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Comércio de Animais

10 de setembro de 2010
14 min. de leitura
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Apesar do comércio de animais envolve quase todas as espécies que possamos ter em mente, vou me ater àqueles animais domesticados, de pequeno porte, considerados de companhia, de modo específico, os cães e os gatos.

Mas para falarmos sobre comércio de animais, antes de mais nada necessário se faz, começarmos pela definição do que vem a ser comércio. Pelo dicionário, comércio é: Permutação, troca, compra e venda de MERCADORIAS ou PRODUTOS.

E a história nos relata o quanto é antiga esta atividade. Citando somente um exemplo, na antiguidade, os egípcios a 3.200 AC já praticavam o comércio. E o que eles comercializavam?Um número muito grande de produtos, como especiarias, incenso, papiro, artesanato em cerâmica e, além destes produtos, já comercializavam animais.

As civilizações foram se sucedendo, muitos hábitos, costumes foram se alterando nas mais diferentes partes do mundo, mas o comércio de animais atravessou o tempo e continuou a ser praticado sem qualquer questionamento ou pudor até os dias de hoje.

Recebemos esta “herança”, este” legado” e passivamente temos
perpetuado esta prática aviltante contra os seres vivos. A ciência vasculhou o macro e o micro cosmos.    O nosso calendário gregoriano registrou recentemente a nossa entrada no século XXI, chegamos ao terceiro milênio.
Atingimos a era das sondas espaciais, da robotização, de sofisticadas tecnologias, da física quântica, da nanotecnologia, da codificação do genoma…mas ainda comercializamos seres vivos!

Não é preciso estudar medicina veterinária para aceitarmos a informação de que os animais sofrem.

A anatomia e a fisiologia ( estudo do funcionamento dos órgãos e sistema do corpo de um cão ou de um gato) são de tal forma, semelhantes
ao nosso, que se olharmos somente as estruturas físicas, sem nos atermos às dimensões, dificilmente identificaremos a quem pertence estas estruturas, tamanha a semelhança entre eles e nós.

De modo particular, o estudo do sistema nervoso periférico e central de um cão ou gato, de igual modo também nos revela essa semelhança.Se eu for queimada, cortada ou sofrer qualquer injúria física, a sensação de dor que vou experimentar é essencialmente a mesma que um animal irá experimentar se ele, de igual modo, for queimado, cortado ou sofrer alguma injúria física.

Os receptores para dor que existem em nosso corpo e que levam as informações ao cérebro trabalham de igual modo em nós, como nos
animais.

Se formos privados de liberdade e de interagir com elementos de nossa espécie, isto com certeza provocará um significativo sofrimento emocional em nós.

De igual modo, se um animal for privado de liberdade, de estabelecer interação com seus pares, de seguir seus impulsos naturais, de viver de modo inerente à sua espécie, isto também lhe causará um sofrimento psicológico, emocional, que se traduzirá na diminuição da competência do seu sistema de defesas orgânico, o chamado sistema imunológico.

Então, levando-se em conta que basta ter uma inteligência razoável e alguma sensibilidade para entender e aceitar estas informações, porque ainda assistimos passivamente os cães e os gatos serem tratados como coisas, como produtos?

Deveria causar-nos estranheza que toda esta tecnologia altamente
sofisticada que desenvolvemos, que esta alta intelectualidade que presenciamos nos membros de nossa sociedade, possa coexistir, passiva e
omissa com uma prática degradante que reduz seres vivos que sentem e
sofrem como nós, à condição de mercadorias.

Se saíssemos daqui agora, deste auditório e, lá fora nos deparássemos próximo ao mercado púbico, com um tablado e em cima dele, homens de diferentes idades, acorrentados pelos tornozelos, com uma tabuleta ao pescoço que especificasse suas características, e próximo a eles, um humano livre, promovendo o comércio destas pessoas, certamente que esta cena nos causaria uma grande indignação, um profundo mal estar.

Muito inclusive tentariam fazer algo para impedir, o que classificariam como uma indignidade, uma violência.

Acontece que esta cena, hoje hipotética há não muito tempo atrás, era uma realidade, bem aqui em nosso país, bem aqui em nosso estado também.
Todos sabem que me refiro ao período da escravatura da raça negra
no Brasil. Mas um dia, toda aquela arbitrariedade, toda aquela violência teve um fim. E como isso foi possível?

Foi possível porque alguns homens sensíveis, com idéias libertárias, muito lutaram para que isso se tornasse realidade.

