra, usando os pés, e repete-a seis ou sete vezes ao dia. Ele vivia num circo paupérrimo, e por isso sua idade não é conhecida e se intui o motivo de sua compulsão por comida. Outro hábito de Bob é a leitura, ou melhor, a desfolhação de revistas durante as refeições: são sempre duas, não importando o tema. Talvez Bob preferisse uma leitura de cunho sensual, mas Caras já o satisfaz. Ele contempla página por página e, em vez de virá-las, arranca-as.

Se comparado a Luke, o que atira barro nos visitantes, Bob é café com leite. Quando chegou ao Santuário, era chegado a uma bota de borracha. O calçado o remetia ao antigo tratador no circo, que o levava a passear. Sinônimo de liberdade, as botas viraram pretexto para a masturbação repetida – dez, quinze, até vinte vezes ao dia. O prazer exaure: Luke ficou magrinho, magrinho. Mas ele só gostava de modelos recentes do calçado e, para atrapalhar, tinha ejaculação precoce. Bastava algum tratador encostar o pé com botina nova na grade para que… enfim. O tratamento do desvio se fez pela abstinência, e hoje Bob está recuperado, apesar de alguns deslizes.

Jimmy tem o mesmo fetiche. No seu caso, são sapatos femininos. Como é tosco, despreza bicos finos e saltos Louboutin, preferindo versões utilitárias como a bota Sete Léguas, modelo corrente no GAP de Sorocaba. Viveu onze anos numa jaula que mais parecia uma gaiola. Sua loucura era tamanha que praticou a coprofagia. A batalha por sua transferência começou há uma década, quando o GAP denunciou pela primeira vez o zoológico por maus-tratos. Desde então, uma série de ações na Justiça quase fez de Jimmy um ícone. Seus defensores propugnam que os grandes primatas passem da categoria de objetos de direito, que inclui todos os animais, para um nível intermediário, no qual se beneficiariam de um habeas corpus. Mas Jimmy não quer saber dessa história: desde que chegou, gosta de subir no alto de uma plataforma, para apreciar a vista além-muros, e dormir. Agora come apenas comida – iogurte, frutas, balas – e está sendo apresentado, lenta e canhestramente, a Samantha, que não usa botas nunca.

Os chimpanzés bebem litros de água de uma vez. São sedentos por natureza. Com o contato humano, alguns desenvolvem o paladar e aderem aos refrigerantes, como July, e outros ao álcool, caso de Lilico. Ele tinha fama de violento, mas desde que chegou ao Santuário nunca foi agressivo. A pecha devia estar ligada à sua incontestável feiura. Aos 37 anos, é particularmente bicudo e tem a boca murcha e desbotada. Não é só. É careca, orelhudo, tem sobrancelha grossa e aquele olhar agudo que lhe dá cara de doidão. Sempre foi inquieto. Sua fuga do zoológico de Bauru contribuiu para estereotipar sua imagem de encrenqueiro. Foi encontrado na periferia da cidade, numa mesa de bar, tomando pinga na companhia de três bêbados. Tinhoso, não queria abandonar a mesa, de onde só o tiraram depois de arriar, algumas doses mais tarde.

Têm destaque na lista dos mal-apessoados Tyson e Jeber. São suíços, nunca tiveram uma vida fácil e sofreram para se adaptar ao Brasil. Trabalharam duro no Le Cirque, em Brasília, de onde foram confiscados por maus-tratos. Tiveram os dentes arrancados, foram castrados e viviam em jaulas pequenas, amarrados pelo pescoço e infestados de parasitas. Mentalmente perturbados, aos 21 anos não conseguem conviver com outros chimpanzés. Mas aceitam, com ressalvas, a companhia de humanos. Jeber é mais calmo, enquanto Tyson, um eterno desconfiado, não para quieto.

Mais triste que a história deles só a de Hulk. Além de lhe arrancarem os dentes e o castrarem, o cegaram com um “tratamento” com água fervente nos olhos. Conforme o planejado, ele virou um fantoche, que só saía do lugar conduzido. Fantasiado, foi adestrado para sentar e abraçar quem estivesse ao lado. Cada foto no sofá com Hulk custava 20 reais. Com isso, circulou nas altas rodas e tem foto com muita gente bacana. Fez pontas em novelas, comerciais, frequentou festas, inaugurações, coquetéis, lançamentos. Apesar do nome de brutamontes, é um sujeito de estirpe, educado no rigor.

