EnglishEspañolPortuguês

O silêncio dos responsáveis

9 de setembro de 2011
5 min. de leitura
A-
A+

Desde o ano de 1981 estudo e trabalho com educação, exercendo dentro da escola várias funções. Nunca presenciei, durante esse período, em lugar algum, inclusive dentro da universidade, qualquer discussão sobre a ética no trato com os animais ou sobre os seus direitos. Isso não é nenhum absurdo, levando-se em conta que, apenas recentemente, esses temas estão conquistando e despertando o interesse das pessoas.

Alguma coisa, sim, sobre “tratar bem os animais”, mas sempre numa referência restrita aos domésticos ou em extinção. Essa ausência não é o mesmo que dizer que os animais estiveram ou estão fora dos currículos escolares. Nos interessa aqui é saber como esses seres são apresentados e quais representações sobre os mesmos ajudamos a construir por diversos meios, seja nos livros didáticos; na existência de viveiros e seus pássaros cativos; nas aulas práticas dos laboratórios de ciências ou de biologia; nas excursões aos zoológicos; nos alimentos comercializados pelas cantinas; ou mesmo, nas aulas sobre “alimentação saudável”, quando, então, anunciamos uma dependência completa e inquestionável da proteína animal.

Aproximar desses temas com abertura e criticidade, buscando transformá-los ou “propor que o sistema de exploração animal, para fomento dos interesses e negócios humanos, seja abolido”, é mexer em “pregas morais” e dogmas, como brilhantemente exposto por Sônia T. Felipe  (2010,p.12). A meu ver, essas dobras profundas permanecem intactas até agora, devido aos altíssimos muros, inclusive com isolamento acústico, que nos separa do interior das “indústrias” que transformam a “matéria prima” (animais) em peças, acessórios da moda, cardápios, ingredientes culinários, além de outras “utilidades”.

Sabendo disso pergunto como desnaturalizar a forma como a questão animal é abordada nos currículos, explícitos e ocultos, dentro da escola? A resposta é muito complexa, pois estamos diante de um estranhamento daquilo que culturalmente aprendemos na família e na escola, para citar duas grandes referências de nossa socialização primária. Essas duas instituições contribuem, mesmo que de forma inconsciente, para a manutenção de um sistema produtivo muito bem estabelecido com seus valores entranhados em cada um de nossos poros.

Ele oculta, maquia e embala o produto final, da forma mais limpa possível, para que esse nos seja apresentado como algo saudável, clean e sofisticado. Somos, então, poupados de assistir às incômodas etapas do processo produtivo que, invariavelmente, é perverso, cruel e repugnante. Afinal, longe dos nossos olhos, das nossas mentes e dos nossos ouvidos, fica mais palatável e mais fácil apreciar e consumi-los na forma de produtos e alimentos. É melhor desconhecer o que se passa no interior do sistema, pois à medida que o conhecemos, a responsabilidade recai sobre nós.

Ao longo de nossa história, aprendemos e nos aperfeiçoamos pela dor, pelo frio, pelo medo, pela fome. Essas experiências marcantes constituíram uma memória e foram elas que fizeram com que a humanidade evitasse certas experiências e descobrisse outras formas de viver. Nessa perspectiva, todo afastamento, silêncio e a maquiagem em torno do sofrimento animal, imposto pela indústria, contribuem para que não haja em nós memória, sensibilidade e referência, e, com isso, não haja mudança. Contudo, nossas percepções, sensibilidades e mesmo o nosso senso moral e de justiça, são passíveis de mudanças, para melhor ou para pior.

Norbert Elias (1994), sociólogo alemão, autor do livro Processo Civilizador: a história dos costumes – analisa, partindo do século XIII, como os homens se tornaram educados e começaram a tratar-se com boas maneiras. (Ressalto que o termo processo não significa necessariamente evolução ou progresso. Afirma Elias que não há um modo de se fazer civilizado ou incivilizado, mas que esse conceito “expressa a consciência que o Ocidente tem de si mesmo”). Demonstra que o padrão de comportamento humano muda gradualmente, como por exemplo, o sentimento de vergonha e delicadeza, aquilo que a sociedade exige e proíbe e como no conjunto move-se o patamar do desagrado e do medo. Observa também que muitas mudanças vieram de pessoas isoladas e, apesar disso, deram origem a instituições e formações que nem foram pretendidas ou planejadas.

A escola, mesmo com as suas limitações, pode dar início a grandes mudanças. Ela trabalha com ferramentas mentais que deveriam suscitar em seus estudantes, o espírito investigativo, a reflexão, a criticidade, a problematização e o estranhamento em todas as áreas, inclusive no trato com os animais não humanos. O seu silêncio não é inocente, já que hoje dispomos de informações e conhecimentos que podem fazer um contraponto a atual situação. Luc Ferry  (2009, p.75, nota10) observa que a literatura americana e alemã sobre o direito dos animais é de uma abundância e riqueza impressionantes, citando, inclusive que, uma bibliografia recente precisou de mais de seiscentas páginas para recenseá-la.

Para finalizar, lembro um fato que ocorreu em um auditório repleto de alunos do Ensino Médio. Acionei o contador de animais mortos por segundo (disponível em www.plataformaterraqueos.org.br ou em outros sites de busca). Avisei aos alunos o que iria acontecer e, no momento em que se iniciou a contagem em tempo real, houve um alvoroço no auditório. Os alunos pareciam estar diante de uma grande novidade. Deram-se conta da carnificina diária em que estamos mergulhados. Qual a razão do espanto? Até então, não conseguiam fazer a conexão entre a necessidade de tantas mortes e o estilo de vida que adotavam.

Fui demonstrando que a partir do momento que acordamos, durante os sete dias da semana, em tudo que comemos e utilizamos para o conforto e prazer, depende da morte ou da escravidão de um animal. Tenho certeza que muitos precisaram apenas desse empurrãozinho da escola para, a partir dali, com mais autonomia, buscar conhecer sobre o assunto.

Sobre tudo o que abordei, Leon Denis  (2010, p.172), profere um questionamento desafiador: “Teriam os direitos animais força pedagógica para reverter esse processo de banalização do mal e coisificação da vida?”. Respondo a essa indagação com um responsável e categórico sim.

Referências:

FELIPE, Sônia T. Direitos Animais: desdobramentos das pregas morais. In: ANDRADE, Silvana (org).Visão Abolicionista: Ética e Direitos Animais. São Paulo. Libra Três, 2010.

FERRY, Luc. A nova Ordem Ecológica: a árvore, o animal e o homem. Rio de Janeiro:DIFEL,2009.

DENIS, Leon. Direitos Animais: um novo paradigma na educação. In: ANDRADE, Silvana (org).Visão Abolicionista: Ética e Direitos Animais. São Paulo. Libra Três, 2010.

Você viu?

Ir para o topo