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Bicho-Homem

5 de julho de 2011
4 min. de leitura
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Juro por deus que uma vez comprei a revista Playboy por causa de uma reportagem anunciada na capa. Falo sério, foi em setembro de 2000, quando o então editor sênior Dagomir Marquezi – nosso colega aqui na ANDA – escreveu uma matéria pra lá de intrigante, por ele protagonizada um mês antes, nas dependências do zoológico de Bauru. A reportagem chama-se “Bicho-Homem” e está publicada na edição 302 da Playboy.  Para resumir a ópera, o repórter passou um domingo preso em uma jaula, sendo exibido como típico exemplar da espécie Homo sapiens, ou, como ali anunciado, o “animal mais perigoso do mundo”.

Na placa colocada diante da grade via-se a sua ficha completa: HOMEM – Nome científico: Homo sapiens – Período de vida: 65 anos – Período de gestação: 270 dias – Hábito alimentar: Onívoro (churrasco, fast food, feijoada) – Distribuição geográfica: Planeta Terra. Detalhe: Dagomir foi instalado naquele recinto não como muita gente esperava, nu e semisselvagem, mas vestido normalmente, acomodado a uma cadeira e tendo à sua disposição poltrona, mesinha de centro, biombo, café, jornal, máquina fotográfica e até disc man com música clássica.

Tudo nos conformes para o repórter atuar em seu papel de representante da raça humana. Mas ao lado daquela cela, por trás das grades, estava o recinto escuro em que vivia o babuíno que apelidara Babu, animal “de olhos cinzentos que parecem trazer mil anos de sabedoria de um Buda símio”.  Em muitas passagens do texto o repórter estabelece um diálogo silencioso, ora consigo, ora com Babu, quase que a pedir desculpas pelos desmandos da nossa espécie. É difícil, segundo ele, ficar na jaula de um zoo sem sentir uma profunda raiva dos humanos em geral. Eis aqui algumas de suas mais pungentes reflexões:

“A cada animal que eu olho nos olhos em cada zoológico do mundo eu quero dizer a mesma coisa: – Ei! Eu não sou um deles. Eu não queimo florestas, eu não torturo cobaias, eu não dou dinheiro a donos de circo, eu não freqüento rodeio, eu torço pelo touro, eu torço pela caça! Eu estou do lado de vocês! Vocês entenderam bem? Eu estou do lado de vocês!”.

“Sabe, Babu, certos humanos são tão pobres de espírito que precisam buscar pela vida seres que consideram inferiores. No zoológico, eles encaram símios e primatas como caricaturas humanas, palhaços naturais, exemplos perfeitos de inferioridade”.

“A maior parte da humanidade não entendeu que cada espécie tem a sua própria forma de comunicação. Assim como você, babuínos, não devem entender o que nós falamos, nós não temos muita idéia do que significam os ruídos vocais que vocês emitem. Para essa gente, Babu, não saber falar a linguagem humana é não saber falar, e ponto final”.

Nem é preciso dizer que, nas sete horas em que passou em sua jaula solitária, o repórter ouviu do público visitante insinuações preconceituosas, risos sarcásticos, provocações e desaforos. A maioria delas era advinda – segundo o jornalista – do  Homus cretinus, incorporado via de regra por adolescentes que faziam o estilo Beavis e Butthead:

“O cara é Homo.. é homo….” , “Só está faltando uma macaca para ficar com ele”, “Sobe no teto, vai, se pendura no teto, ou tá muito gordo para isso?”, “Joga uma banana para ele”, “Cadê o Lalau?”, “Cuidado que ele vai jogar bosta na sua cara”…

“Bicho-homem” é um dos textos mais brilhantes já escritos no Brasil sobre a realidade dos zoológicos. E não se trata apenas de uma reportagem jornalística.  É uma sondagem psicológica do comportamento humano.  É uma reflexão filosófica sobre a condição dos animais. É um estudo antropológico relacionado a determinado aspecto da cultura humana. É um belo e poético texto literário. É um pequeno tratado de pedagogia..  É um libelo contra os estabelecimentos de diversão pública que aprisionam e exploram animais.  É tudo isso e mais um pouco, em suma, é uma notável contribuição intelectual que a revista Playboy propiciou aos seus leitores. Confesso que depois de lê-la, dez anos atrás, muita coisa mudou em mim.

Aprendi, nessa reportagem, que a porta que separa o “racional” do “irracional” pode ter apenas 1 metro de altura por meio de largura, feita de ferro e que desliza em canos de aços sobre graxa.  Aprendi que a mais prazerosa refeição da nossa vida é a vegetariana. Aprendi que a educação não pode andar desvinculada da ética e que ela tem um papel fundamental para a mudança de nossos hábitos e atitudes.  Aprendi que a palavra pode ter um poder enorme. Aprendi no referido texto, enfim, muita coisa sobre direitos dos animais.

Encerro esta crônica com uma frase fundamental do próprio Dagomir Marquezi, inserida nas páginas daquela memorável revista Playboy cujo exemplar eu ainda guardo a sete chaves:

Quem somos nós para condenar os outros animais a essa vida de presidiários?

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