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Especismo e a questão do valor da vida

6 de outubro de 2010
21 min. de leitura
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Vimos, em colunas anteriores, que muitas características compõem uma decisão ética. Agora entraremos na análise de um caso prático, e eu gostaria de relembrar duas características importantes listadas. A primeira é a que chamarei aqui de coerência, entendida no sentido de tratar casos relevantemente similares de maneira semelhante. Se casos aparentemente similares serão tratados de maneira diferente, temos que apresentar uma diferença que justifique esse tratamento diferente. Como veremos, não é qualquer diferença que cabe aqui. Ela precisa ser relevante para a discussão em questão.

A segunda característica aponta para consequências boas ou ruins para os atingidos pela decisão (lembrando que a decisão nem sempre diz respeito a atos; pode dizer respeito a omissões também). Quando queremos ser éticos, temos de sinceramente nos colocar no lugar de cada um daqueles que irão sofrer as consequências de nossa decisão; imaginar o que desejaríamos que fosse feito e; só então, depois, imaginando-se num estado de um espectador imparcial (o máximo aproximado que conseguirmos), tomarmos a decisão . Vários filósofos têm desenvolvido, ao longo da história, sistemas para conseguirmos uma maior aproximação à imparcialidade. Um método interessante aqui é a figura do véu da ignorância, sugerido pelo filósofo John Rawls , onde devemos tomar nossa decisão sem saber qual posição iremos ocupar entre os indivíduos afetados.

Só depois de fazer esse exercício com seriedade é que estaremos minimamente aptos a tomar nossa decisão. Sem essa sinceridade em querer realmente se imaginar no lugar de cada um dos atingidos; pensar no que realmente veria como correto a ser feito na prática, caso estivesse em cada uma dessas posições; querer descobrir o que é relevante para a decisão e o que não é, não há como fazer um bom raciocínio ético.

Posições como o racismo, por exemplo, violam a primeira característica mencionada acima. Casos relevantemente similares (como, por exemplo, o interesse em ser respeitado) são tratados de maneira muito diferente. O racista irá fomentar o interesse em ser respeitado apenas dos membros de sua própria raça. Quando é exigido, de um racista, a justificativa pela qual ele trata interesses semelhantes de maneira diferente, normalmente é apontada a raça. Mas, como vimos, a diferença precisa ser relevante para o que está em questão; e a raça de alguém não faz diferença para a existência do interesse em ser respeitado. Portanto, a justificativa do racista não é válida, e o racismo não pode estar correto, dentre outros motivos, por ser incoerente.

Supondo agora, como exemplo da segunda característica, que o indivíduo “A” não é racista – mas, não porque ele fomenta o interesse em ser respeitado tanto dos membros de sua raça quanto dos membros de outras; pelo contrário, ele desrespeita esse interesse em qualquer um, independentemente de raça. Essa decisão estaria correta apenas por ser uma decisão “coerente”? Não, se levarmos em conta as consequências sobre os atingidos. Sua decisão provavelmente causará dano a um número ainda maiorde indivíduos, o que torna sua decisão, apesar de “coerente”, ainda pior do que se fosse incoerente. Alguém pode objetar aqui que ele não está sendo coerente, pois ainda fomenta o seu próprio interesse em ser respeitado. Assim, ele trata um único caso (o interesse dele próprio) de uma maneira totalmente diferente da que trata todos os outros. Assim, o indivíduo “A” não é culpado de racismo, mas é culpado de egoísmo. Essa objeção procede, mas esbarra diante de um outro caso hipotético (que é raro na realidade, mas pode acontecer). Supondo que o indivíduo “B”, assim como todos os outros indivíduos atingidos por sua decisão, deseje desfrutar de um futuro feliz. Supondo que, mesmo assim, ele – por um motivo qualquer, sem uma justificativa aparente – deseje matar a todos (inclusive a si próprio), independentemente do interesse no desfrute. Esse indivíduo não parece estar agindo incoerentemente (pois vai contra o interesse de todos, inclusive o seu), mas nem por isso sua decisão se torna correta. Do ponto de vista das consequências, sua decisão é a pior possível.

