Touradas: tradição ou traição?

1 de setembro de 2010
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Renato Pontual
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Recentemente, voltou à tona a discussão sobre a crueldade das touradas.
Fiquei impressionado (e feliz) em saber que a Catalunha aprovou uma lei proibindo tal evento àa partir de 2012. Confesso que me  espantou essa decisão. Lá,  as tradições são mantidas de modo ferrenho: têm sua própria língua, recusam-se a admitir-se espanhóis,  cometem atos de segregação contra estrangeiros de modo evidente.

Por outro lado, é de se louvar a capacidade de alguns catalães ilustres, a beleza da criação artística, Gaudi, Mirò, Josep Puig, Dali e Picasso (que embora andaluz, malaguenho, adotou Barcelona como seu lar por tantos anos). Quem conhece Barcelona fica maravilhado com o clima de “modernidade” e a efervescência cultural da região.

Sempre me perguntei como um povo tão impregnado de idéias criativas, de uma estética tão particular  pudesse também ser um dos grandes berços e sustentadores deste espetáculo de tamanha crueldade humana.

Depois de alguma reflexão, percebi que nós humanos temos o hábito equivocado de classificarmos  as coisas como boas e más;  de colocarmos em pacotinhos separados: isto é bom, aquilo não é. Isto faz com que muitas vezes criemos certos conceitos sobre o bem e o mal, que de tão genéricos, nos confunde. Tento explicar com aquilo que sempre tenho trabalhado, o processo criativo. Quantas vezes me deparei com pessoas citando o processo criativo, por sua direta associação com as artes, com coisas belas, com prazeres, como uma coisa maravilhosa, um dom, uma dádiva. Lembremos que o processo criativo é tão somente um processo, que pode ser bom ou mal: um estelionatário é muitas vezes, ao planejar um golpe, tão criativo quanto um grande compositor ou poeta! O ato criativo não dignifica os fins, assim como quase tudo em nossas vidas: haverá sempre o bem e o mal e os atos não podem servir de justificativa para o mal.

A “evolução” da nossa espécie, a nossa dita “inteligência”, deve servir para podermos avaliar a diferença entre o bem e o mal e ter a sabedoria de eliminar o mal e valorizar o bem.Pparece tão óbvio, mas muitas vezes os homens não percebem e continuam cegos diante de certos conceitos equivocados.

Fico pasmo quando vejo pessoas, ditas inteligentes, defendendo as touradas em nome de uma suposta “tradição”. Neste caso, repito que associou-se a ideia de “tradição” como algo bom, o que não é verdadeiro: há e houve tradições boas e más. As más, como parte de nosso desenvolvimento humano, certamente devem ser esquecidas ou, melhor dizendo, relembradas cenicamente para que as gerações futuras percebam o quão más eram e que não repitam os erros passados (aliás, esta é uma das funções importantes da “tradição”: contar histórias dos povos e culturas através dos tempos. Histórias nem sempre boas devem ser contadas para que não  esqueçamos o quanto fomos estúpidos).

Aos que defendem com ignorância e curta inteligência as “tradições”, independentemente de avaliarem seus atos e significados, proponho que voltem a outras, já extintas: queimar pessoas vivas em fogueiras, oferecer virgens aos deuses; entregar a própria mulher ao viajante que chega em nossa casa para uma noite de sexo, jogar nos rio os primeiros filhos( se estes nascerem do sexo feminino), oferecer a filha virgem ao rei antes dela casar-se, comer o cérebro de nossos inimigos…..

É impressionante que ainda existam certas “tradições”. E muitos daqueles que defendem a “tradição”  das touradas são contraditórios ao protestarem contra  o apedrejamento de mulheres “infiéis” no oriente, contra a amputação do clitóris, contra a automutilação como forma de obter o perdão “divino”….

Sim, são atos burros, primitivos e inaceitáveis numa sociedade que se diz “evoluída”.

As touradas, e todas as formas de competição na qual colocamos em jogo a vida de seres que não escolheram estar em risco, são estúpidas, burras, cruéis e primitivas. Como se vivêssemos ainda na Idade da Pedra, e nossos cérebros fossem pequenos como nozes: incapaz de perceber que a vida é um conjunto, e que todos os seres vivos têm o direito a ela, e tal direito deve ser respeitado até o limite da nossa própria sobrevivência. Matar por esporte não era hábito nem dos trogloditas de milhares de anos atrás!

Mantermo-nos defendendo algo que representa um absurdo tão grande é muito mais uma “traição” à nossa capacidade de pensar, de evoluir, de praticar o bem contra o mal, do que uma “tradição”. Estamos traindo a própria ideia de imaginar o ser humano como um ser inteligente.

Será que somos mesmo capazes de pensar?


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