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Direitos dos homossexuais e o que isso tem a ver com a nossa causa

6 de maio de 2011
14 min. de leitura
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No dia 5 de maio de 2010 o Supremo Tribunal Federal da República Federativa do Brasil tomou uma decisão histórica. A instância máxima do Poder Judiciário brasileiro decidiu pela extensão aos homossexuais dos direitos das uniões estáveis. Isso inclui muitos direitos importantes como herança, partilha de bens, seguro de vida, plano de saúde, dentre outros. O que isso significa? Uma pessoa homossexual poderá legar à sua/seu parceira/o os bens ou deixar um seguro de vida em circunstâncias de morte. Poderá colocá-la/o como dependente no plano de saúde. Os bens construídos de forma partilhada por uma união homossexual estável serão reconhecidos como tal e, como tal, poderão ser reclamados em caso do rompimento da união.

Por que isso é importante? Por duas razões: uma doutrinária e outra pragmática. A doutrinária é o reconhecimento da igualdade de direitos para indivíduos em condições iguais. Agora, qualquer indivíduo que se encontre em uma união estável erótico-afetiva poderá desfrutar dos direitos daí decorrentes, reconhecidos em lei, independente do sexo de sua/seu parceira/o. A pragmática se refere não apenas a reconhecer um fato social que durante muito tempo tentou-se suprimir ou negar, mas que também  já vinha sendo acolhido em tribunais de instâncias inferiores, e uma situação absolutamente inaceitável de insegurança jurídica.

Não raras vezes, familiares que não aceitavam a opção sexual de um/a filho, filha, irmã, irmão e por aí vai, questionavam na justiça o direito legítimo da/o parceira/o e uma vontade expressa daquela/e familiar que, por ocasião de morte, legava seus bens à sua/seu parceira/o, ou seguro de vida, e não raras vezes eram vitoriosos, sob o argumento daquela pessoa não ser cônjuge, nem parente – logo, sem o direito, do ponto de vista estritamente jurídico, de reclamar tais bens ou benefícios. Do ponto de vista ético, uma clara situação de injustiça, preconceito e discriminação, fazendo daquela pessoa uma/um cidadã/o de segunda classe, pois sem o reconhecimento do mesmo direito legado a outros em absoluta igualdade de condições. Outras várias situações de insegurança eram experimentadas, ainda em vida, por casais de homossexuais. E o rompimento de uma união estável não gerava direito para nenhuma das partes.

A decisão do STF corrige, enfim, essa injustiça. Me surpreendeu o “placar” da decisão numa casa que sempre traduziu, de certa forma, a divisão que existe na sociedade em questões tão delicadas e controvertidas, como vimos na lei da ficha limpa, na pesquisa com células tronco, na questão das cotas raciais. Dessa vez, o resultado foi unânime: 10 a 0. Na minha opinião, um reconhecimento da flagrante injustiça e desrespeito aos direitos fundamentais de certos indivíduos, que não havia mais condições de ser sustentada, fosse do ponto de vista ético, fosse do ponto de vista jurídico. Em outros termos: vimos, nesse caso, direitos morais serem finalmente reconhecidos como direitos legais. Eram as tais “verdades autoevidentes” como a Declaração de Independência dos Estados Unidos classificou os direitos humanos, que não eram tão evidentes assim na mentalidade coletiva, naquela época, como hoje. E nem por isso menos verdadeiras – apenas agora, enfim, reconhecidas.

Algumas objeções que ouvi acerca da decisão do STF:

O STF tomou liberdades com o artigo constitucional, que falava em união estável entre homens e mulheres, quando seu papel era interpretar a lei como expressamente descrita.

Duas respostas se interpõem a essa objeção. Primeiro, o princípio básico do direito de que um direito de ordem maior (no caso, o direito fundamental ao igual tratamento, à não discriminação e à igualdade de direitos) sempre prevalece sobre um direito de ordem menor (no caso, a legislação vigente sobre uniões estáveis). O Supremo, em suma, enfim corrigiu um grave erro de princípios, de lógica e de doutrina jurídica presente na Constituição Federal brasileira.

