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Animais que ninguém vê

30 de setembro de 2010
3 min. de leitura
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Não, eles não são invisíveis – embora algumas vezes pareçam, tão despercebidos passam no meio do cotidiano. E, definitivamente, eles estão ali.

Eu confesso que só comecei a perceber quando passei a enxergar o mundo com outros olhos. Então me dei conta de que muitas vezes estava sentada em cima deles. Ou, pior ainda, pisando neles.

De uma forma ou de outra estavam todos inseridos em minha rotina – e na de muitos ao meu redor. Quietos. Calados. Mudos. Mesmo sem dar seu consentimento, estão ali. Mas, com certeza, se estão ali, é com nosso consentimento – e omissão.

Houvesse uns óculos transformadores e veríamos as aberrações que fazemos com eles. Imagine uns óculos como os 3D – que trazem a realidade das telas para mais perto de nós – que revelassem a real natureza das coisas.

Logo de manhã, antes mesmo de sair de casa para trabalhar, veríamos bois e vacas espremidos no guarda-roupa em forma de sapatos, cintos, bolsas, casacos. As marcas da violência ainda evidentes no couro. Vendo a blusa de seda, notaríamos a larva ainda se contorcendo dentro do casulo. Alguns encontrariam pedaços mortos de coelhos, raposas, jacarés e toda a fauna usada para preencher o capricho humano, cuja imaginação, nessa área, parece ilimitada.

Estariam todos lá – olhar caído, dor estampada nos olhos, com a humildade que lhes é exigida para ser útil à humanidade. Sangue escorrendo pela face. Uma morte por uma boa causa, diz quem quer se livrar da própria consciência.

No nosso banho também os descobriríamos lá, quando saltassem, de dentro do vidro de xampu, unhas, pelos, cascos, pedaços de dentes, chifres e tecidos córneos de diversos animais. Uma cena digna de filme de terror, dessas que dão asco na tela. E passamos esses restos mortais transformados por químicas em nossa cabeça, pelo corpo, sobre toda a pele.

Há quem use até cera encontrada no espermacete do esperma de baleias e golfinhos. O ser humano tem gostos estranhos… O que dizer?

Como nos banhar com animais mortos não é suficiente para nossa compulsão doentia de mostrar quem manda no reino animal, nossa fome busca mais e queremos literalmente devorá-los. E abrindo a geladeira, os óculos reveladores nos mostrariam animais em pedaços, fragmentos de corpos agora inanimados.

As fatias de bacon, presunto e salame pulariam para o chão, saltitando e rememorando a época em que eram partes de porcos. Querem brincar e dançam com o cachorro da casa. Animais em comunhão.

A alcatra, a maminha, o colchão mole e o duro tentam em vão remontar o ser que outrora foram – não são mais. Ainda não desossado, o frango ousa bater asas e descobre, a duras penas, que não pode mais ciscar.

Animais em pedaços. Histórias interrompidas. Morte oculta em nosso cotidiano. Mas quem quer ver?

Sem os óculos reveladores a vida fica mais fácil. A geladeira só tem comida – nada de pedaços de cadáveres; os produtos de beleza revelam só beleza – e não a feiúra da morte que os compõem.

E então, sentado sobre o sofá de couro, é tranquilizador aninhar o cãozinho de estimação no colo tão bem cuidado, tão bem tratado, passar a mão em seu pelo macio e sentir como é bom viver em harmonia com os animais.

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