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“Não sou vegetariana”, “Não sou feminista” e outros botões de desculpa automática a serem apertados

17 de janeiro de 2011
5 min. de leitura
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“Prostitutas Bruxas e Donas de Casa”, livro de Ezio Flávio Bazzo.

Gosto de escrever sobre o cotidiano, pois é justamente ali que percebemos como as pessoas são movidas por mecanismos inconscientes e preconceitos, muito mais do que elas imaginam, ou querem.

Sobre a posse da presidenta Dilma Roussef tive que ouvir todo tipo de asneiras preconceituosas, desculpas, como o comentário “não concordo que tenha que haver mais mulheres no poder, pois o sexo não define a capacidade de alguém”. Sim! Concordamos que o bom e o mau profissional existe em todos os sexos, raças etc.  mas, se é a capacidade e o talento o que contam, por que ainda é tão difícil aceitar que as mulheres entrem no poder? Por que ainda é possível que cidades onde a maioria sejam mulheres seus eleitores votem em homens corruptos? Por que tais mulheres começam sempre seu discurso desqualificador com a frase: “Não sou feminista”?

Porque quando pessoas assumem atitudes abertamente, elas incomodam as restantes que nada mais fazem do que absorver o comportamento dos outros. Quando alguém diz: sou vegetariano, sou vegano, sou gay, sou feminista, esse alguém está tomando posição. Se você não é nada disso, respeite os que assumem suas posições, e não me venha se desculpar, pois ser feminista ou não não é pecado mortal. Uma feminista não é uma “solteirona”, nem tem doença grave. Ela é uma mulher comum, ou homem, que possui um posicionamento na sociedade. Parece que se toda feminista “odeia” os homens, as não feministas os colocam em pedestais, ou ficam o tempo todo se desculpando com a afirmação “Não sou feminista”. Como se, não dizendo tal frase, corresse o risco de ser confundida com tais mulheres, que no imaginário popular, quem nunca leu uma linha sobre o assunto as acha mulheres sozinhas “sem homem”, tristes etc. (Um detalhe: quase toda feminista que conheço é uma mulher bem resolvida e por vezes muito bem acompanhada, ao passo que já vi um número bastante grande de mulheres preconceituosas, que por medo ainda estão naquela de arrumar traste para se incomodar.)

Esse tipo de imaginário foi muito bem reforçado e devidamente incentivado lá naquela época em que as mudanças femininas começaram a despontar. E até hoje vem controlando de maneira efetiva a mentalidade dos mais desavisados, dos misóginos e dos preconceituosos. O medo de ficar sozinha e o medo de não ser aceita são bem percebidos na atitude de dizer a qualquer custo: não se preocupem, não sou vegetariana, não estou fazendo apologia ao feminismo. Esperam um suspiro de alívio do seu grupo social. Ah bom! Quando não somos, não somos e pronto. Não há a necessidade de negar a todo custo algo que não nos incomoda, não é mesmo? Alguém já comparou o feminismo a um machismo ao contrário. Mas muito diferente desse preconceito milenar, o feminismo surgiu como uma atitude de protesto. E todos nós sabemos que a opressão sempre gera uma resposta. Hoje o feminismo é mais voltado a garantir que direitos conquistados permaneçam. Muitas feministas trabalham pelos direitos humanos, e não necessariamente ficam gritando “sou feminista” ou menos ainda queimando sutiãs, como o senso comum costuma atribuir. Aliás, toda feminista é muito politizada e os melhores artigos sobre política que já li vieram de mãos de feministas jovens, que escrevem para vários países.

O fato é que as mulheres reforçam o machismo na medida em que veem na outra a sua própria insegurança. Não confiam em profissionais mulheres, não confiam em si mesmas. Isso se reflete no comportamento infantil, na pouca habilidade com as finanças e em outros setores onde as mulheres ainda obedecem a padrões esperados pelos homens. É por isso que os salários continuam baixos, o assédio sexual e o abuso de crianças (sim, tem relação), continuam em alta. O silêncio das mulheres é ruim para elas e para os outros.

“O professor Luis Felipe Miguel, do Instituto de Ciência política da UNB, não acredita que Dilma sozinha consiga revogar o caráter sexista da política (45 deputadas na câmara, no senado 12 e nos Estados 2). ‘Quando a mulher aparece, ainda soa como se estivesse fora do seu lugar, a esfera doméstica’ disse ele no Seminário Mulher e Mídia. O Consórcio Bertha Lutz monitorou a cobertura jornalística em 14 Estados no período eleitoral. De 3.372 reportagens, 1,6 mil falavam sobre aborto e, na maioria dos casos, com viés preconceituoso. ‘Apenas 7% das notícias fizeram menção às políticas públicas relacionadas à mulher’, comentou Jacira Melo, mestra em ciências da comunicação.” (trecho da revista Claudia do mês de janeiro de 2011).

Na mesma reportagem, é destacado que a maioria dos votos para Dilma veio dos homens. Nenhuma novidade, num mundo onde as mulheres são desunidas e cavam suas próprias armadilhas. O pertencer à esfera doméstica já foi tema de um artigo muito interessante do site Labris, onde a pesquisadora cita exemplos de que a mulher quando anda na rua é tratada como prostituta. Ouve todo tipo de desaforo, piadas, troças. E consequentemente não é levada a sério em outras esferas. Todo mundo já ouviu o comentário sobre a roupa da deputada, o cabelo dela, ou que fulana não é boa política, é patricinha etc. De homens não se comenta este tipo de coisa. Não tenho o nome da pesquisadora, pois o site foi reformulado e li o artigo há alguns anos.

Quem já não foi tomar uma cerveja sozinha e teve que ouvir algum comentário, como se, por estar ali, a mulher está disponível. Mulher sozinha na cabeça de alguns significa que ela está com problemas ou que está disponível. Há gente que não suporta imaginar que alguém possa estar sozinha por que quer apenas.

Enquanto se setoriza a mulher a determinados ambientes, da mesma forma se coisificam os animais. A galinha é para comer, o cachorro para brincar, a vaca serve para tudo. E tudo isso tem ligações profundas e inconscientes, que precisam de esclarecimento e inteligência para que a mudança continue. Minhas esperanças e meus parabéns à nova presidenta do Brasil.

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