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“Pelemania” e o paradoxo animal

20 de abril de 2011
6 min. de leitura
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Temos acompanhado no site da ANDA e também a repercussão nas mídias sociais, a polêmica envolvendo a produção e a posterior retirada do mercado de algumas peças da marca Arezzo feitas com peles de animais. Há anos, a Arezzo fabrica calçados e acessórios de couro de boi e pele de coelho. Não recordamos de protestos tão contundentes da população em geral quanto a isso.

Quero lançar uma luz sobre os “relutantes” de Tom Regan e seus comentários nas redes sociais e sites em geral que veiculam a notícia. Os relutantes são os que avançam, pouco a pouco, para a consciência animal. Ainda estão presos ao especismo elitista e eletivo e insistem em usar dois pesos e duas medidas para opinar sobre uma mesma questão: a exploração animal de qualquer espécie.

Em uma lida rápida nas notícias de sites da grande imprensa e depois, principalmente, nos comentários de leitores sobre a polêmica da Arezzo, remetemos à velha questão: onde está a diferença?  Qual a linha divisória que separa o utilitarismo da compaixão?

Marc Bekoff, em seu livro Minding Animals, no qual descreve evidências de emoções complexas em vários animais não humanos, propõe alguns questionamentos: – “Alguns animais têm mais direitos que outros”? – “Por que algumas pessoas comem animais e defendem outros? – “Devemos interferir na vida dos animais”? – “Qual a diferença entre bem-estar animal e direito dos animais”? – “Por que algumas pessoas se sentem confortáveis matando formigas em vez de cachorros”? Entre outras questões que essa leitura desperta, foi possível encontrar algumas interfaces entre os questionamentos de Bekoff  e os questionamentos que sempre nos fizemos e tornamos fazer agora, no caso da Arezzo.

Não é difícil nos depararmos com paradoxos, apoiados em contradições de lógica: pessoas que ficam indignadas e até choram pela crueldade cometida com as raposas em nome da futilidade e ao mesmo tempo defendem a indústria da carne, afirmando ser este produto essencial para a sobrevivência humana. Aliás, permitam-me uma observação relativa à Biologia: tenho lido muitos comentários, nesse caso da Arezzo, de pessoas que se dizem “carnívoras”. Na Biologia (e Ecologia de populações), carnívoros são animais que abatem sua presa e a comem ainda quente e crua. Exemplos: leões, tigres, onças etc. Carniceiros são animais que não possuem coragem ou capacidade física para abater sua presa. Devoram-na com o sangue frio, depois que foi abatida por outros, muitas vezes em adiantado estado de putrefação (que, no caso dos seres humanos, é disfarçado devido a um sem-número de conservantes que deixam a carne com um aspecto mais agradável no supermercado). Exemplos de carniceiros: hienas, urubus, abutres, seres humanos etc. Portanto, “carnívoro” não seria o termo mais apropriado para designar os seres humanos que se alimentam de carne.  O termo mais apropriado seria “carniceiro”. Então, por que o mesmo ser humano que é adepto e insensível à indústria do carniceirismo se sensibiliza e fica indignado com o sofrimento e o abate de “espécies exóticas”?

Há pessoas que defendem com veemência a retirada dos produtos feitos com pele de raposa e que consentem que coelhos e bovinos sejam utilizados para o mesmo fim (80% da produção da Arezzo tem como matéria-prima o couro bovino).

Um comentário que li na web dizia o seguinte: “o couro é retirado do animal já morto e que foi morto de maneira rápida e indolor porque para a carne ficar boa o animal não pode sofrer”. O que existe na raiz dessa afirmativa? Podemos chegar a várias e diferentes conclusões. Mas não podemos julgar nem doutrinar ninguém. Não sabemos da história de quem faz esse tipo de afirmação. Informação há. E muita. Mas gente que vira o rosto, também. Inúmeros estudiosos já descreveram passo a passo esse tipo de exploração. Muita gente pensa que comprar/usar couro, lã ou pele de coelho é um direito sem implicações morais, afinal a pele foi tirada de animais que foram mortos por sua carne.