Toda essa introdução foi feita para adentrarmos no conceito de especismo. O especismo é similar ao racismo, à homofobia, ao machismo ou ao nacionalismo. Todos esses casos são variantes do egoísmo porque um interesse similar é tratado de maneira diferente com base numa diferença que não é relevante para o que está em questão. A sentença “É correto matá-lo porque ele não pertence à minha espécie” é tão estúpida, de um ponto de vista ético, quanto dizer “é correto matá-lo porque ele não pertence à minha raça”. Espécie, raça, orientação sexual, gênero e nacionalidade nada tem a ver com a existência do interesse, por exemplo, em desfrutar do prazer e evitar sofrimento. E é quanto à injustificabilidade do especismo que a maioria dos humanos, inclusive muitos dos quais já consideram errado discriminações como o racismo e o sexismo, tem imensa dificuldade em aceitar. O especismo é errado porque é incoerente. Mas isso não significa que alguém que desconsidere tanto interesses de animais humanos quanto de animais não -humanos esteja agindo corretamente. Pelo contrário, como vimos, do ponto de vista das consequüências, sua decisão é ainda pior porque provavelmente dana a um número maior de indivíduos.

O debate em torno do especismo tem acontecido com muita ênfase à questão do erro em causar sofrimento. Isso é compreensível, haja vista o tamanho de sofrimento que é infringido e permitido que seja infringido aos animais não -humanos. Contudo, é necessário lembrar que o especismo está presente toda vez que um interesse ou necessidade similar de um não -humano seja tratado de maneira diferente de um interesse ou necessidade similar de um humano, sem uma diferença relevante que justifique a decisão diferente. Portanto, poderíamos abordar diversas questões, para além da questão do sofrimento, como, por exemplo, o erro em matar, o dever de proteger a vida, o erro em tornar um indivíduo propriedade de outro, o dever de ajudar, etc. Na coluna de hoje, como exemplo, quero abordar o erro em matar, mas é preciso que não esqueçamos que podemos encontrar especismo em muitas outras situações que não envolvam matar nem causar sofrimento. Nós entraremos nessas questões em colunas futuras.

A maioria das pessoas, inclusive aqueles que pensam ser correto consumir animais, acredita que causar sofrimento nos animais deve ser evitado. Por exemplo, muitas pessoas se opõem às granjas industriais, mas não veêem problema caso existir um abate indolor depois de uma vida prazerosa. Assim, vemos várias campanhas bem-estaristas (a saber, aquelas que afirmam visar diminuir o sofrimento dos animais durante o seu uso pelos humanos) que visam minimizar o sofrimento mas não questionam o uso em si nem o matar em si. Geralmente, a pergunta a seguir nunca é colocada por um bem-estarista: “o que torna errado matar animais humanos e, ao mesmo tempo, torna correto matar animais humanos?”. Essa pergunta nos guiará hoje, e, como pretendo mostrar, todas as diferenças geralmente apontadas não são relevantes para o que se está discutindo.

Antes de tudo, temos de nos perguntar então o que é relevante para a discussão sobre o erro em matar. Podemos começar perguntando a nós próprios o motivo pelo qual pensamos que é errado matar outro ser humano. Ok, algumas pessoas sequer pensam que haja algum erro em matar outro ser humano. Caso alguma dessas pessoas estiver lendo o texto, eu sugeriria então outra pergunta: “o que torna errado outras pessoas me matarem?”. Algumas dessas pessoas simplesmente responderiam – como é comum nos debates – “nada torna errado alguém me matar; quero ver é elas conseguirem me pegar”. Uma resposta como essa demonstra uma profunda falta de entendimento sobre o que está em questão. Se alguém diz que não há erro em alguém lhe matar, e, ao mesmo tempo, diz que vai fugir para que essas pessoas não peguem, então na verdade vê um erro com o fato de alguém lhe matar. Se não visse tal ação como um erro, permitiria que ela acontecesse (ou, não esperaria por isso, e ele mesmo teria se suicidado). Pessoas assim estão usando simplesmente de retórica; não estão interessadas realmente em descobrir qual o problema em matar. A ética é sobre tomar decisões e como justificá-las, fundamentá-las, dar-lhes uma razão de ser. Essas pessoas ficam o tempo todo tentando sobreviver; então, é porque tomaram a decisão em manter a própria vida; e toda vez que alguém toma uma decisão e não outra, é porque (exceções à parte, como a fraqueza de vontade) vê essa decisão como melhor do que as alternativas. É necessário que não percamos tempo com retórica desse tipo, pois, se essas pessoas sequer conseguem imaginar uma situação fictícia onde sua vida esteja realmente em risco (o máximo que conseguem dizer é “quero ver alguém me pegar!”), então terão enorme dificuldade em perceber como é, para outros indivíduos, estarem nesse risco.

