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É possível uma educação vegana com parcerias não-veganas?

16 de março de 2011
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Até hoje não encontrei nenhum docente vegano nas escolas que passei. Esse fato por um lado me fez passar por muitas lutas no estilo Davi VS Golias (de alguns combates saí ileso, de outros com belos arranhões na lataria¹); por outro, me fez aprender autodidaticamente como me virar sozinho, ou como gerenciar pedagogicamente algumas parcerias não-veganas que vão surgindo pelo caminho – seja de consumidores vorazes dos restos de um ser de outra espécie que outrora tinha uma biografia em construção, seja de vegetarianos apenas –, de maneira bem amigável.

Em uma escola que lecionei há alguns anos uma colega que ministrava aulas de Língua Inglesa contribuiu com minhas aulas, por iniciativa dela, colocando trechos do The Case for Animal Rights do Regan em sua avaliação para os alunos traduzirem e responderem algumas questões. Ela me disse dias depois que logo após entregar a avaliação um aluno disse: “isso aqui é coisa do Leon”. No ano passado, após as aulas do historiador norte-americano Rynn Berry² na minha escola sede, surgiu uma parceria semelhante, uma das professoras de Língua Inglesa se interessou em usar o livro Famous Vegetarians do Rynn com os alunos, ela pensou em pedi-los que se dividissem em grupos e que cada grupo apresentasse um capítulo da obra, já que se tratava de personalidades históricas muito admiradas pelos adolescentes, por motivos burocráticos a proposta não se realizou. No entanto, logo na primeira reunião pedagógica desse ano, assim que as docentes de Língua Inglesa apresentaram seus projetos, essa mesma colega do ano passado disse: “Leon, o que você acha de trabalharmos aquele livro dos vegetarianos famosos com os alunos? Podemos colocá-lo em um desses projetos”.  É importante ressaltar que ambas as docentes seguem a dieta padrão brasileira e o uso de todos os produtos oriundos da exploração animal.

Em outra escola, me lembro de um docente de Educação Física que segundo os alunos vivia criticando minha dieta alimentar e minha defesa ética dos outros animais em suas aulas. Em um determinado dia um pai foi até a escola reclamar com a direção que sua filha não só não queria comer carne, mas nenhum outro produto de origem animal e que “isso era coisa do professor de Filosofia”; a diretora (Lia) que sempre me apoiou disse ao pai: “o professor está em sala de aula passando um vídeo sobre isso, o Sr. não quer assistir?”. O pai mais que depressa se empolgou, “sim, eu quero ver esse negócio”. O docente de Educação Física que estava perto e ouviu a conversa, também se prontificou completar a platéia. Nem a diretora nem o professor e muito menos o pai sabiam que se tratava do Terráqueos. Para não deixá-los pegar o vídeo pela metade, eu disse a Lia, “eu tenho uma copia, vocês não querem assistir na outra sala que está vazia desde o inicio para entender melhor a mensagem”. E lá foram eles…  no intervalo fui perguntar se o pai queria tirar alguma duvida comigo, e a diretora disse: “ ele não viu nem a metade, saiu da sala elogiando seu trabalho e dizendo que isso teria que ser passado em canal aberto, e que agora entende a filha”. E o tal professor de Educação Física? Virou vegetariano na hora (eis mais um damasceno³). Passou a defender a dieta vegetariana em todas as aulas como a única dieta de um atleta sério, passou a não só a martelar a necessidade dos alunos de mudarem seus hábitos de consumo, como a urgente mudança do que era servido a eles no intervalo das aulas. Lembro-me de uma festa de fim de ano que as senhoras que cuidavam da cozinha da escola disserem para mim, “professor todas as pizzas que tem aqui tem coisas de origem animal que o Sr. não come, quer que façamos uma pizza só de vegetais? Só vamos fazer isso para o Sr., pois o professor R. depois que virou vegetariano vive aqui na cozinha dizendo o que devemos fazer ou não, o Sr. está aqui a tanto tempo e nunca impôs seu modo de vida”. Depois desse episódio damascênico o professor R. tornou-se um grande colaborador das minhas aulas.

No ano passado a professora de Artes da minha escola sede resolver fazer um festival de culinária brasileira, cada sala tinha que representar um Estado; e ela me perguntou: “Leon você pode passar para alguns alunos receitas vegetarianas? Sabemos que alguns alunos não vão querer fazer as receitas tradicionais”. Poucos dias depois comecei a ser caçado por alunos representantes de vários Estados querendo receitas vegetarianas de Minas, Bahia, Goiás, Pará, Rio Grande do Sul, entre outros. Foi um sucesso. Essa professora é adepta da dieta padrão americana.

Também tive a oportunidade de ter a colaboração de um amigo geógrafo protovegetariano; enquanto eu focava na questão ética de nossa relação com os outros animais, ele trabalhava a problemática socioambiental das indústrias das carnes de uma maneira bem contundente.

Nessa mesma escola também pude ter a colaboração da professora de química, também protovegetariana, ela falava aos alunos da poluição química das indústrias e, dentre elas as das carnes e laticínio, além da composição de muitos alimentos muito consumidos pelos adolescentes, componentes extraídos de alguns animais e testados em outros.