Segundo, a crescente tendência do direito brasileiro (como no mundo todo) de abandonar o paradigma do direito romano, prevalente no mundo latino, em favor do direito comum, prevalente no mundo anglo-saxão. Traduzindo: o direito romano é mais rígido. Vale apenas o que está escrito na lei. Se a sociedade muda, a lei deve ser mudada pelos devidos trâmites legislativos e jurídicos. O direito comum é interpretativo. As leis devem ser interpretadas de acordo com a evolução social, política, cultural e moral da sociedade. Essa tendência ao direito comum não é de hoje. Um exemplo: muito antes do código penal retirar de seu texto o absurdo direito à  “legítima defesa da honra”, admitindo que o homem tinha o direito de punir a esposa infiel – pela morte, se necessário – os tribunais já não aplicavam essa lei e os homens que assim procediam não eram mais judicialmente protegidos. Da mesma maneira, muitas outras leis discriminatórias foram caindo em desuso antes de enfim serem retiradas dos códigos legais.

O STF tomou para si uma prerrogativa do Poder Legislativo, que seria o responsável pela alteração dos artigos constitucionais

Quando se trata da defesa de direitos fundamentais, o Poder Legislativo, que funciona segundo os princípios da maioria, pode ser – e muitas vezes é – falho, senão frontalmente desfavorável. Pois é sensível ao lobby de setores mais poderosos da sociedade – nesse caso, as Igrejas em particular – e pode atrasar por anos o reconhecimento de determinados direitos fundamentais – como foi, aliás, o caso, já que a proposta de reconhecimento das uniões estáveis se arrastava há cerca de uma década no Congresso.

O Legislativo funciona (teoricamente) sob o modelo da democracia. Contudo, o princípio democrático – isto é, a deliberação do bem comum pelo povo ou seus representantes (caso da democracia moderna), por meio da vontade majoritária desse povo expressa livremente, através do voto – é, do mesmo modo, insuficiente para o reconhecimento e extensão dos direitos fundamentais. Pois se a vontade da maioria for discriminatória contra minorias políticas, religiosas, sexuais, étnicas, culturais e linguísticas (como frequentemente é o caso), diversos cidadãos se verão privados dos direitos mais básicos.

Foi essa opressão da maioria, levada às últimas consequências, que vimos nos conflitos étnico-religiosos em lugares como a Bósnia e Kosovo, após o desmembramento da Iugoslávia em 1991, Ruanda, no episódio de limpeza étnica que se deu naquele país em 1994, ou na Palestina, na China e no Curdistão, que se arrastam até os dias atuais, além de muitos outros episódios de menor apelo midiático. E o mesmo se dá nas democracias “civilizadas”. Não esqueçamos que nos Estados Unidos, autoproclamados como a “maior democracia do mundo”, a minoria negra era legalmente discriminada, privada de seus direitos civis e segregada da maioria branca. Atualmente, mesmo nas sociedades em que a violência institucional não seja admitida, a violência simbólica, a discriminação e a privação das liberdades e direitos civis permanecem. E este era precisamente o caso.

O reconhecimento dessa limitação levou a doutrina da democracia moderna a reconhecer a importância do Poder Judiciário arbitrar conflitos, fiscalizar a aplicação das leis e deliberar sobre sua legitimidade. O papel do Poder Judiciário, na democracia moderna, é justamente servir como guardião das leis e dos direitos fundamentais, uma tentativa de prevenir ou corrigir qualquer forma de discriminação e tirania que se manifeste na sociedade.

Claro, isso é na teoria, e na prática muitas vezes (senão na maioria das vezes) não funciona. Contudo, nos dias de hoje, apesar de todos os evidentes limites e contradições da democracia representativa, e particularmente nos últimos anos, tem sido o meio mais efetivo de proteger e expandir os direitos fundamentais – fenômeno que tem sido descrito como “judicialização da política”. Não se trata da melhor resposta para o problema das injustiças, desigualdades, discriminações, e evidentemente não funciona em muitas situações – o Judiciário não tem a prerrogativa nem o poder de redistribuir a renda, ou universalizar o acesso à educação, por exemplo – mas tem sido uma ferramenta eficaz para corrigir determinadas injustiças que o Legislativo não consegue ou não quer enfrentar.

No caso brasileiro, o STF tem seguidamente cumprido exatamente essa função, se mostrando o ramo mais progressista do Estado brasileiro. Isso ficou evidente não apenas na decisão sobre a união estável, mas também em decisões anteriores como a pesquisa com células tronco, a demarcação de terras indígenas e outros casos em que a pressão da Igreja, do Exército e outras instituições e grupos de pressão conservadores queriam impor-se sobre a sociedade em seu conjunto ou sobre minorias discriminadas.

