EnglishEspañolPortuguês

Revista Veja publica matéria condenando o vegetarianismo entre crianças

12 de novembro de 2010
10 min. de leitura
A-
A+

Por Renata Octaviani Martins

A Revista Veja desta semana (10/11/2010) publicou matéria comentando – e condenando – vegetarianismo entre crianças.

Destaco trecho da matéria (que pode ser lida aqui) que foi intitulada “Filhinhos Vegetarianos, nem pensar”, ilustrada com o gigantesco prato de alface. E se alguém pensa que um título desses pode ser imparcial, discordo.

É engraçado com uma revista de grande circulação, com uma boa dose de irresponsabilidade, tem o poder de atormentar a vida de milhares de mães vegetarianas que já sofrem com a pressão da família, da insegurança e – isso é importante – com dados questionáveis ao fazer uma afirmação desse tipo. Por mais que a prova viva da saúde esteja ali correndo, brincando, gritando, se sujando e fazendo tudo que qualquer outra criança faz. E crescendo com saúde visível e um senso crítico em relação à própria alimentação que poucas têm a oportunidade de conhecer.

Não tenho filhos. Mas conheço algumas mães vegetarianas que têm. Umas próximas, outras são clientes. Mas vejo que o desenvolvimento dessas crianças e é completamente normal.

Ao mesmo tempo, tenho sobrinhos e conhecidos creófilos e, honestamente, lamento pela alimentação deles pelo lado ético, pela má qualidade, pelo excesso de industrializados e porcarias convenientes vendidas como saudáveis pelos fabricantes. Comem um “danoninho”, jantam nugget, doces banhados em corantes; mas não comem uma fruta, uma castanha, um legume preferido, um arroz integral, feijões (alguns comem arroz branco e caldo, jamais arroz integral e variedade de leguminosas em grãos), nada disso. Separam qualquer “verde” do prato, se negam a experimentar coisas novas e trocam facilmente uma refeição por um doce. E as mães se consolam com essa troca, já que “eles não comem nada”.

Não nego: existem crianças creófilas saudáveis, já que existe também a possibilidade de atingir uma alimentação considerada equililbrada com inclusão de derivados animais. O problema é: por que colocar no seu prato uma variedade de produtos antiéticos e inúteis se você pode ter uma variedade de cores, sabores e nutrientes muito maior com o que algumas pessoas ainda acham que é restrição? Se você não come 200 g  de carne e ovos, você pode comer 2 tipos de feijão, um cereal integral e uma variedade de legumes no dia, por um preço menor. Se a sobremesa não é gelatina com sabor artificial, é uma salada de frutas. Se não toma leite, prepare-se para entrar no mundo das oleaginosas, leguminosas, cereais, frutas secas e vegetais verde-escuros.  E, acreditem, muitas crianças vegetarianas também comem bolos, sorvetes, biscoitos:  normalmente caseiros, consequentemente com menor frequência, e com uma preocupação com os ingredientes e forma de preparo que poucas mães – especialmente as que acreditam na combinação mortadela e balas – têm, feitos com ingredientes 100% vegetais. Eu mesma faço, no VegVida, salgadinhos, sanduíches, bolos e brigadeiros veganos que fazem a alegria no aniversário de pequenos vegetarianos e seus convidados.

Há também crianças que não comem nem esses alimentos veganos de exceção e estão ótimas também.

Que toda criança faz manha, faz mesmo; mas não vejo as crianças vegetarianas com tanto medo assim de experimentar um pouco de tudo, justamente porque seus  pais costumam ter uma noção de nutrição melhor. A opção do danoninho e do nugget simplesmente não existe em casas vegetarianas. Mc Lanche Feliz é palavrão (já que ignoram a ética, algum pai ou mãe realmente aceita que isso á saudável?!) . Vegetais nas suas mais variadas formas, em compensação, não são bichos de sete cabeças.