Tudo iniciou quando algumas pessoas que se indignavam profundamente com aquela situação de abuso, de exploração, começaram a perceber que não estavam sós. Que outras pessoas pensavam como elas e começaram a trocar ideias, a se aglutinarem. A planejarem estratégias para devolver a liberdade àquelas pessoas.

Suas ideias lhes soavam arrojadas e mesmo temerárias porque
desafiavam um sistema estabelecido de opressão que não tolerava interferência.

Mas, se por um lado havia a ousadia da tirania, por outro havia a ousadia da bondade, da compaixão.

A história é rica em relatos vergonhosos de opressão e de lutas que se travaram para libertarem minorias oprimidas.

Citando Allan Kardec : ” Toda idéia nova encontra forçosamente oposição e não há uma única que tenha se estabelecido sem lutas.”

Então, se nos comportamos assim com seres semelhantes a nós, que
verbalizam seus temores, seus anseios, suas dores, compreende-se o quão facilmente é, para os seres humanos, subjugarem os animais e colocá-los
na categoria de ” coisas comercializáveis”.

Todos nós, algum dia já ouviu alguém dizer que ama os animais. Na
verdade, esta afirmação é bastante corriqueira. Deduz-se que vivemos em
uma sociedade amigável aos animais !

Não, não somente não vivemos em uma sociedade amigável aos animais,
como temos transformado a vida deles num verdadeiro pesadelo tamanho o
desrespeito com que temos tratado suas vidas. A criação de cães e gatos para venda é algo vil, tão indigno de nossa condição de seres pensantes que se não estivéssemos cegos como estamos pela ganância e vaidade, esta prática já teria sido banida de nossa sociedade há muito, mas muito tempo.

Mas não podemos esquecer que em toda atividade que envolve troca,
permuta, tem que haver dois indivíduos para que tal aconteça. Logo, se numa ponta desta prática está alguém explorando fêmeas a parir em nome do lucro, na outra ponta está o comprador, ou seja, outro  ser humano inconsciente que alimenta a cultura da exploração.

A prática do comércio de animais está tão arraigada em nossa cultura que a maioria das pessoas não percebe suas reais implicações éticas, psicológicas, sociais e legais.

Presenciar um filhote em uma vitrine ou numa gaiola de uma pet shop, oferecido como um produto é algo deplorável. É um atestado de nossa falência moral. Reflete do que somos capazes de fazer em nome do lucro.

Ficamos cegos e surdos à dor, ao sofrimento daquele pequeno ser que foi arrancado da companhia de sua mãe e irmãos de ninhada, privado daquilo que lhe é mais caro: segurança,alimento,calor e interação.

Alguns dirão: mas nem todos os filhotes estão em vitrines ou gaiolas! Sim, onde estão? Nos canis, nos gatis, mas se estão à venda, não importa onde, estão sendo considerados mercadorias.

A sensação que um filhote experimenta ao ser afastado precocemente
de sua mãe é algo extremamente traumático para ele e isso se refletirá em seu comportamento, com possíveis sequelas comportamentais de difícil
reversão.

Por outro lado as mães, privadas de seus filhotes, exauridas de tanto gestarem, um cio após o outro.

Muitas morrem mais cedo devido ao desgaste orgânico das múltiplas
gestações, outras adoecem e outras ainda rejeitam as crias por pura incapacidade física e psicológica, oriundas do stress das gestações sucessivas.

Mas, os humanos são tão zelosos com seus próprios filhos, não?Qualquer relato negativo envolvendo um filhote humano, ou seja, uma criança, gera quase sem exceção uma reação imediata de repúdio por parte das pessoas. Mas porque ficamos tão indiferentes ao sofrimento dos demais
filhotes e suas mães? Porque não nos indignamos e damos um basta à
exploração de cadelas e gatas, tratadas como “máquinas de parir”, matéria prima para a “indústria de filhotes”, para atender a ganância e vaidade humana?     Por quê?Porque as pessoas em nossa sociedade compram animais?

Quando me formei na década de 80, comecei a presenciar em minha
rotina profissional, os reflexos da vaidade humana na vida dos animais.
Constatei com pesar que muitos buscavam um animal para atenderem sua
vaidade, submetendo-se a um certo ” modismo”.

Lembro que primeiro vieram os Dobermans, depois os Pastores Alemães, depois os Rottweillers, depois os Pitbulls, depois…depois…     No porte pequeno vieram os Pequineses, os Fox Paulistinhas, os Poodles, os Cockers. Mais recentemente, os ” top de linha”, os Yorkshires, que as enininhas desfilam em suas bolsas como adereços de luxo, simbolizando status econômico.

