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Urubus são explorados como objetos em instalação na 29ª Bienal de SP

22 de setembro de 2010
8 min. de leitura
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Por Lilian Regato Garrafa   (da Redação)

 

Três urubus são mantidos confinados na instalação de Nuno Ramos na Bienal de SP (Foto: ANDA)

Com abertura ao público prevista para sábado, dia 25 de setembro, a 29a Bienal de São Paulo apresentará, entre as suas instalações, três urubus confinados como parte de uma exposição. O mórbido viveiro (cujo nome mais apropriado seria “morteiro”) compõe a obra intitulada “Bandeira Branca”, de concepção de Nuno Ramos, paulista de 50 anos, considerado um dos mais respeitados artistas do país.

O espaço central do pavilhão foi cercado com telas de proteção pretas e equipado com cerca de 50 alto-falantes, sobre três túmulos gigantescos, que servem de “poleiro” aos urubus. De cada um deles, as caixas de som emitirão três músicas distintas (‘Carcará’, ‘Bandeira Branca’ e ‘Acalanto’), algumas vezes simultaneamente, outras isoladamente.

Sob a denominação “arte”, os urubus serão mantidos até dezembro neste ambiente. Durante esses meses, estarão sujeitos a grande estresse vindo não só do barulho interno produzido pela instalação, mas também do ruído externo gerado pelas milhares de pessoas que por lá circularão diariamente e pelos sons das demais instalações. Grande número delas emite algum tipo de ruído. As luzes artificiais e o forte cheiro de tinta proveniente das obras e paredes recém-pintadas contribuem para o mal-estar que se sente no local.

Aves ficarão confinadas de domingo a domingo até dezembro (Foto: ANDA)

O ambiente inóspito e artificial, a ausência da liberdade e a privação de luz solar ao serem confinadas como mais um objeto de arte em meio a tantos outros caracterizam o maior sofrimento dessas aves, que não tiveram chance alguma de escolha.

A ANDA conversou com Nuno Ramos, que, ao ser questionado sobre o limite da ética na arte, declarou que “o limite é a lei”. A autorização do Ibama para que as aves se mantivessem de domingo a domingo expostas como uma matéria inerte no pavilhão reforça a conclusão do artista. A lei não só autorizou a exploração, como colocou regras em seu uso. Um exemplo são os decibéis que o som dos alto-falantes poderá atingir. Concordando com este limite, Nuno se diz preocupado com o bem-estar dos animais e aberto a “ajustes” se necessário.

Tal instalação já foi reproduzida em Brasília em junho deste ano com os mesmos urubus. Nascidos em cativeiro, eles vivem no parque dos Falcões, aberto à visitação pública, em Sergipe, e são emprestados a Nuno a cada instalação. O artista se declara contra confinamento de animais nascidos livremente na natureza, por isso optou pelo uso daqueles que nunca conheceram a liberdade. Garantindo que as aves que expõe são bem tratadas, ele alega que possuem um tratador e veterinário exclusivos.

Burros em exposição de Nuno Ramos (Foto: Reprodução/AILA)

Nuno já explorou anteriormente animais em suas instalações.  Em 2006, o Instituto Tomie Ohtake abrigou uma exposição do artista em que burros eram expostos com grandes caixas de som atreladas ao dorso. A UIPA interveio para que o equipamento de som fosse retirado dos animais. Uma crueldade travestida de “arte”.  Em 2008 outra exposição denominada “Monólogo para um Cachorro Morto” mostrava, em meio a outros objetos, um vídeo de um cão que encontrara morto após atropelamento em uma estrada.

O assessor de Nuno, Rômulo Fróes, interrogado sobre a ética na arte, argumentou que “a ética varia conforme o ponto de vista de cada um” e utilizou o exemplo dos zoológicos para ratificar a validade de uma exposição com animais, justificando que, em ambos, os animais não estão por vontade própria, embora legalmente autorizados ao confinamento. Ressalta que os animais estariam sendo mais bem tratados ali do que nas ruas, reiterando a ideia de que o aprisionamento não seria necessariamente crueldade.

Ignorando os motivos que levaram Nuno a submeter essas aves à sua “arte”, pois onde há exploração não é possível haver liberdade, nem mesmo de pensamento, colocamos aqui as questões do utilitarismo, da ética e da lei que acoberta e permite tais abusos.

