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Cana orgânica 'devolve' animais em extinção

30 de janeiro de 2012
7 min. de leitura
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A qualidade dos produtos orgânicos já é conhecida, mas os efeitos da produção desses alimentos sobre a natureza começam a se mostrar surpreendentes. Dez pesquisadores, entre eles biólogos, analistas de solo, especialistas em ecologia e até estatísticos, foram a campo para conferir. Escolheram a Usina São Francisco, de Sertãozinho (SP), que, em 1986, iniciou o Projeto Cana Verde, cujo objetivo era diminuir a dependência dos insumos modernos na produção. Em 94, a empresa iniciou o processo de produção orgânica de açúcar e recebeu o primeiro certificado em 97.

Pertencentes aos quadros da Embrapa Monitoramento por Satélite, da Universidade de São Paulo e da ONG Ecoforça – Pesquisa e Desenvolvimento, esses pesquisadores estão surpresos com o que vêm constatando. O levantamento cientifico da biodiversidade da usina foi iniciado há três anos. Já circulam pela área da usina 247 espécies de vertebrados, entre eles vários animais que estavam em extinção: onça-parda, jacaré-coroa, sucuris, jibóias, tamanduás, lobos-guará, veados e aves de rapina, como falcões e gaviões.

Os 13,5 mil hectares dedicados ao cultivo de cana orgânica são uma porção mínima de espaço em relação ao total do Estado de São Paulo, mas já abrigam 33% de todas as espécies de aves encontradas em território paulista. O levantamento detectou também a presença de 38 tipos de mamífero na área das fazendas que compõem a usina, muitos dos quais não se imaginava que conseguissem sobreviver na região. José Roberto Miranda, biólogo e doutor em ecologia da Embrapa, diz que esse aumento de espécies ocorre porque o processo de cultura orgânica permite a formação de uma cadeia alimentar a mais natural possível e facilita o aumento da biodiversidade (a riqueza em espécies de um ambiente).

O processo de produção orgânico elimina todos os produtos químicos, tanto no solo como no combate às pragas. O fim do uso desses produtos permite a sobrevivência de várias espécies antes eliminadas. Os fungos, por exemplo, que antes eram eliminados com o uso de produtos químicos, agora alimentam insetos, que alimentam pequenos répteis, que alimentam aves, que alimentam animais maiores. E assim forma-se uma cadeia alimentar balanceada.

O aumento do número de animais serve, inclusive, para combater as próprias pragas na lavoura. Leontino Balbo Júnior, diretor comercial da Native, a empresa que comercializa os produtos orgânicos do grupo Balbo, diz que “inseto não é praga; só passa a ser quando sai do equilíbrio”. Quando isso ocorre, são criados nos laboratórios da usina outros predadores desses insetos para que se restabeleça o equilíbrio. Inventário ecológico Miranda diz que três coisas são essenciais para o desenvolvimento do reino animal: alimentos, abrigo e condições para procriação. Essas três caraterísticas são encontradas na cultura orgânica da cana, o que não ocorre nas lavouras tradicionais. O biólogo da Embrapa diz que, nos canaviais tradicionais, os produtos químicos já eliminam grande parte das espécies. Outras são eliminadas pelo sistema de colheita.

O fogo cruzado -vem de todos os lados, para evitar grandes incêndios- não permite a fuga de animais e elimina toda a possibilidade de procriação. Miranda exemplifica com as formigas. Uma cultura tradicional de cana tem apenas duas espécies de formigas, e uma delas é a saúva, que tem seu habitat bem abaixo do nível do solo, o que lhe dá proteção. Em um canavial orgânico, o número de espécies de formigas sobe para 20, diz ele. O aumento na quantidade de espécies não significa, no entanto, uma elevação no total de formigas no canavial. Elas disputam espaço e algumas, inclusive, são predadoras de outras.

