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Fora de balanço e anos luz da ética

16 de maio de 2011
10 min. de leitura
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“Trabalhos científicos mostram que o vegetarianismo radical leva a uma série de carências nutricionais, pois nascemos para ser onívoros” . Mauro Fisberg

A recente onda de ataques a dieta vegetariana e ao modo de vida vegano está me levando a crer que estamos diante de um considerável aumento no número de seus adeptos.

Em recente artigo na ANDA, a professora Paula Brugger discutiu três artigos falaciosos sobre o vegetarianismo; a professora Sônia T. Felipe também escreveu sobre uma falsa polêmica relacionada a dieta dos veganos. Há poucos dias o MSN Brasil republicou um artigo do portal R7 sobre os riscos da dieta seguida pelos veganos.

Mas o que venho apresentar aqui é um breve comentário à entrevista dada pelo pediatra, nutrólogo e professor da Unifesp, Mauro Fisberg à revista Carta Fundamental – a revista do professor, nº 27, abril de 2011.

Depois de explicar que os pais são os primeiros modelos de uma alimentação adequada para as crianças o médico entra num campo minado chamado Educação, refiro-me aqui, a ciência Pedagogia.

“CF: A escola é também um modelo?
MF: A escola que faz uma oferta de alimentos adequada ensina atividade física, orienta a alimentação e tem controle sobre a alimentação é um bom modelo. A partir daí, a criança vai tirando seu padrão de comportamento. Infelizmente, esse padrão é formado nos primeiros anos de vida. Então, quanto mais demorar, muito mais difícil será dar a correção.”

Sou levado a crer que somente os colégios particulares de elite são bons modelos, pois, somente eles têm condições de oferecer “alimentos adequados” (e o que seriam?) e orientar; mas mesmo nesses, seria muita inocência, acreditar que é possível ter um controle sobre o que as crianças e adolescentes comem.  Ora é infeliz começarmos nossa formatação mental e comportamental nos primeiros anos de vida, ora quanto mais demorar essa formatação fica difícil corrigir. Como assim?

“CF: É mais difícil para um adolescente mudar o hábito alimentar?
MF: Muito mais difícil. Porque o adolescente, além de vir com hábitos inadequados, ainda sofre outras intercorrências. Ele sofre ação do grupo, dos ídolos, de formadores de opinião que nem sempre são boas opiniões. E o grupo, pode formar a ideia do vegetarianismo, de não comer determinadas coisas.”

A mudança de hábito alimentar na adolescência não é nem um pouco difícil, digo isso com experiência de causa, a quase totalidade dos milhares de alunos adolescentes que tive até hoje, afirma que só não muda por que a (re)pressão familiar sobre o que está acomodada a comer todos os dias é grande.

O “vir com hábitos inadequados” citado pelo médico, vem de casa, são os pais, os “primeiros modelos de uma alimentação adequada”, que inadequadamente transmitem o que a nutrição biocida dita há décadas. E quando se refere a “grupo” fica evidente que o doutor pensa no círculo de amigos. E são esses amigos que podem transmitir “a ideia do vegetarianismo, de não comer determinadas coisas”.

Fico pensando o que esse doutor diria se soubesse que em uma escola da zona norte de São Paulo quem influencia os adolescentes a “não comer determinadas coisas” oriundas do confinamento, tortura e assassinato de pessoas não-humanas não é o grupo e sim o professor?  Talvez ele repetisse o que um popular docente de Historia dessa mesma unidade escolar disse há dois anos, numa reunião onde o professor vegano foi bombardeado por pelo menos vinte professores e o corpo burocrático da escola: “se minha filha fosse sua aluna e viesse com essa conversa de vegetarianismo eu a tiraria da escola”.

“CF: O senhor vê o vegetarianismo como uma coisa negativa?
MF: Pode ser negativa e pode ser positiva. O vegetarianismo radical é um fator negativo porque existem dezenas de trabalhos que mostram que ele leva a uma série de carências nutricionais, justamente porque nascemos para ser onívoros. Um ovolactovegetariano ainda consegue ter a proteína animal de outras fontes que não a carne vermelha. Já o vegetariano radical não consegue cálcio, ferro, zinco, proteínas de boa qualidade e com isso acaba tendo alterações no crescimento”.

O doutor usa “vegetarianismo radical” para se referir ao que entendemos por “dieta vegana”.  Primeiro, não existe vegetarianismo radical ou estrito, existe vegetarianismo, ou seja, uma opção dietética que exclui todas as carnes, leite e derivados, ovos, mel, gelatina e cochonilha; e isso não é radicalismo como se usa pejorativamente, é coerência ética. É de extrema importância que os leitores saibam que radical vem do latim e significa ir à raiz de algo, logo, só é correto dizer que o vegetarianismo é radical se entendermos que ele é coerente ao ir à raiz de toda a injustiça embutida no consumo das carnes, ovos, leite e derivados, mel, gelatina e cochonilha, pedindo sua total abolição.

Segundo, não existe ovolactovegetarianismo, pois uma dieta que exclui produtos de origem animal não pode conter ovo e leite, a não ser que queiramos perpetuar uma das mais grosseiras contradições em termos, ou quem sabe nos iludir acreditando que ovo e leite brotam da terra.

