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Cultura da violência

8 de setembro de 2011
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Há uns anos atrás uma experiência marcou minha atuação na militância como educadora e militante em Defesa dos Direitos Animais. Sempre sou convidada a ministrar palestras em diversos espaços educativos formais e não-formais, coisa que faço com prazer, para além da minha atuação profissional como educadora da rede pública.

Compartilho minha experiência como convidada a realizar atividades educativas em Centros de Socioeducação, espaços onde ficam mantidos adolescentes infratores. Já tinha realizado duas ou três atividades educativas neste espaço, no momento em que atuávamos intensamente em defesa do cumprimento da lei municipal que proíbe a apresentação de animais em circos na cidade. Neste período, a justiça tinha concedido liminar ao circo instalado, permitindo a apresentação de seus animais, mesmo com a lei municipal aprovada. Enfim, realizamos dois encontros com estes adolescentes, mostrando a realidade dos animais explorados em circos. Fiquei impressionada como estes adolescentes, na época um grupo pequeno, alojados em local provisório e oriundos de cidades próximas além da sede, se identificaram com a situação dos animais nos circos. Argumentaram, até mesmo, que os animais estavam presos sem nada ter feito de errado, diferente deles, que estavam presos por terem cometido infrações. A privação da liberdade, sentida por estes adolescentes, foi comparada com a situação de animais inocentes.  Fiquei muito satisfeita quando fui informada por uma das funcionárias do local que, mesmo tendo ganhado ingressos para os meninos irem ao circo com animais, decidiram boicotá-lo, diante de tudo que debatemos. Até um teatro de fantoches sobre os circos com animais foi elaborado com o apoio de uma das educadoras.

Um ou dois anos depois fui novamente convidada a realizar uma atividade educativa nesta instituição, situada em sede maior, com mais estrutura e consequentemente, mais adolescentes, oriundos de diversos municípios, não somente da região de entorno. O nosso tema de mobilização na época eram os rodeios na cidade. Levei vídeos sobre o assunto, que mostravam as torturas sofridas pelos animais nestas tristes arenas. Os adolescentes, desta vez, tinham um perfil bem diferente do que eu conheci anteriormente.

Ao exibir fotos e vídeos sobre torturas contra os animais nos rodeios, os meninos riam de forma assustadora, se divertiam, comentavam entre eles coisas similares que faziam os seus animais. Foi uma festa macabra para eles, ali confinados, assistirem as cenas de violência contra os animais. Foi como que uma válvula de escape para eles, reconhecer a tortura contra os animais como parte de suas vidas de suas experiências, como uma espécie de iniciação à cultura da violência.

Fiz uma explanação frustrada sobre crimes ambientais, maus tratos, pois o tema continuou sendo encarado pelos adolescentes como objeto de diversão e de trocas de experiências de violência entre eles. Para finalizar a atividade, buscando não transparecer minha tristeza com a reação deles (mesmo prevendo algo do tipo, num ambiente como este), exibi outro vídeo que tinha como tema uma campanha em defesa de crianças vítimas de violência doméstica. O vídeo mostrava vários exemplos de cuidados de animais com seus filhotes e no final uma frase acompanhada de uma criança recém-agredida: “Algumas crianças gostariam que seus pais fossem animais”.

Os comentários cessaram e o silêncio dominou a sala. Vários adolescentes buscavam enxugar rapidamente as inconvenientes lágrimas que brotavam em suas faces, da forma menos perceptível possível aos seus colegas, sem perceber que a reação era generalizada. Foi o momento em que estes meninos expressaram alguma sensibilidade. Só posso inferir que esta reação se deve ao fato deles terem se identificado com a criança agredida no vídeo. Saí dali com o coração dilacerado, pensando na história de vida de cada um destes meninos que num momento anterior riam e se divertiam com as cenas de violência contra os animais e logo depois não conseguiam conter suas lágrimas diante de uma só cena de violência doméstica contra crianças.

Como educadora, penso que estes meninos passam por nossas escolas, por nossas aulas, de uma forma ou de outra, e muitas vezes não queremos saber muito da vida deles. Quantos casos poderíamos  ter ao menos identificado de forma precoce, acionando inclusive os órgãos de proteção à criança e ao adolescente, seja para encaminhar investigações de violência contra elas mesmas, crianças, ou ainda, para encaminhar casos de violência delas contra animais. A cultura da violência está tão próxima de nós, que quando nos deparamos com ela de forma nua e crua, quando buscamos fazer a conexão entre sofrimento animal, humano e ambiental, o sentimento de impotência vem, mas precisam ir embora, para podermos levantar e prosseguir.

Não fui mais a estas instituições que mantém adolescentes infratores, não por vontade própria, mas porque não fui mais convidada. Se eu for chamada novamente, já sei que a abordagem será diferenciada, em defesa da vida, humana e não-humana. Um desafio, trabalhar a cultura da violência com um grupo de meninos que são fruto dela, onde muitos já tiraram vidas humanas e a maioria já são torturadores de vidas não-humanas.

Fico pensando nos profissionais que trabalham nestas instituições, quanta estrutura para atuarem dia após dias com esses meninos. Nas famílias destes meninos ou no que restaram delas. E no mais triste de tudo, penso nos que não tiveram voz nenhuma nessa história, em todos os animais que foram vítimas desta cultura de violência, encarados como objetos de treinamento e aprimoramento de como torturar vidas.

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