A decisão do Judiciária fere a liberdade de consciência e os princípios religiosos das Igrejas cristãs e seus seguidores

Também no caso brasileiro, o tema da igualdade de direitos para os homossexuais vinha sendo eternamente emperrado pela mentalidade religiosa tacanha, pelo poderoso lobby das Igrejas Católica e Protestantes, que com sua legião de deputados, sua influência não apenas religiosa, mas política, sobre a população, ia contra o reconhecimento pleno de uma minoria que não vivia de acordo com sua doutrina. Os direitos dos homossexuais têm sido atacados como uma afronta, uma violação da sacralidade da família (segundo o modelo tradicional, patriarcal, sancionado pela Igreja) e até sob a alegação de que “fere” o direito de consciência religiosa (risos). Assim, o debate é definitivamente levado para a esfera da moral, e o pleito homossexual, em vez de uma garantia de direitos, é interpretado, de forma tão maliciosa quanto falaciosa, como, ao contrário, de violação de direitos.

Essa é a maior e mais grave das falácias que se interpõem a essa discussão. Pois é uma total e completa inversão de valores.

Em primeiro lugar, ao menos nominalmente, o Brasil é um país laico. Pois bem, parece que finalmente essa afirmação tem saído do mundo das ideias para, enfim, se tornar realidade. A doutrina da Igreja não é uma lei universal. Não pode ser uma lei universal. Segue quem quer. As Igrejas não têm o direito de interferir na vida daqueles que não comungam de sua doutrina. A rigor, nem daqueles que a seguem, pois estes não podem ser constrangidos a seguir essa doutrina e fé caso não mais delas comunguem. Todos os cidadãos devem viver de acordo com a sua consciência, dentro dos princípios da justiça e igualdade que devem reger uma sociedade laica. Particularmente se uma doutrina é flagrantemente discriminatória, como é evidentemente o caso da doutrina cristã em diversos aspectos (não apenas nesse), ela definitivamente deve estar fora do sistema legal.

Essa mentalidade ainda se interpõe sobre o problema do casamento civil de homossexuais, por sinal recentemente sancionado na Argentina. Um direito sobre o qual incidem os mesmos princípios da igualdade que motivaram a decisão mais restrita do STF. O casamento civil não segue as normas das Igrejas. Isso é não apenas consequência da evolução da filosofia do direito, é uma evidência empírica. A partir do momento que o divórcio, também em oposição à doutrina da Igreja, foi reconhecido pela lei, no já longínquo ano de 1977, essa divisão entre a instituição do casamento civil e o sacramento do casamento religioso tem se reafirmado. Se a Igreja não reconhece o casamento homossexual, como instituição de direito privado que é, com base no princípio do direito de consciência, essa medida discriminatória não pode ter qualquer validade jurídica. Ela só pode valer como uma decisão soberana do indivíduo que deseje viver de acordo com os princípios dessa fé e somente ele, que não tem o direito de constranger outros a seguir os mesmos princípios. Os padres e pastores não são obrigados a sacramentar o casamento homossexual nas suas igrejas, mas não podem nem devem intervir nos parâmetros do casamento civil registrado em cartório. Simples assim.

“Mas como assim?”, alguns (os religiosos), dirão. “E onde ficam a moral e os bons costumes? A Igreja não é o reservatório da moral na sociedade?” A observação histórica mostra que é evidente que ética e religião não são equivalentes. Pelo contrário, a religião, mais frequentemente do que raramente, está em franca oposição aos mais básicos preceitos éticos. Durante séculos a Igreja Católica justificou ou não se opôs diretamente à escravidão; perseguiu, torturou e matou os que divergiam de sua doutrina; justificou o genocídio e o colonialismo como meios de expansão da fé; justifica ainda hoje o sexismo e o especismo. Quantas guerras e extermínios continuam sendo motivados e justificados por preceitos religiosos? A religião e o nacionalismo são as ideologias responsáveis pela maioria das guerras. São particularmente destrutivos quando se combinam – como nos casos acima citados da Bósnia, Kosovo e Palestina, dentre outros.

A religião não apenas é distinta da ética, como nunca, jamais, poderá estar acima da ética e dos princípios da igualdade de direitos e dos direitos fundamentais. E essa é uma das formas de interpretar a decisão do STF sobre a união civil entre homossexuais. Felizmente, parece que finalmente essa mentalidade começa a prevalecer na sociedade brasileira.

E o que isso tem a ver com direitos animais?

Tudo.