Outras passeiam com seus Poodles tosados, vestidos e enfeitados,
compartilhando a calçada com cãezinhos magros, de olhos tristes, farejando migalhas no chão. Mas por que as pessoas dão tanta importância à raça de um animal?Por que elas não conseguem sintonizar com a essência dos animais? Por que precisam se ater à forma, à aparência? Por que, ao invés de comprarem, não adotam um animal abandonado?Por quê?

As pessoas dizem que amam os animais. E eu lhes pergunto: quais animais? Para a maioria cabe a resposta: amam seus próprios animais. E olhe lá. Arrisco dizer que a maioria das pessoas não ama os animais, simplesmente pelo fato de que elas não sabem o que é amar um animal.

Amar não é uma experiência sensorial.Quando uma pessoa olha para um animal e acha ele bonito, ela está tendo uma experiência sensorial, ou seja, ela está vendo algo que agrada seu senso estético. Aquela imagem lhe dá prazer, e ela passa então a querer aquele objeto de prazer, próximo a si. Mas isto não é amor.

Quando uma pessoa acaricia o pêlo de um animal e acha agradável,
gostoso o toque, esta pessoa está tendo uma experiência sensorial. O tato lhe dá prazer. Mas isto também não é amor.Amar transcende. Quem ama respeita e não pode haver respeito quando se compactua com a exploração. Quem ama de verdade os animais, não escolhe porte ou aparência.

Em uma sociedade materialista, com valores distorcidos, com o culto do TER em detrimento do SER, fácil entender alguns fenômenos sociais nos quais os animais são usados, inconscientemente, como símbolos.

Muitas pessoas buscam comprar um animal de raça porque eles simbolizam status econômico. Quem comprou, pagou. Quem pagou, tem dinheiro. E em nossa sociedade, quem tem dinheiro tem algum poder.

Para outras pessoas, o animal de raça supre uma sensação de baixa auto-estima. Ao passear com um animal de raça definida, a pessoa sente-se mais valorizada. Ao contrário, desfilar com um ” vira-lata” pode ser muito desafiador para um ego pouco desenvolvido.

O temor inconsciente de ser classificado de igual forma ao animal sem raça, ou seja, como ” sem valor”, faz com que elas repudiem a idéia de adotarem o sem raça definida.

Temos ainda os pitboys. Jovens com baixa escolaridade, de classe
social menos favorecida, mergulhados numa cultura violenta, buscam um cão de raça vigoroso, que simbolize força e cause temor e ” respeito” entre seus companheiros. Estes jovens não têm consciência de que precisam de um cão para serem aceitos e ” respeitados” em suas tribos.

E são estes jovens que têm feito da vida de centenas de cães da raça Pitbull um verdadeiro inferno, pobres animais estimulados à agressividade, vítimas da estupidez humana e omissão das autoridades constituídas, que na maioria das vezes nada faz para coibir este estímulo à violência.

E assim, os animais de raça definida vão servindo aos propósitos de uma espécie psicologicamente desequilibrada, empobrecida de valores mais nobres, que os usa como muletas para suprir suas deficiências psicológicas. E agindo assim, temos perpetuado o holocausto daqueles que não conseguem um lar e a exploração daqueles a quem dizemos amar.

Milhões de animais, cães e gatos sadios são mortos por ano em abrigos públicos, os chamados CCZs – Centro de Controle de Zoonoses- a maioria, rejeitados, abandonados, por não se enquadrarem num padrão estético, outros, por cruel ironia, são igualmente eliminados mesmo possuindo uma definição racial que os tornou vítimas de sua própria aparência, na medida em que foram criados em série, vendidos e depois abandonados.

Muitos crêem equivocadamente que animais de raça definida sempre terão quem os queira. Mas ter quem os queira, não significa em absoluto que serão cuidados, que se responsabilizarão por eles. Nossa rotina veterinária mostra isso com dolorosa clareza.

Acredito que todo colega veterinário que trabalhe com clínica de pequenos animais, vivencia a desagradável situação de atender filhotes recém adquiridos das feiras de filhotes. Eles chegam trêmulos, nos braços de seus tutores, com olhar sem brilho, assustados, inseguros pelo afastamento de suas mães.

Um número imenso deles apresenta problemas físicos diversos desde tenra idade como verminose, parasitas externos, desnutrição e infecções virais.    Freqüentemente estes filhotes vão a óbito. Seus novos tutores mostram-se nesta ocasião profundamente irritados pelo fato de terem gasto dinheiro e perderem o animal. Tentam contato com os vendedores não raro, não os encontrando. Os que conseguem o contato, após alguns telefonemas, estabelecem que receberão outro filhote.Afinal, tudo não passa de uma transação comercial!    Produtos com defeitos são trocados, substituídos. Para filhotes mortos, filhotes repostos.