Mas conheço mães que escolheram simplesmente mentir para seus obstetras e pediatras para terem um pouco de sossego. Esses – solicitados para dar uma orientação a fim de melhor balancear a dieta – insistem em recomendar carnes, frangos, peixes, fígado, ovos, queijos. O que elas fazem? Mentem, estudam por conta própria já que não podem contar com esses profissionais e – surpresa! – os exames continuam normais, isso quando não são dignos de elogio. “Pode deixar, doutor, vou seguir sua recomendação”, e da porta pra fora aquelas crianças continuam vegetarianas, veganas e completamente saudáveis. Ah, mas e se você se anima com os resultados e conta: “bom, ele continua vegetariano/vegano”. Prepare-se pra ouvir o sermão e ter seu filho enviado pra um exame “só pra confirmar”. Que mãe vai aceitar isso? Nenhuma. Então elas mentem, doutores. Bastante. E deixam que vocês avaliem só o resultado, sempre digno de elogios.

E, honestamente, quem tem a melhor alimentação? “Mãe, quero brócolis” não é ficção de propaganda e acontece mais do que imaginam.

Você está grávida ou tem um filho? A minha recomendação é:  não peça conselhos sobre alimentação para seu médico regular. Parece irresponsável, mas é justamente o contrário: procure um nutricionista ou nutrólogo especializado em alimentação vegetariana ou que no mínimo conheça de fato o assunto. E leia sobre o assunto, tanto quanto mães de não vegetarianos leem e tomam suas próprias decisões também. Recomendo os seguintes textos e sites (alguns em inglês):

• Alimentação sem Carne. Autor: Eric Slywitch. Livro de cabeceira de qualquer vegetariano brasileiro minimamente interessado em nutrição, é um dos poucos livros completamente objetivos e que trata puramente de como balancear uma dieta vegana em padrões ocidentais e científicos. Derruba qualquer mito e deveria ser leitura obrigatória para médicos e leigos que se manifestam sobre o assunto. Disponível para compra online.

• Comida Vegetariana para crianças. Autora: Sara Lewis. Livro publicado com aval da Vegetarian Society Britânica, trabalha com o conceito de alimentação infantil lúdica com visual caprichado e divertido, dá diversas dicas de introdução de novos alimentos aos pequenos, desde a fase da alimentação até final da infância. Com enfoque ovolactovegetariano, o paralelo vegano é citado constantemente, assim como são indicadas as melhores adaptações nas receitas. Leitura obrigatória para grávidas e mães de pequenos vegetarianos. Disponível para compra online.

• Alimentação Infantil Vegetariana. Autora: Eliane Lobato Austragésilo.  Livro de 1984 e já esgotado, trabalha com um conceito de alimentação naturalista ovolactovegetariana, mas pode ser usado como referência também por mães veganas. Costuma ser encontrado em sebos, inclusive os virtuais.

• Recursos para uma Vida Natural. Autora: Eliza S. Biazzi. O livro tem um enfoque naturalista, vegetariano sem ovos ou leite, mas com inclusão de mel. Há outras restrições absolutas como açúcares e temperos, o que não é todo vegetariano que segue (eu, por exemplo). Mas é também uma boa referência para dieta de gestantes, dieta infantil, tratamentos naturais, etc. Também costuma ser encontrado em sebos.

• Site “The Vegetarian Resource Group”. Grupo de estudos que dá suporte a todos os comentários feitos sobre dieta vegetariana no âmbito do USDA, tem página específica sobre alimentação infantil: http://www.vrg.org/family/kidsindex.htm

• Site “Materna Vegetariana”. Mães provando que seus filhos são saudáveis e contando diversas experiências http://maternavegetarianas.blogspot.com/

Mas, como sempre, vamos ter que ouvir dos leitores dessa revista, a exemplo do que já ocorreu com outra publicação (Revista Época) em 2008, “que não podemos ser saudáveis assim”. Bom, se eu tiver filhos, já sei pelo menos de onde boa parte das pessoas tira as bobagens repetidas à exaustão que somos obrigados a ouvir.
Escrevi uma carta à Revista Veja e espero que seja publicada. Mas, infelizmente, mais uma vez o estrago já foi feito.

“Filhinhos Vegetarianos: pensamos, sim!

O Conselho Federal de Medicina (CFM) não se manifesta sobre vegetarianismo. A Associação Brasileira de Nutrologia (ABRAN) se nega a emitir um parecer sobre o assunto dizendo tratar-se de ideologia. Os Conselhos Regionais de Nutrição não têm coragem de emitir um parecer científico sobre a matéria. Isso no Brasil, já que no exterior muito do que se publicou nesse infeliz ‘Guia’ é assunto superado. E mesmo no Brasil temos a sorte de termos médicos e nutricionistas bem mais esclarecidos, alguns autores de livro referência Alimentação Sem Carne como o Dr. Eric Slywitch e também incentivadores do vegetarianismo na infância em seus consultórios, como o Dr. Paulo Eiró Gonsalves (in memorian).