Quanto a Biologia passei por duas experiências fundamentais, a primeira com a amiga Fernanda, naquele momento protovegetariana; foi com essa parceira que dei inicio a minha mudança radical no conteúdo a ser trabalhado em aula, foi ali que percebi que o currículo oficial especista precisava ser abolido. Enquanto a Fernanda discutia nutrição, experimentação, uso e abandono de animais domesticados, etc., eu martelava a necessidade de inclusão dos outros animais na comunidade moral humana, deixando bem claro que seja senciente ou não, o círculo moral precisa urgentemente ser expandido. Não me esqueço de um café da manhã vegetariano que organizamos, onde cada aluno tinha que trazer de casa um prato que ele mesmo fez, convidamos os outros docentes para comparecerem no refeitório, não só para degustar, mas para apoiar o esforço dos alunos, somente as “tias” da cantina apareceram. A segunda experiência é a que tenho passado nos últimos anos ao trabalhar com uma colega bióloga (biotecnologa) que no inicio se opunha as minhas colocações em aula, em especial ao meu combate à experimentação animal para estudos e pesquisa, por ela ter sido adepta dessa prática até pouco tempo. Outra face do veganismo que ela ainda adora provocar é a da alimentação, ou seja, o vegetarianismo. Quando está comigo procura tirar todas as duvidas sobre essa dieta e outras como o crudivorismo (alimentação viva), mas em suas aulas usa toda sua retórica e autoridade biológica para encostar os alunos que acabaram de adotar esse modo de vida na parede, obviamente com chavões, clichês e frases feitas. Aqueles alunos que estão lendo sobre a temática geralmente sabem se defender, mas os que ainda estão em cima do muro acabam deixando de mudar sua postura diante do mundo especista sujeitando-se ao status quo produzido e reproduzido por uma visão demasiadamente limitada e nada ética da realidade. Mas essa provocação especista realizada por essa docente me é muito útil. Uso seus argumentos bem-estaristas para mostrar aos alunos as incoerências lógicas, biológicas e éticas de quem defende tal corrente de pensamento submetendo-os a implacabilidade de um bom raciocínio ético. Todos os dias ela provoca as alunas vegetarianas com clichês, isso é bom, força as pupilas a buscar conhecimento sobre o tema para se defender. É interessante notar que quando chega um aluno novo na escola e tenta tirar alguma duvida nutricional com ela por ser bióloga ela manda o aluno me procurar. Seria ela uma relutante com “uma consciência animal em expansão”4? Fazemos votos que sim.

Quanto aos representantes da Sociologia, Historia e Filosofia; lembro-me somente de um professor de Historia que se tornou vegetariano após assistir uma aula minha (mais um damasceno), como ele trabalhava como professor eventual e não permaneceu na escola no ano seguinte, não sei se deu continuidade no processo de se tornar vegano, ou pelo menos de incluir o vegetarianismo em suas aulas de Historia. Essas matérias, as mais conhecidas representantes das chamadas “ciências humanas” também são as mais fortes representantes da moral especista. Nesses últimos anos ficou claro para mim que é muito mais fácil um diálogo sobre nosso modo não ético no trato com os outros animais com os biólogos e químicos que geralmente nutrem uma simpatia pela experimentação animal do que com os representantes das Humanidades; são antropocêntricos (e teocêntricos, por mais paradoxal que pareça) crônicos.

Uma parceria que ainda não tive foi com a Língua Portuguesa, poderíamos trabalhar o livro de J. M. Coetzee “A Vida dos Animais”, o romance da Regina Rheda “Humana Festa”, o conto do Drummond “Da utilidade dos animais”, alguns olhares literários do poeta Laerte Levai, alguns cronicatos do desanuviado Rogério Rothje; Voltaire, Kafka, Malaparte, Cecília Meireles entre outros.

Essas são algumas das parcerias que tive com docentes não adeptos do modo de vida vegano no decorrer dos últimos anos de combate pedagógico. Quanto à pergunta título, acredito que sim, é possível uma educação vegana com colegas não-veganos, desde que tenha um docente vegano no centro do projeto político-pedagógico. Aos alunos deve ficar claro que o professor não-vegano está apenas contribuindo com as aulas do docente vegano. Pois, sabemos que pelo fato de não ser vegano o docente vai fazer naturalmente (por ter incorporado uma cultura especista, a “interiorização da exterioridade” feita habitus), vez ou outra um discurso especista ou bem-estarista, por isso o docente vegano deve explicar bem aos discentes o sentido da parceria. Geralmente os docentes vegetarianos ou protovegetarianos, e até mesmo os adeptos da dieta padrão, querem contribuir com um trabalho em defesa dos outros animais, por isso, se oferecem, apresentando “brechas” em suas disciplinas, para introduzir a temática que estou trabalhando, fazem de boa vontade5, mas não percebem que o estágio moral em que se encontram não condiz com a proposta ética dos direitos animais, são relutantes, mas pelo menos para esses, ainda há uma esperança.

Nota:

1. Como já havia dito em outro lugar: “veganismo também é um esporte de combate”. Cf.http://www.sociedadevegana.org/index.php?option=com_content&view=article&id=23:educar-para-o-veganismo-enfrentar-ou-recuar-&catid=17:educacao&Itemid=5
2. O amigo e parceiro Rynn Berry se apresentou com a amiga Chris Abreu-Suzuki no ano passado na minha escola sede. Os dois são autores do The Vegan Guide to New York City e, Rynn das obras:  Famous Vegetarians; The New Vegetarians; Food for the Gods; Hitler: Neither Vegetarian Nor Animal Lover; e, Becoming Raw: The Essential Guide to Raw Vegan Diets.
3. REGAN, Tom. Jaulas Vazias. Porto Alegre: Lugano, 2006. p.30.
4. Ibid., pp. 31-41.
5. Sobre nossas companhias diárias não-veganas vejam essa reflexão da amiga Naza:  https://www.anda.jor.br/2010/11/26/neste-natal-como-em-todos-os-dias/

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