Por enquanto eu peço que você pense no motivo pelo qual pensa ser um erro assassinar outro ser humano. Voltaremos nessas razões no final do texto. Antes de iniciarmos, é importante lembrar que não estou afirmando aqui que o erro em matar é um princípio absoluto (ou seja, que não existam exceções que justifiquem matar). Há, na ética contemporânea, todo um debate sobre essa questão, como por exemplo, os pedidos de eutanásia, a questão do aborto e a legítima defesa . Para o que estamos discutindo aqui, basta lembrarmos que a pergunta “o que torna errado matar humanos?”  é uma abreviação de “nos casos onde é errado matar humanos, o que torna errado matar?”. Vejamos então as razões mais comumente alegadas para tentar apontar uma diferença entre animais humanos e não -humanos, que justifique dizer que há erro em assassinar num caso, mas não em outro. Para cada argumento oferecido, destacaremos o princípio mais geral que o guia, bem como a razão que sustenta o princípio mesmo.

A – “É errado matar humanos porque eles são humanos”

Esse argumento geralmente não é pronunciado com tanta clareza, mas, está por trás de alegações do tipo “O que nos diferencia é que somos todos humanos!”; “Somos humanos, portanto temos direito à vida!”.

O argumento por trás dessa alegação é:

(1) O que torna errado matar alguém é a pertença a uma determinada espécie biológica, no caso, a Homo sapiens
(2) Só animais humanos pertencem à espécie Homo sapiens
(3) Logo, só é errado matar animais humanos.

A premissa número 2 é, sem dúvida, verdadeira. A conclusão segue das premissas. Contudo, a primeira premissa apresenta, pelo menos, dois graves problemas. Um problema é que ela é por demais arbitrária para poder ser considerada uma premissa ética. Como vimos , a imparcialidade é um requisito fundamental dos juízos éticos, e, se vamos eleger a espécie biológica como razão contra matar alguém, é preciso oferecer uma razão a mais para escolhermos a espécie Homo sapiens, e não a espécie canina, suína, ou alguma espécie de planta ou microorganismo. Geralmente tomamos essa premissa como não -absurda somente por pertencermos à espécie privilegiada e estarmos acostumados a ouvi-la desde cedo. Basta considerarmos outro caso particular dessa do mesmo tipo de premissa para percebermos sua absurdez: “Os únicos seres os quais é um erro matar são amebas, justamente porque amebas são amebas”. Qualquer um de nós, enquanto seres racionais, precisa de uma razão a mais para crer que é errado matar amebas, uma que não simplesmente o fato de amebas serem amebas. Se for errado matar amebas, deve ser por alguma outra razão adicional que não o mero fato delas serem o que são. Qualquer coisa é ela mesma. Isso é tão verdadeiro quanto irrelevante, tanto para a moralidade de matar amebas quanto para qualquer outro animal, inclusive seres humanos. Portanto, muitos filósofos consideram esse tipo de preconceito, o especismo, tão arbitrário quanto o racismo ou o sexismo.

O segundo problema com essa premissa é que, como a racionalidade também é um requisito fundamental dos juízos éticos, a premissa precisa estar amparada sobre uma razão possível de ser compreendida como válida para todo e qualquer ser racional. E, existem motivos muito mais óbvios para se apontar o erro em se matar alguém do que apontar o mero pertencimento aà determinada espécie biológica. Por exemplo, quando algum humano muito jovem morre, normalmente dizemos “Que pena! Ele tinha tanto ainda para desfrutar!”. O tempo que alguém tem ainda para desfrutar pela frente é uma razão muito mais óbvia de ser compreendida para fundar o erro em matar do que o pertencimento a uma espécie. A dificuldade aqui, para os especistas, é que essa mesma razão dá um motivo contra matar animais não -humanos, pois ter possibilidade de desfrute no futuro não é exclusivo de nossa espécie. O que há, então, nos humanos, que os torna tão especiais?