Miranda diz que está sendo feito um inventário ecológico de espaço e de tempo, no qual são verificadas a existência e a quantidade de animais na área e quais deles estão adaptados ou apenas “de passagem”. Essa investigação de tempo quer verificar, por exemplo, porque aumentou o número de animais migratórios para a fazenda, principalmente o de aves. Quer verificar, também, se a onça-parda encontrada na área está ambientada ou se foi vista por acaso. A sobrevivência desses animais está garantida também pelos cuidados implantados nas fazendas da usina. Foi feito um reflorestamento de 1 milhão de árvores, há a conservação das matas ciliares e a preservação dos lagos e das nascentes de água. A manutenção de animais nessa área é facilitada, ainda, pelo aumento das matas nativas -são 186 hectares atualmente, 270% a mais do que em 1987. Corredores interligando as matas dão maior mobilidade aos animais. Já que o elo final da cadeia predadora é o homem, a fazenda teve de colocar 40 quilômetros de cerca para impedir a entrada de caçadores e de pescadores. Além disso, é feita uma ronda para controlar a presença de estranhos.

As principais lições aprendidas pelos pesquisadores, segundo Miranda, é como uma monocultura orgânica pode ter uma biodiversidade tão grande e como é grande o número de animais que são capazes de se alimentar da cana. As matas vizinhas aos canaviais têm rastos de folhas de cana transportadas por animais, principalmente os macacos-prego, diz ele. Outro fator intrigante é que os grandes carnívoros, que vieram de remanescentes florestais, também estão se adaptando a essas áreas de canaviais. As câmaras colocadas pelos pesquisadores na área da usina já captam muitos animais acompanhados pelos filhotes. Isso mostra que eles não estão aí por acaso, mas que já se adaptam a esse ambiente, diz Miranda.

Sistema aumenta a produtividade

A Usina São Francisco não vê crescer apenas o número de espécies de animais em extinção com a plantação de cana orgânica, mas também a produtividade das fazendas. No ano passado foram produzidas 98 toneladas de cana por hectare, 15% mais do que a média do Estado de São Paulo.

Chegar a essa produtividade, no entanto, custou investimentos, que já somam R$ 32 milhões. Na passagem da cana tradicional para a orgânica, a produtividade despencou porque o canavial perdeu os benefícios da cultura tradicional, mas ainda não tinha os da orgânica, diz Leontino Balbo Júnior. “Era de perder o sono.” Foram cinco anos para o desenvolvimento de máquinas e caminhões que não compactassem o solo durante a colheita. Essas máquinas, quando entram no canavial, têm os pneus praticamente esvaziados, aumentando a área de absorção na terra e diminuindo a compactação. A não-utilização de produtos químicos fez as fazendas desenvolverem predadores naturais para as pragas. Esses predadores são criados em laboratórios e, em alguns períodos do ano, até 1 milhão deles são liberados por dia nas lavouras.

A usina tem altos custos, ainda, na obtenção de certificações. Para cada mercado que opera é necessário provar que o produto é orgânico, que há segurança alimentar e que a produção está dentro dos padrões éticos, inclusive com os próprios funcionários. A São Francisco é a maior produtora mundial de açúcar orgânico, distribuído com a marca Native. Café e suco de laranja também já fazem parte da linha Native de orgânicos. Os preços externos para esses produtos são bons, mas as dificuldades nas exportações são muitas, segundo Balbo. O preço de uma tonelada de açúcar no mercado externo é de US$ 300. Mas esse produto só chega à Europa por US$ 900. Só de impostos -leia-se barreiras comerciais- são US$ 541. Além disso, os custos de exportação e das certificações exigidas são elevados. O mercado externo de açúcar orgânico é de 70 mil toneladas e o produto é basicamente utilizado em processos industriais. O potencial de produção já chega a 200 mil toneladas.

No mercado interno, a principal barreira para o aumento do consumo de orgânicos são as grandes margens dos supermercados, que tratam esses produtos como “um nicho”, diz o diretor da Native. No caso do suco de laranja, esses estabelecimentos chegam a colocar uma margem média de 70%. Em alguns casos, a margem é de até 110%, o que encarece muito o produto para o consumidor final. “Essa referência de preços está errada. Não fomos nós [os produtores] que a fixamos”, acrescenta.

Fonte: Povos Indígenas do Brasil

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