O princípio que rege a defesa dos direitos animais é o mesmo: o da igualdade de direitos e de consideração no respeito a interesses fundamentais semelhantes. O problema é o mesmo: a falha de um grupo dominante, com base num pensamento discriminatório, preconceituoso, irracional, em reconhecer, atribuir e respeitar direitos morais fundamentais do indivíduo – no caso, os indivíduos animais que não os da espécie humana. Os argumentos, falaciosos, para justificar tal discriminação, são os mesmos: o de que respeitar os direitos de uma população discriminada fere os direitos fundamentais dos interesses dominantes na sociedade, sejam eles de uma maioria ou de uma minoria. Nesse caso, aliás, de uma minoria, já que a população de indivíduos animais de outras espécies supera enormemente o contingente de animais da espécie humana. Que supostamente alguém está sendo ferido na sua “liberdade”, nos seus “direitos” e na sua “consciência” quando a luta por esses direitos é levada adiante.

Um exemplo muito claro dessa semelhança pode ser constatada in loco, para além do debate geral sobre os direitos animais, infelizmente ainda muito restrito ao plano filosófico. Recentemente, no parlamento britânico, foi aprovada, em 2004, a Hunting Act, uma lei afinal proibindo a caça esportiva à raposa e outros animais – efetiva na Inglaterra e no País de Gales. A Escócia, que tem um processo legislativo autônomo, já havia aprovado lei semelhante em 2002. Apenas a Irlanda do Norte, também autônoma, mantém a legalidade dessa modalidade de caça. Uma comoção nacional tomou corpo, uma coalizão política – a Countryside Alliance – foi formada, mobilizando dezenas de celebridades, para protestar contra a “violação dos direitos civis”. Um protesto público contra o banimento convocado para 15 de setembro de 2004 gerou uma tentativa de invasão do Parlamento, a primeira desde o século XVII.

Até o elemento judicial do caso da Hunting Act é semelhante ao que se verificou na decisão do STF. Um apelo foi levado – e rejeitado – à Suprema Corte da Inglaterra e País de Gales, o que invalidou semelhante apelo à Corte Europeia de Direitos Humanos.

Infelizmente, como quase tudo que se refere aos direitos animais, a lei é cheia de brechas e de difícil aplicação. Ainda há formas legais de caça, e a prática estritamente proibida ainda ocorre por desinteresse público em fiscalizar o efetivo cumprimento da lei. Não obstante, ainda é um fenômeno de importância histórica e simbólica, e que abre precedente para uma lei efetivamente abolicionista.

Enfim, vemos como, nos dois casos, a alegação de princípios democráticos pode corresponder, na verdade, a uma forma tirania. Isso se dá porque os interesses marginais (isto é, secundários) de um grupo dominante são postos acima dos interesses fundamentais de um grupo discriminado. Isso demonstra que, se a democracia pode ajudar – e historicamente tem ajudado – na promoção e legitimação dos direitos fundamentais, estes mesmos não podem ser interpretados sob a luz dos meros procedimentos da democracia. São direitos inerentes, que não podem ser violados exceto em situações muito particulares e excepcionais – basicamente, para proteger o direito fundamental de um indivíduo sob ameaça flagrante e iminente. Ou seja: uma exceção que confirma a regra.

Assim como os princípios da igualdade de consideração e igualdade de direitos supõe a plena extensão dos direitos civis aos homossexuais, eles também supõem a plena extensão dos direitos fundamentais mais básicos – à vida, à liberdade e à integridade – aos animais de outras espécies. Pois são interesses de natureza semelhante e que, portanto, não podem ser negados sob qualquer alegação racional e razoável.

A plena participação dos homossexuais e qualquer outra minoria nos direitos civis e o pleno reconhecimento dos animais não humanos na comunidade moral são ambas lutas pela justiça, contra a discriminação e pela igualdade na atribuição de direitos segundo princípios racionais e universalizáveis.

Nos dois casos, inevitavelmente, cedo ou tarde, esses direitos serão plenamente reconhecidos e protegidos pelo conjunto da sociedade. A decisão unânime do STF demonstra o completo descompasso da situação legal antes dominante no Brasil com o pensamento racional, a atribuição universal dos direitos a todos os indivíduos que nele têm interesse, e o próprio aperfeiçoamento da ética na sociedade, que tende a essa universalidade. Em outras palavras, os direitos dos homossexuais, enfim, começam a se tornar “autoevidentes”. Um dia os direitos animais também o serão.

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