B – “Humanos são mais inteligentes”

Percebendo que apontar para “humanos são humanos” é irrelevante, as pessoas passam então a buscar alguma característica possuída exclusivamente por humanos, para fundar o erro em matar. Uma das mais comuns é afirmar que humanos são mais inteligentes. Novamente, o argumento geralmente não aparece nessa forma clara e explícita, mas está por trás de alegações como “O que nos torna especiais é que somos racionais!”.

Os proponentes dessa alegação costumam apontar que humanos são capazes de muitas tarefas. As mais mencionadas são agir eticamente, firmar contratos, ter senso de justiça, fazer matemática avançada, compor sinfonias, construir naves espaciais, etc. Chamarei essa característica de “posse da razão plena”:

O argumento por trás dessa alegação é:

(1) O erro em matar se dá por eliminar do mundo um ser que tem a posse da razão plena;
(2) Todos os humanos e, apenas os humanos, tem a posse da razão plena;
(3) Logo, só é errado matar animais humanos.

Aqui há problemas com as duas premissas. Uma maneira possível de desafiar a segunda é apontar que, de acordo com estudos de etólogos , existem animais que possuem, por exemplo, capacidade para agir de maneira altruísta, senso de justiça, cultura, uso de ferramentas, etc. Embora isso seja verdadeiro, não penso que seja a maneira correta de desafiar esse argumento, porque, ao que parece, uma boa porcentagem dos animais existentes não possui essas habilidades.

Outra maneira de desafiar a segunda premissa é apontar que não é verdade que todos os humanos têm a posse da razão plena. Por exemplo, bebês, crianças muito pequenas, comatosos, idosos senis, portadores de graves doenças cerebrais. Isso se aplica a qualquer um de nós que a temos agora, pois poderemos perdê-la a qualquer momento, por acidente ou doença. Se formos contar o nível de raciocínio, até mesmo pelos padrões humanos, qualquer cão adulto normal é muito mais racional do que os humanos citados anteriormente . Se o erro em matar se dá por eliminar do mundo um ser que tem a posse da razão plena, então não seria errado matar aqueles humanos. Antes de analisarmos a primeira premissa, passaremos àa uma variação da presente objeção, que se baseia na primeira premissa reformulada:

C – “Argumento da potencialidade”

Alguns afirmam que a resposta acima se esquece de que bebês e crianças muito pequenas um dia poderão desenvolver a posse plena da razão, e que idosos senis um dia já tiveram a mesma. São, portanto, agentes morais em potencial, ainda que não reais. O argumento agora é o seguinte:

(1) O erro em matar se dá por eliminar do mundo um ser que é um portador de posse da razão plena real ou em potencial;
(2) Todos os humanos e, apenas os humanos, são portadores da posse da razão plena (real ou em potencial);
(3) Logo, só é errado matar animais humanos.

A premissa número 2 ainda apresenta problemas. Alguns seres humanos sequer são portadores da razão plena em potencial porque somente um milagre os poderia fazer terem tal capacidade. Por exemplo, aqueles com doenças mentais degenerativas permanentes. Mas, supondo que fôssemos considerar a possibilidade de um milagre, mutação genética ou do avanço da ciência. Temos que ser imparciais, portanto, teríamos de considerar o mesmo para animais não -humanos. Estes também poderiam, por um milagre, mutação genética ou avanço da ciência, adquirir a posse da razão plena.

Aqui vale mais uma vez lembrar da acusação de especismo: não excluímos da consideração moral membros de nossa espécie, ainda que eles não apresentem o critério que propomos para excluir animais não -humanos; e excluímos animais não -humanos, ainda que muitos deles apresentem um nível de raciocínio muito maior do que os humanos citados acima. Isso é sinal de que o critério é tão desonesto que não estamos dispostos a admiti-lo.

Novamente, antes de analisarmos a primeira premissa, vejamos outra modificação nesse argumento:

D – “Argumento do grupo”

Algumas pessoas dizem que o erro com nossa análise até aqui é que consideramos os indivíduos enquanto tais, e não enquanto membros de um grupo. Assim, nessa perspectiva, o que importa é que os membros normais de um determinado grupo conseguem fazer, não importa se alguns membros não conseguem; deveriam ser tratados como os membros normais.