Ele chegou ao Santuário de Sorocaba em março de 2008. Um cirurgião oftalmológico o operou e, depois de quinze anos sem enxergar, Hulk, com 34, saiu da recuperação segurando a mão de seu tutor, correu sozinho e abraçou um eucalipto. Veio a recuperar 70% da visão do olho esquerdo, não tendo a mesma sorte com o outro lado. Passou a viver com Catarina, que tem trinta anos de labuta em shows e eventos com crianças, e por isso gosta de usar roupas. Pelo amor de Catarina, Hulk aceitou viver intramuros. Preferiu a companhia aos 7 mil metros de grama e cerca elétrica – ele respeitava a cerca, ela não. Aos 37 anos só tem olhos para a amada.

Figura notável é Pedro, um vero alfa dominante. Diferente de seus subordinados, tem sobrenome: Ynterian. Barba branca milimetricamente desenhada, careca e traços marcantes, caso do nariz assaz proeminente. Não é peludo e sempre andou vestido. Apesar dos recém-completados 72 anos, continua na ativa e gosta de usar as mesmas roupas para os dias de labuta no Santuário: tênis de corrida, boné, calça jeans, moletom azul fino desbotado e uma jaqueta corta-vento. Conhece a macacada toda pelo nome, e anda entre eles distribuindo beijos, abraços, comidas e balas. Faz e recebe carinho, enfia a careca na grade para que Billy o beije ou cate alguma eventual sujeira. Tratado com um misto de alegria e reverência, é o chefão do Santuário.

Pedro Ynterian teve uma vida conturbada. Quando entrou na Universidad Católica de Santo Tomás de Villanueva, em Havana, onde nasceu, estudou microbiologia e se meteu em política. Aderiu ao movimento rebelde de Fidel Castro e apoiou a derrubada do ditador Fulgencio Batista. Mais tarde, se voltou contra os comunistas, foi preso, solto e se estabeleceu em Miami, nos Estados Unidos. Participou do atentado que bombardeou o Teatro Blanquita, no México, onde Fidel deveria discursar. Desistiu de voltar para a ilha e acabou no Brasil como representante de uma empresa de testes laboratoriais.

Ficou rico. Anos depois, em 1999, no segundo casamento, adotou Guga, um bebê chimpanzé de poucos meses que era uma graça. A partir das necessidades do temporão, criou o Santuário e encampou a luta contra os exploradores de grandes primatas: os circos e zoológicos. Como luta pela paz, ninguém o hostiliza. Ou melhor, quase ninguém: Charles não o suporta, questão de ódio à primeira vista.

Filho de angolanos, Charles nasceu em Lisboa e chegou ao Brasil aos 8 anos de idade. Foi para o zoológico de Ribeirão Preto e viveu sozinho, exposto ao público. Nunca gostou de desconhecidos e tinha trauma das férias escolares, quando a visitação aumentava. Começou a morder os próprios braços. Aos 21 anos, é um gigante forte, gordo e sisudo que adora veterinários e tratadores. Odeia apenas Ynterian, intensa e incondicionalmente. Já tentou atacá-lo várias vezes. Por dois meses, Charles o cativou na hora em que ele distribuía as refeições. Relaxado, o cubano se distraiu e chegou perto do buraco de entrada das bandejas de alimentação. Charles o tomou brutalmente pelo pulso e Ynterian só se salvou após ter a manga longa arrancada da blusa. Charles insiste em atrair sua vítima dileta. Sempre mostra uma garrafinha, pedindo que lhe dê água na boca.

O Prozac deixou Charles impotente. Vive sozinho porque já agrediu Frances e Queenie, as amigas inseparáveis resgatadas de um zoológico na Bolívia. Como não conseguia se relacionar com as companheiras no cio, mordia-lhes o traseiro. Elas foram as moradoras mais velhas do Santuário. Frances é temperamental e preserva certa jovialidade, apesar de um frondoso buço branco e de seus mais de 50 invernos. Queenie, que morreu há pouco, era baixa, testuda, tinha cãs ralas e ar zen-budista. Viu os pais serem assassinados e passou a odiar todo e qualquer Homo sapiens. Em julho, amanheceu com um sangramento agudo. Como detestava o bicho-homem, não houve tempo para tratá-la. Frances ficou inconsolável.