Para algumas pessoas mais sensíveis, a experiência dolorosa de perder o filhote provoca uma reflexão e percebem o quão cruel é o sistema que fomentaram ao comprar o animal. Mas estes infelizmente são a minoria, diria mesmo, uma raridade.  A maioria continuará a buscar um cão ou gato na próxima feira ou pet shop.Há muitos anos, os militantes da defesa dos animais lutam com tenacidade para pôr um fim a uma das maiores atrocidades cometidas contra os animais, que vem a ser o extermínio em massa praticado em cães e gatos sadios pelos órgãos públicos, numa tentativa equivocada, anti-ética, ultrapassada e ineficaz de controle populacional.

E, enquanto uns buscam incessantemente o controle populacional ético, estimulando esterilizações, adoções, promovendo palestras educativas, outros estimulam nascimentos, produzem ” fábrica de filhotes”, exploram fêmeas a parir, tudo em nome do lucro, da ganância, da vaidade humana.

Vão à contramão da solução viável, acentuando o desequilíbrio nestas populações, indiferentes à sorte destes animais, cegos a uma realidade grotesca que vitimiza os inocentes, os indefesos e se omite frente aos exploradores.

 Os cães e os gatos vivem um verdadeiro drama nestas selvas de concreto, as denominamos cidades modernas.Nascem em grande número e são abandonados à própria má sorte por pessoas egoístas, inconseqüentes que cultuando a ” síndrome de Pilatos” lavam as próprias mãos e viram as costas para o trágico destino destas sensíveis e vulneráveis criaturas.

O poder público por sua vez, promove seu extermínio biocida tratando-os como pragas urbanas, não percebendo ou não querendo perceber as verdadeiras causas envolvidas nesta questão. O comércio de animais é um dos grandes agravantes do drama da superpopulação de cães e gatos.E o que o poder público faz para coibir esta prática? Os animais têm nos dado muito. Acrescentam muito às nossas vidas, mas nós não temos retribuído da mesma maneira a eles. Mahatma Gandhi dizia: ” A grandeza de uma nação pode ser julgada pelo modo como seus animais são tratados.”    Mas os canis públicos e particulares estão lotados neste exato momento, povoados por latidos e miados lastimosos que clamam liberdade e carinho. Estão lotados pelas vítimas da nossa vaidade, da nossa insensatez, da nossa inferioridade.

Sabemos que o preconceito, que se constitui  uma das maiores manifestações de violência, tingiu a história da humanidade de sangue e horror. O nazismo exemplifica com clareza onde podemos chegar a nome do
preconceito racial.Temos nos outorgado o direito de tiranizar a todos aqueles seres vivos, independentemente da espécie a qual pertençam, quando os consideramos de menor valor.O novo milênio chegou trazendo um desafio a todos nós: mudarmos os paradigmas vigentes e colocarmos outros em seu lugar. Mas como se faz isso?

Quinto Horácio Flaco, poeta latino que viveu entre 65 a 8 AC,
dizia: ” Ousa saber. Começa.”, Comecemos nos conhecendo.

Comecemos tendo a coragem de nos olharmos com realismo e encararmos de frente o grande inimigo que ainda habita dentro de nós mesmos e nos faz cometer toda sorte de crueldades e desrespeito contra a vida.

Porque enquanto insistirmos em nos vermos com olhos benevolentes, sob uma ótica ingênua, não conseguiremos operar as mudanças necessárias para tornarmos este mundo um lugar ecologicamente equilibrado para as futuras gerações de todas as espécies.

O homem é somente mais uma espécie. Não é, nem nunca foi o centro da criação.    Precisamos ajudar os homens a libertarem-se de sua condição de algozes, de exploradores. Precisamos auxiliar os homens a abandonarem o comodismo e ajudá-los a perceber que são capazes de fazer diferente e melhor. A fazerem algo mais nobre pela vida como viver e deixar viver.

Porque errar é humano, persistir no erro, é maldade.    Acordemos.




Vanilda Moraes Pintos,Médica Veterinária,Coordenadora do Grupo Amigo Bicho da Sociedade Vegetariana Brasileira-Rio Grande/RS,
Diretora Administrativa do MGDA- Movimento Gaúcho de Defesa Animal-Porto Alegre/RS

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