O argumento é o seguinte:

(1) O erro em matar se dá por eliminar do mundo um ser que tem a posse da razão plena;
(2) Devemos tratar indivíduos enquanto membros de grupo, e não enquanto indivíduos;
(3) Os humanos normais têm a posse plena da razão;
(4) Logo, só é errado matar animais humanos e todos os animais humanos, pois todos pertencem ao grupo cujos membros normais têm a posse plena da razão, ainda que, enquanto indivíduos, alguns não a possuam.

A premissa número 3 é verdadeira. A premissa número 2 apresenta problemas. O primeiro é que a consideraríamos automaticamente anti-éticaantiética se aplicada em outras questões. Por exemplo, o que dizer para alguém que propõe que não deveríamos aprovar um candidato que gabaritou no vestibular, simplesmente porque os membros normais de sua etnia não conseguiram? Argumento similar foi utilizado para impedir que as mulheres tivessem acesso às universidades, no século XVIII, inclusive para tentar impedir aquelas mulheres que passavam na prova, alegando que a maioria das outras que faziam a prova não passavam . Outro exemplo: com o mesmo critério, teríamos dizer que os locais públicos não deveriam estar adaptados às necessidades dos cadeirantes só porque eles pertencem a uma espécie tal que a maioria dos membros consegue andar com as próprias pernas. Uma grande lição a ser aprendida aqui é justamente sobre tratar indivíduos enquanto indivíduos, e não enquanto membros de grupo.

Outro problema com a premissa 2 é que o grupo sobre o qual está fundado o argumento é escolhido arbitrariamente. Por que dividir os grupos com base na espécie biológica, e não com base na raça, gênero, banda favorita, tamanho do pé, formato da orelha, etc? Todos esses critérios soam irrelevantes, pois não dizem respeito ao assunto que está sendo julgado (o erro em matar), já que não dizem nada sobre o malefício que alguém sofre ao ser morto. Os únicos grupos relevantes de serem divididos aqui, seriam “os que são danados ao serem mortos” e “os que não são”. Note que, se os grupos fossem divididos dessa maneira, não haveria problema, pois seria tratar exatamente os indivíduos enquanto indivíduos (pois o critério escolhido para dividir os grupos seria relevante para o assunto em questão).

O maior erro de todos os argumentos anteriores

Até agora, nos argumentos B e C e D,  apontamos problemas com as premissas número 2. Apontamos que alguns animais não -humanos parecem possuir uma razão desenvolvida; que muitos humanos não possuem a razão desenvolvida; e que é falso que todos os humanos são portadores da posse da razão plena, mesmo se considerarmos o potencial. Apontamos também para o erro em levar em consideração o grupo e não os indivíduos, principalmente quando o grupo é dividido com base numa característica irrelevante para o que está em discussão. Contudo, penso que questionar essas coisas não seja a melhor maneira de desafiar esses argumentos, pois não apontam para o erro principal, que está na premissa 1. O que quero apontar, com isso, é que, mesmo que as premissas 2 fossem verdadeiras (se todos os humanos fossem portadores da razão plena, reais e potenciais e se devêssemos tratar indivíduos enquanto membros de grupo), ainda assim haveria problema com o argumento:

Quanto à questão da potencialidade, poderíamos questionar ainda qual a relevância dela, afinal de contas, não pensamos que, por exemplo, um cidadão que é um presidente em potencial deva ter os mesmos direitos do presidente real. Contudo, há um problema muito maior com a premissa número 1. Ser portador da razão plena em potencial não parece ser o que levamos, normalmente, em conta, para enxergarmos um erro em matar alguém, mas sim, entre outras coisas, o desfrute que esse alguém poderia ter da vida no futuro. E isso se aplica tão bem a animais humanos quanto a não -humanos. Normalmente, pensamos que é errado (e muito errado) assassinar uma criança, mesmo que ela não tenha desenvolvido a posse da razão plena nem tenha expectativa alguma de se desenvolver.