Pongo também é radicalmente anti-humano. Sua aversão começou aos 5 anos de idade no zoológico de Belo Horizonte. Muito apegado à mãe, foi posto para conviver com outro chimpanzé, de quem apanhou feio. Dois anos mais tarde, foi transferido para um zoológico particular em Fortaleza. Por um problema de superlotação– o zoológico recebeu outros quatro chimpanzés, Peter, Tatá, Judith e Marcelinho –, Pongo passou dois anos numa jaula, humilhado e cultivando animosidade contra o gênero humano. Nunca se recuperou. Em Sorocaba, agrediu July, Carolina, Tuca e Lulu. Tem 25 anos, é obeso, ansioso e guloso. Gosta de observar outros chimpanzés de longe. Com o olhar perdido, conversa com os próprios pés e mãos, no máximo levando um papo com a parede ou outro elemento da paisagem. Tem visões, mas não toma Prozac porque não se mutila.

Chimpanzés sofrem em cativeiro, mas nunca choram. Os de circo são castrados e desdentados para diminuir a agressividade e prolongar a sua vida útil, que vai em média até os 7 anos. Já animais de zoológicos apresentam danos psíquicos devido ao isolamento e à exposição, o que é fatal para eles, seres extremamente sociais – a loucura é praticamente certa. Como cerca de 80% dos seus hóspedes vieram de circos ou zoológicos, o Santuário está mais para um hospital psiquiátrico do que para um spa.

O lugar onde vivem Guga, Cláudio, Emílio, Billy Jr., Carolina, Samantha e Dolores, no entanto, parece um paraíso. À exceção de Dolores, que veio de um circo, todos nasceram e foram criados sem traumas. Guga, o filho temporão de Pedro, tem 12 anos e é o alfa. Inteligente e conciliador, governa com base na amizade. Cláudio, de 10 anos, gosta de desafiar Guga. Quer ser dominante, o que era de se esperar do filho de Gilberto e Lulu, ambos alfa. O problema é que Cláudio quer comandar usando a força e coleciona inimizades.

Já Emílio é uma doçura. Não liga para essa história de hierarquia, é chapa de Guga e amigo das meninas. É uma amizade colorida: copula com as três, já que Guga não é ciumento e permite o amor livre em seu bando. Billy Jr. e Carolina são irmãos. Ela, 9 anos, uma flor de simpatia. Ele, 8, é marrento, vive fugindo dos cascudos de Cláudio, que o persegue, e buscando abrigo ao lado de Guga, que o protege.

Dolores chegou a Sorocaba direto do Beto Carrero World, que por anos disputou com Pedro Ynterian a posse de alguns animais. É piradinha e alvo de Billy Jr., que a persegue. Ela berra e lá vem Guga acalmar os ânimos. Samantha, cheia de personalidade, é especialista em fugas, tornou-se inclusive teste de novos recintos no Santuário. Outra especialidade de Samantha é a procriação: é mãe de Sophia, 2 anos; Sara, 1; e Suzy, 4 meses. Mas como não sabe amamentar os filhotes, será impedida de procriar. Suzy, rejeitada pela mãe, é criada por uma babá humana, que lhe dá mamadeira a cada quatro horas.

Selma, uma mãe humana, ficou compadecida com o descompasso materno entre Samantha e Suzy. A sua paixão por macaquinhos vem da infância, mas a obsessão floresceu ao conhecer Serginho, em 1998, quando foi ao Circo Garcia. Deu um pulo na cadeira ao saber que o pequeno símio estava disponível para fotos e teve um ataque de choro ao segurá-lo no colo. No Natal, recebeu Serginho de presente. Sua família havia se aproximado da turma liderada por Carola, dona do Circo Garcia.

Foi nessa época que Pedro Ynterian, em fase alfa expansionista, começou a procurar Carola: queria que o clã dela se juntasse ao seu. Levada pela amiga ao Santuário, Selma se apaixonou pelo lugar e passou a assessorar o GAP nas ações judiciais. Em uma delas, resgatou Judy, que foi morar com Serginho e Selma. Serginho já recebia a visita de Ana, sua irmã, e de Camila, do bando de Carola.

