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Domínio, medo e milagres ou 'peixe-elétrico nadando em 8'

16 de janeiro de 2011
3 min. de leitura
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poraque

Então eu tinha tipo uns onze ou doze anos, e próximo à lancheria dos meus avós apareceu um ônibus-zoológico-museu, bem decadente e até assustador, diria. Pedi ao meu avô o dinheiro da entrada – pagava-se para entrar no tal ônibus e ficar circulando o tempo que quisesse – e comprei meu ingresso. Havia potes ou aquários com cobras, aranhas, insetos, uma onça empalhada e, minha maior recordação, um poraquê.

O tal peixe-elétrico ficava em tanque imundo – como tudo mais lá dentro, incluindo as pessoas que atendiam – que tinha exatamente seu comprimento, e um pouco mais que sua própria largura. Então, em uma água que parecia nunca ter sido trocada, cinzenta e com limo, ele ficava ‘nadando’. Aliás, nadando não seria o termo correto, pois ele seguia em uma rota eterna, fazendo um ‘8’ dentro do tanque, em loop infinito. Com um par de olhos assustadoramente arregalados, preso em um sádico Aquaplay.

Eu fiquei chocado e seduzido por tudo aquilo que estava em exposição dentro do ônibus, um túmulo de animais vivos ou mortos, com roleta na entrada. Pensava no poraquê nadando sem parar, seguindo em frente até ter uma parede em sua frente, fazendo a mesma manobra em 8 que seu corpo escorregadio permitia, e no segundo seguinte já ter a parede do outro lado para ser desviada, ad infinitum.

Nas duas horas que fiquei lá dentro, ele não saiu de seu trilho, no fiapo de ‘rio Amazonas’ contido em algo maior que um balde retangular. O insight de estar indo e voltando em uma cuba de água, pressionado por um horizonte de paredes em frente ao nariz, jamais saiu da minha cabeça. A cage madness, ou a tentativa de se manter são no confinamento, sempre me espancou a consciência com tacos de baseball.

Uma década depois, via diariamente no Centro de Porto Alegre um vendedor ambulante, daqueles com microfone, piadas de circo e uma plateia de desocupados ao seu redor, vendendo a ‘milagrosa pomada feita da gordura do peixe-elétrico-da-Amazônia’. Curava diabetes, reumatismo, dores musculares e qualquer doença em evidência no momento ou desconforto físico popular.

Preso em sua condição de freak show, o poraquê estava eleito como peixe-milagre, peixe-salvação, peixe-mito, desde o caboclo temeroso de seu poder de ataque, até aquele que aprendeu a dominar o fogo, digo, o peixe, e colocou-o como mais um ingrediente na máquina que produz objetos de consumo a partir de animais. Poderia haver gordura comprada em açougue naqueles potinhos, mas a visão de algo tão poderoso que precisava ser domesticado, controlado, dominado e embalado para os trouxas, persistia.

Como o tigre que está no zoológico, preso antes pelo próprio poder que se tornou cobiça humana, desafio em estar no controle, do que pelas grades e muros. Tanto é, que há países onde o tigre é traficado como especiaria culinária, cujo pênis devidamente preparado teria poderes afrodisíacos. Imagino alguém pensando, ‘só algo mágico vai fazer meu pau subir… manda vir um tigre, eu pago’, ‘só uma receita dos índios da Amazônia para me curar da ________, quanto é o vidrinho?’. O desconhecido segue sendo mistificado, ‘eu temo o que não conheço, mas nele deposito minha vida’.

E o animal não humano, diferente do diferente, vai ser confinado e passar a vida nadando em 8, para todas as crianças de onze anos poderem olhar por alguns minutos. Eu entrei naquele ônibus porque amava os animais, mas inadvertidamente paguei por mais uma diária para aquele peixe preso. O poraquê segue seu fluxo desesperado, fazendo loops em 8 na minha memória, desde então.

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