A Associação de Dietética Americana (ADA), a Associação Americana de Pediatria, Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA), a escola de saúde de Harvard, o tratado Nutrição Moderna na Saúde e na Doença, que é referência na área e inúmeros cientistas e extensa bibliografia atualizada mundo afora formam coro uníssono ao afirmar que a dieta vegana balanceada (como qualquer dieta deve ser) fornece todos os nutrientes necessários em qualquer fase da vida e em qualquer nível de atividade. Muitas firmaram posição que os profissionais têm até mesmo obrigação de incentivar quem manifesta desejo por seguir esse estilo de vida, já que é visivelmente mais vantajoso para a saúde e desempenha papel na prevenção de doenças crônicas diversas como hipertensão, doenças cardíacas, diabetes tipo 2 e AVC.

Nós, vegetariamos e veganos, já temos que viver o absurdo de, mesmo visivelmente saudáveis (eu mesma sou doadora regular de sangue e plasma), sermos questionados sobre nossa saúde o tempo todo, por leigos e por médicos se portando como leigos quando de fato não conhecem o assunto. Vegetarianismo não é sequer mencionado nas faculdades! E, infelizmente, temos que aguentar uma revista como a Veja divulgando argumentos questionáveis e, mais, sem procurar um profissional especializado nesse tipo de alimentação para ao menos mostrar os dois lados. A ‘verdade’ exposta pela pediatra é a única e, nesse caso, voz vencida entre meios realmente científicos.

Uma pediatra acostumada a prescrever dietas com carne, ovos e leite dificilmente tem imediata ciência de como balancear nutrientes senão da única forma que ela conhece. Ao mesmo tempo, é usado como argumento a ‘necessidade de uma dieta colorida’ para uma criança. Acontece que não existe dieta mais colorida que uma dieta vegetariana com seus cereais, leguminosas, oleaginosas, sementes, frutas, tubérculos, cogumelos, algas, verduras e todos os derivados desses produtos. Tem que ser variada e equilibrada? Lógico, tanto quanto ninguém deveria supor que hambúrguer com batata frita supre necessidades nutricionais e não causa problemas.

Sobre o guia, a única verdade que contém é a necessidade de suplementação de vitamina B12. Que pode ser feita uma vez ao dia, uma vez por semana ou uma vez ao ano, sem risco de hipervitaminose ou carência, sendo o suplemento de origem microbiana. Suplementação essa que é tão banal quanto a suplementação de iodo pelo sal de cozinha, hoje em dia uma necessidade da humanidade que vive longe dos litorais. Por que podemos escolher suplementação por termos nos instalado em região que também não seria a mais natural, mas não podemos escolher a suplementação por ética, já que é uma opção? Por que mulheres em idade fértil devem suplementar ácido fólico – apesar de ser mais do que clara a relação entre carência desse nutriente e o uso contínuo de anticoncepcionias hormonais – e nós não podemos ensinar a nossos filhos valores como respeito aos animais, com saúde plena?

Comedores de carne e outros produtos de origem animal têm até mesmo propagandas de multivitamínicos declarando a ineficácia de seu modelo de alimentação, já que consideram “difícil consumir 6 porções de frutas e vegetais” ao dia. Nós, vegetarianos, ultrapassamos facilmente esse número e nos nutrimos de alimentos saudáveis, funcionais, ricos em minerais e vitaminas e que fornecem todos os macronutrientes.

Não somos nós os consumidores de biotônicos, bolachas “vitaminadas”, iogurtes para prisão de ventre, entre outros produtos bastante questionáveis. Não somos nós a população que necessitou de suplementação de ferro e ácido fólico em farinhas brancas. Questionem quem são, então, os verdadeiros doentes dessa sociedade e quais crianças merecem nossa preocupação de fato.

Ainda não tenho filhos. Mas não tenham dúvidas de que, quando os tiver, serão criados levando em conta o respeito pelos animais e a saúde, numa dieta vegetariana.

Renata Octaviani Martins
www.vegvida.com.br
Culinarista Vegana
Campinas-SP”

 

Você viu?

Ir para o topo