Terceiro, o doutor abusa da nossa racionalidade usando o conceito de “onívoro” como sinônimo de carnívoro, e, infelizmente essa ideia é passada através do currículo oficial e do oculto, em todas as séries do ensino fundamental e médio nas escolas. Sabemos que onivorismo é a capacidade de se alimentar de tudo despreocupadamente, seja animal ou vegetal; é a naturalização de que o paladar, o prazer degustativo não exige qualquer reflexão ética. Segundo artigo da professora Sônia Felipe publicado na ANDA: “…há requisitos que os onívoros seguem para comer, via de regra, estabelecidos muito mais a partir dos sabores que acabam por criar preferências, do que por quaisquer princípios éticos. Onívoros não se questionam sobre a origem, o trajeto, nem a carga de dor ou sofrimento que um alimento pode trazer consigo. O hábito de se alimentar assim, despreocupadamente, geralmente herdado da tradição familiar ou local onde o onívoro foi alimentado em sua infância e juventude, não representa nem apresenta, para ele, questões inquietantes…”.

Quarto, o velho e surrado clichê da necessidade de proteína animal, se não vem da carne bovina, que venha de sua secreção mamaria ou de outras espécies, e fecha com chave de ouro: o vegano (vegetariano radical, segundo os desavisados) não consegue “cálcio, ferro, zinco, proteínas de boa qualidade”, sendo que, essa boa qualidade, na opinião do doutor, só pode vir do confinamento, tortura e assassinato de outros animais. Como pode alguns atletas de alto nível (olímpicos, triatletas, culturistas, etc.) viverem para competir com tanta carência nutricional?

CF: Como a escola e o professor podem ajudar quando trabalham com alunos obesos?
MF: Primeiro, evitando o bullying. A escola é essencial para corrigir desvios de comportamento do grupo. Se a escola tem comida, tem que se tentar que o ambiente alimentar seja um ambiente de educação. É preciso vigiar o que e a quantidade do que estou oferecendo, além da forma como as crianças comem. Há escolas com merenda de excelente qualidade em que as crianças correm para o fundo da quadra e, quando a gente foi ver o que era, tinha uma janelinha por onde um vizinho vendia pastel. Durante o período escolar, precisa ter um horário adequado, condições adequadas para comer. Já vi colégios em que as crianças comem de pé, porque não há cadeiras, ou comem alimentos que são inadequados para a idade. Hoje, a maior parte dos estados tem um sistema de controle da merenda. Mas nós temos discrepâncias gigantescas e a cantina escolar ainda é um problema, porque pode ser um local de excepcional aprendizado ou uma catástrofe total. E o cantineiro não é culpado, porque ele vende o que acha que vai ser comprado”.

Como evitar o bullying, doutor? Combatendo um dos desvios de comportamento do grupo (círculo de amigos) como o vegetarianismo estrito/radical? E o preconceito sofrido pelas crianças e adolescentes vegetarianos e veganos nas escolas não é bullying? Na sua lógica parece que não doutor, já que o modo de vida adotado por eles não é uma questão de ética, mas um desvio de comportamento. Como vigiar o que e quanto cada criança come na escola se, pelo menos nas públicas no Estado de São Paulo, temos de quinhentos a mil estudantes por período? Na maioria das escolas públicas do Estado de São Paulo falta professores, em muitas não tem equipe de limpeza, em outras inspetores de alunos; a questão que surge é, quem vai policiar o quê e quanto as crianças estão comendo? Se a escola tem comida tem que se tentar que o ambiente educacional é também de reflexão crítica sobre o que se come e não de mera reprodução do cultural como natural. E não são os Estados que tem controle sobre a merenda, e sim a indústria do laticínio, o agronegócio, a bancada ruralista na câmara e no senado. A cantina ainda é um problema, mas a culpa do que é vendido lá não é do cantineiro. Como assim?  “porque ele vende o que acha que vai vender”. Se ele resolver vender cocaína para os adolescentes não tem problema o estrago que esse produto vai causar no adolescente e na sua família, pois o cantineiro só vende o que acha que vai vender.

O teor da entrevista mostra que o médico reproduz meros clichês preconceituosos sobre o vegetarianismo, demonstrando um limitado conhecimento nutricional, mesmo sendo nutrólogo. E quando vai para o campo da educação faz afirmações muito comuns em discursos de especialistas das mais variadas matizes. É interessante notar que na medicina só médico pode opinar, no Direito só os juristas, na engenharia só os engenheiros, na astrofísica só os físicos; mas na Educação todo mundo pode meter o dedo, dizer qual é o melhor método de ensino, a melhor didática, o que o professor deve ou não fazer. Que tal os pais que são os modelos primários, os educadores por excelência, voltarem a ver a escola como uma instituição de ensino, e não como um depósito de crianças.

É interessante notar como a sociedade tem uma visão romântica (e tradicionalista) da escola e de sua função domesticadora de corpos e mentes. Até quando a sociedade continuará fechando os olhos para o que a escola se tornou? A primeira pergunta a cima direcionada ao doutor Mauro Fisberg, eu responderia de outra maneira, mais ou menos assim, a escola é sim modelo de como formar copiadores, de como reproduzir um sistema falido como o melhor dos mundos possíveis, de como transformar (e justificar) tudo o que é cultural em natural (tendo o natural como uma coisa boa e essencial), de como reproduzir e legitimar um habitus (sistema de disposições) especista, e não menos racista, sexista, elitista e homofóbico.

Para que ninguém fique com a impressão de que vejo a escola somente como uma instituição legitimadora do status quo; sei que dentro dela também é possível fazer um discurso contra hegemônico, desalienador e antiespecista. Pedagogia é política, e a escola mesmo com toda burocratização e alienação crônica segue um movimento dialético. E diante disso, espero continuar, mesmo com todos os percalços, desviando o comportamento dos grupos juvenis nas escolas por onde eu passar com uma boa base teórica sobre os direitos animais, ética animal, ética na alimentação via raciocínio ético e fundamentalmente sua prática diária, o modo de vida vegano.

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