Tom Regan, Peter Singer, Nina Rosa em seu documentário A Carne é Fraca, entre tantos autores, já descreveram e mostraram em diferentes partes do Brasil e do mundo o que acontece nessa indústria de exploração: um gado velho, em pele e osso (no caso dos animais criados somente pelo couro), doente, manco e faminto sendo forçado a andar por centenas de quilômetros ou sendo metido em caminhões abarrotados. Sacolejando por estradas mal pavimentadas até o abatedouro. Alguns caem de cansaço e são cutucados, chutados e arrastados pelos matadouros. Para mantê-los em movimento, os “tratadores” quebram seus rabos e esfregam pimenta em seus olhos (isso na Índia, onde a vaca é considerada “sagrada”), entre outras atrocidades já conhecidas. Os coelhos, assim como chinchilas, minks e outros, sofrem asfixia com monóxido ou dióxido de carbono, ou são submetidos à eletrocussão anal uma, duas, três, quatro vezes. Sem contar as deploráveis condições onde são criados esses animais, sejam eles coelhos, vacas, bois, raposas ou chinchilas. Sem contar o canibalismo, as neuroses de cativeiro, as mães separadas de suas crias. Sem contar as capturas feitas na natureza com armadilhas metálicas denteadas, que prendem os animais por dias, fazendo-os roer a própria perna para se libertar (a corrente bem-estarista, sempre bem-intencionada, até sugeriu a patética alternativa da armadilha “almofadada”. Não funcionou). Sem contar a força descomunal da economia, que tenta justificar seus atos absurdos sob o argumento hipócrita da “sustentabilidade” (vide o depoimento do próprio presidente do grupo Anderson Birman, no texto de Lobo Pasolini publicado na ANDA). Sem contar, ainda, a total falta de respeito e consideração humanas para a consciência, para as emoções e sentimentos genuínos desses animais em todas essas etapas, que a Ciência convencional faz questão de negar e que o bem-estarismo endossa. Jeffrey Moussaieff nos chama a atenção para a necessidade urgente de pesquisa nessa área. Discutiremos isso em um próximo artigo.

Realmente, não são cenas agradáveis de se imaginar. Menos ainda de se ver. Não há como alegar ingenuidade. Todos sabem de onde vem o couro, as peles, as lãs. Mas é mais fácil desviar o olhar, não querer ver. Nesse caso, em nome da moda, do consumismo e da ostentação.

Diante dessas cenas (entre tantas descritas por Tom Regan), impossível não lembrar das palavras de Nina Rosa em seu recente texto em sua coluna  na ANDA: “O que estamos esperando para agir”?  Pensamos que uma barreira que se deve quebrar é a existente entre a “zona de conforto” e a exposição nua e crua dos fatos. Porque, depois que se entra em contato com uma cruel realidade, é impossível ficar alheio. E, por obrigação moral, somos compelidos a sair de nossa ignorância (que nos protege) e abrir os olhos para uma triste e vergonhosa realidade que está posta. E agir. Pois a omissão é a forma mais cruel de fazer o mal. E, como diz Regan, muitos (mas não todos), após tomarem conhecimento dessa realidade, efetuam mudanças significativas e permanentes em suas vidas.

“Pelemania” é o nome dessa mais nova (e natimorta, espera-se) onda, encabeçada pela Arezzo. Essa, a da bolsa de pele de raposa. Essa, que foi retirada de circulação e gerou protestos. Mas permanecem no mercado outros produtos da mesma empresa às custas da vida de coelhos e de bovinos. Não só da Arezzo. Não só de coelhos e bovinos. Para alegria dos empresários e das “fashionistas”. Estas, além de adornadas e calçadas com o sofrimento imposto a vários inocentes, ostentam outro acessório muito mais pesado e feio: o véu da ignorância deliberada, do descaso e do especismo.

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