Segundo a filósofa Sonia T. Felipe, em sua coluna na ANDA A ética e o urubu, “uma coisa é interagir com seres vivos de outras espécies; outra, intervir em suas vidas de modo tal que sejam impedidos de gozar o que seu espírito ou mente lhes propicia. Nesse caso, nossa interação deixa de ser ética, pois implica uma inter-ferência, essa forma negativa de intervir na vida alheia ferindo-a ou trazendo-lhe prejuízos em vez de benefícios, ferindo, em vez de defender. Não adianta alegar que o animal está sendo bem tratado, porque cada espécie animal só é bem tratada se não for privada da liberdade de buscar por si mesma os meios de que necessita para assegurar seu próprio bem a seu próprio modo. Isso vale para todas as interações humanas com todos os tipos de animais. Lutamos, no Brasil, para que nenhum circo volte a usar animais em suas apresentações. É preciso que nenhuma mostra de arte seja autorizada a fazer uso de animais para criar realidades absolutamente desnecessárias ao espírito dos animais.”

O ambientalista e coordenador do Movimento em Defesa dos Direitos dos Animais, Gabriel Bitencourt, afirma que, “embora os animais em questão sejam criados em cativeiro e estejam sob o amparo de técnicos,  com autorização do Ibama, isso não significa que três animais em um ambiente imerso, ainda, em cheiro de tinta, envolvidos em ruídos, não estejam em ambiente desapropriado – para dizer o mínimo – com sua condição de vida. É mais uma expressão clara da forma utilitarista com que as pessoas veem e tratam os animais e explicita a fragilidade da legislação atual no que concerne aos direitos dos animais”.

Gabriel ainda complementa com uma pergunta: “se o artista está agindo de acordo com a legislação vigente, que lei é essa que permite o uso de animais com este propósito? Não podemos nos ater ao legalismo! Temos que protestar, buscar alterações na legislação brasileira para torná-la concernente com a natureza senciente dos animais e para com o respeito à sua dignidade.”

Espaços limitados e ilimitados do possivel

O artista multimídia, videomaker, performer, escritor e professor doutor em artes, Artur Matuck,  que já expôs na Bienal de São Paulo, afirma que  “se não defendermos a todo custo as instituições que tornam arte uma possibilidade, correremos o sério risco de gradualmente desinventarmos nossa própria liberdade. A questão se complexifica quando o pensamento busca refletir sobre a arte enquanto espaço de possibilidades ilimitado. A questão é saber se o ilimitado realmente pode ser concebido, se uma suposta ausência absoluta de qualquer restrição constitui-se realmente como espaço de liberdade. A questão que se coloca é a de saber se este espaço pode existir fora de linguagem? Ou da ética, da filosofia, do direito, da  historia?”

A ANDA encaminhou um email solicitando declarações sobre a instalação de Nuno Ramos para os curadores da 29ª Bienal de São Paulo, mas até o momento não obteve resposta.

Assassinato e crueldade sob o manto da arte

No ano de 2007, o costa-riquenho Guillermo Vargas Habacuc, até então considerado um “artista”, mostrou-se na verdade um assassino ao expor, em uma galeria de seu país, um cachorro amarrado até que morresse lentamente de fome e sede. Uma agonia que durou dias e foi contemplada passivamente pelo público. O ato sórdido foi repetido na bienal de 2008 e gerou protestos mundialmente contra a crueldade explicita e consentida pelo público, curadores e entidades legais.

Este cão foi morto em nome da arte por Guillermo Vargas Habacuc
Este cão foi morto em nome da arte por Guillermo Vargas Habacuc

Em fevereiro deste ano uma exposição intitulada ‘Porcos Tatuados’, do “artista” belga Wim Delvoye, provocou polêmica no Museu de Arte Moderna e Contemporânea de Nice, na França. Sete porcos empalhados e tatuados causaram indignação de entidades de defesa dos animais.

Porcos tatuados (Foto: Valery Hache/AFP)

Estes são exemplos de abuso consentido pelas leis locais, que ignoram a ética, o respeito, a dignidade e o direito inerente à vida de todos os animais. Mostram que leis não necessariamente legitimam um ato abusivo. A reação contra a exploração e a favor de uma ética justa e igualitária entre todos os seres é o caminho para a evolução não só da cultura, mas da convivência entre seres humanos e as demais espécies.

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