Serginho continuava crescendo dentro de casa, certo de que era humano. Teve uma crise quando foi transferido, aos 9 anos, para o recinto especialmente construído para ele, com dormitório, sala de almoço, varanda coberta e um vasto gramado com brinquedos de madeira. Adormecia no colo de Selma ou da mãe dela, Vilma, vendo novelas. Adorava A Padroeira, mas não gostava da personagem de Elizabeth Savalla, que batia em crianças – jogava coisas nela. Até hoje dorme em uma cama com colchão de espuma, enrolado em três cobertores, um no meio das pernas, outro na cabeça e o terceiro cobrindo o corpo.

Além de quarto, tem tevê própria porque adora ver filmes, sobretudo animações com bichos. É fã do Animal Planet, mas não gosta dos predadores, a começar pelo jacaré traiçoeiro que ataca o incauto gnu que bebe água. Debalde, Serginho tenta avisar o pobre infeliz, gesticulando e gritando alto. Há algumas semanas, começou a assistir a Uma Noite no Museu, com Ben Stiller, mas aquela coisa de esqueletos de dinossauros correndo o assustou. Também gosta de fazer arabescos com pincel e tinta, e só vai se deitar depois de lavar as mãos. Obviamente, se deleita em escovar os dentes. Brinca com fantoches, um em cada mão, deitado na cama, de pernas cruzadas. Tem vários deles, da Chapeuzinho Vermelho aos três porquinhos e o lobo. Diverte-se com uma lanterna: faz jogo de sombras e toma cuidado para que a namorada Camila não coma suas pilhas.

Como Camila é bagunceira, Serginho evita que ela entre no quarto. Sabe que ela vai destruir o seu colchão. Vaidoso, é mestre em fotos: quando lhe pedem para fazer o “tigrão”, arreganha os enormes caninos que saltam da boca. Tem dentes assustadores.

Ele costuma acordar mal-humorado, pelas 8 horas, para receber leite quente. Depois sai e fica num gramado com Ana, sua irmã mais velha, e com Camila – gosta de namorá-la quando não tem ninguém olhando. No final da tarde, se recolhe para receber o tratamento de luxo: refastela-se numa banheira, com exatos 30 centímetros de água morna, espuma, xampu e creme rinse. Secador com ar quente é obrigatório na fase final. Prefere cortar as unhas à noite, antes de dormir. Aí Selma ou Vilma entram no quarto, e ele pede massagem, após lhe estalarem os dedos dos pés. Ganha por fim um pouco de cafuné na cabeça. É preguiçoso para retribuir. Se alguém insiste, levanta um dedo e esboça três roçadinhas. É macho alfa convicto.

A charmosa Judy também tem seus rituais de beleza, como ovo cru e unhas pintadas. Tem predileção por esmaltes coloridos e odeia manchas: espera a tinta secar de mãos espalmadas. Toma banho de spray de água, apontando os lugares a serem borrifados. Levanta braços, pernas e vira-se para que esfreguem as costas e o bumbum. Dá preferência às toalhas pequenas.

O trabalho de Pedro Ynterian o conduziu à presidência mundial do GAP. Hoje, ele conta cheio de orgulho, o Brasil é um dos países mais avançados no respeito aos grandes primatas. Ynterian conseguiu erradicar o trabalho escravo em circos e fomentou o surgimento de quatro Santuários afiliados ao GAP no país: Sorocaba, com 53 hóspedes; Paraná, com 23; Vargem Grande Paulista, com 5; e Ibiúna, com 2 Pan troglodytes.

Se bem que no filme Planeta dos Macacos o líder dos revoltosos exclame Não!, os símios, repita-se, não articulam os sons. Já Pedro Ynterian tem voz firme e prosódia política. Seu sotaque espanhol e o hábito imutável de comer banana frita em absolutamente todas as refeições ajudam a determinar sua origem cubana e rebelde. “O dia em que conseguirem falar, os macacos poderão viver integrados com os humanos”, disse. Enquanto isso, ele será o seu porta-voz.

Fonte: Revista Piauí

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