A primeira premissa confunde algo que é “uma razão contra matar” com “a única razão contra matar”. Sim, normalmente é algo ruim eliminar do mundo um ser que tem a posse plena da razão, porque envolve eliminar, entre outras coisas, alguém capaz de realizar o que a ética prescreve, e, portanto, ser um bem para o mundo. Contudo, não é verdade que a única meta da ética é proteger a vida dos agentes morais (aqueles seres capazes de agir eticamente). Como vimos, outros conteúdos são válidos, dentre eles, fomentar o prazer e diminuir o sofrimento. Mas, relembrando, precisamos tratar casos relevantemente similares de maneira similar. Então, isso se aplica a todos aqueles capazes de desfrutar do prazer, não apenas humanos. E, no dia-a-dia, já reconhecemos isso; basta ver o caso dos humanos destituídos da posse da razão plena: ao contrário de matá-los, damos maior atenção ainda aos seus interesses, pois estão numa situação de maior dependência dos nossos cuidados. Isso não deveria causar espanto, pois, os agentes morais, seres capazes de virtude, são exatamente aqueles que devem ajudar os incapazes, e não, aproveitar-se deles para seus interesses egoístas . Animais não -humanos estão, por não terem a posse da razão tão desenvolvida, numa situação de vulnerabilidade maior. Portanto, a conclusão ética válida deveria ser que merecem atenção primordial, assim como os humanos na mesma situação, por terem menos condições de se defenderem sozinhos.

Os argumentos B, C e D, além disso, baseiam-se na confusão entre o critério para ser agente moral (e pois, pois, responder pelas consequüências de suas decisões) – a plena posse da razão – e o critério para indicar quais seriam os pacientes morais (que não precisam, obviamente, da plena posse da razão para sofrer as consequüências das decisões dos agentes morais ).

Conclusão

Normalmente, quando pensamos com seriedade sobre o erro em alguém tirar a nossa vida, parece que, para além de razões adicionais (fazer planos para o futuro, por exemplo), aquilo que podemos desfrutar no futuro e a nossa preferência por continuar a viver, caso exista (ainda que o que tenhamos pela frente não seja bom) acabam aparecendo. E isso se aplica igualmente a animais não -humanos sencientes (pois também são capazes de desfrutar de algo e de terem determinadas preferências).  Se, como vimos, é errado tratar casos relevantemente similares de maneira diferente, então, se não quero ser morto porque tenho algo pela frente a desfrutar, o mesmo erro está presente quando alguém mata um peixe.

Essa conclusão parece banal e óbvia, mas aplicá-la na prática tem sido de difícil aceitação para a maioria das pessoas, porque ela envolve parar de consumir produtos que tenham sido feito causando danos aos animais e parar de apoiar outras práticas similares. Mas, não apenas isso. Para evitarmos o especismo, teríamos também de, além de buscar deixar de participar do dessas práticas explorativas, lutar pelo fim delas (e também de outras que não estão tão visíveis ainda aos nossos olhos) – pois é o que desejaríamos que fosse feito caso estivéssemos nós mesmos dentro de, por exemplo, uma gaiola numa granja industrial.

Na próxima coluna, abordaremos algumas objeções frequüentes à igualdade animal.

Até lá!

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Notas

[1] Cf. SINGER, Peter. The Significance of Animal Suffering. In: BAIRD, Rober M. & ROSEMBAUM, Stuart E. (Eds.) Animal Experimentation: The Moral Issues. Amherst, NY: Prometheus Books, 1991. Tradução disponível em http://www.pensataanimal.net/index.php?option=com_content&view=article&id=47&Itemid=1

[2] Cf. RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Tradução Almiro Pisetta, Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

[3] As questões da eutanásia e aborto são amplamente discutidas em SINGER, Peter. Ética Prática. 3a ed, Trad. Jefferson L. Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

[4] Ver as colunas intituladas “Raciocínio Ético: A Forma”

[5] Ver, por exemplo o trabalho do primatologista Frans, de WAAL (1996). Good Natured: The Origins of Right and Wrong in Humans and Other Animals. London: Harvard University Press...Entrevista com o autor disponível em http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=17&tipo=entrevista. Um filósofo que defende que animais não humanos possuem capacidade para agência moral é Steve Sapontizs. Cf. SAPONTZIS, Steve F. Morals, Reason and Animals. Philadelphia: Temple University Press, 1987 pp. 30, 31.

[6] Cf. BENTHAM, Apud, SINGER (2002), p. 67

[7] Cf. SINGER, Ibid (1991).

[8] Cf. SAPONTZIS, Ibid., pp. 148-149.

[9] Uma explicação mais detalhada sobre os conceitos de agente e paciente moral pode ser encontrada em  FELIPE, Sônia T. Redefinindo a comunidade moral. In: Maria de Lourdes Alves Borges; José Nicolau Hec (Orgs.). Kant: liberdade e natureza. Florianópolis: Edufsc, 2005, p. 263-278.

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