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Competência literária versus incompetência ética

15 de agosto de 2010
3 min. de leitura
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Desde que comecei a escrever para esta coluna, muitos livros infantis vêm cair em minhas mãos. Tenho na medida do possível analisado os livros para um possível comentário aqui. Dentre esses livros, me deparei com um que me pareceu especial. O que me chamou a atenção em primeiro lugar foi a autora. Trata-se de uma das maiores escritoras de livros infantis que conheço: Tatiana Belinky. Outra coisa que me fez atentar para ele foi a ilustração da capa: uma menina segurando uma gaiola, com um lindo passarinho amarelo dentro dela. Logo imaginei tratar-se de uma crítica às prisões que são impostas aos pobres pássaros privados de seu maior poder: o de voar.
O livro é Stanislau, publicado pela editora Ática, indicado, segundo a editora, para crianças a partir de quatro anos.
Comecei a ler o livro e meu julgamento inicial foi logo se desfazendo. Percebi como a genialidade de uma autora é capaz de envolver uma criança até para embutir nela conceitos errados.  A história começa apelando para a vontade de toda criança em ter um bichinho de estimação. A pequena Nica faz aniversário e ganha de sua tia Regina um lindo canário em uma gaiola. Nem precisa dizer que foi o presente de que a menina mais gostou. A partir daí Tatiana Belinky vai descrevendo com muita competência a relação de amizade entre os dois.
A menina trata muito bem seu novo amiguinho, limpa sua gaiola, troca a água do bebedouro, lhe dá vitamina e alpiste. Stanislau, que foi o nome escolhido pela menina, agradece todo esse carinho, cantando e se balançando no poleiro. E assim segue o livro contando como os dois são felizes juntos. Até que um dia uma vizinha implicante dá uma dura na menina dizendo que passarinho não é para ficar preso e que ele foi feito para voar livre. Nesse momento imaginei que o rumo da história mudaria e, enfim, o bom senso prevaleceria. Afinal uma autora que eu admiro tanto não poderia me decepcionar. Mas foi exatamente o que aconteceu. A fala da tal vizinha ficou na cabeça de Nica e ela até pensou que a mulher poderia ter razão. Foi então que o inesperado aconteceu.
Stanislau, em um momento de distração da tutora, escapa da gaiola e tenta sair voando. Desesperada, Nica sai atrás do bichinho, mas ele não consegue voar muito longe e cai no chão. Então a menina que amava seu amiguinho o recolhe, cuida dele e o coloca novamente na gaiola e chega à seguinte conclusão, nas palavras do próprio livro, que vou reproduzir aqui: “A dona Quita pode até estar certa quando diz que é maldade pegar passarinho e trancar na gaiola. Mas com você é diferente, você nasceu e se criou na gaiola: não saberia viver fora dela.” E assim termina o livro com a ilustração do pássaro feliz dentro da gaiola.
Vejam só quantos conceitos errados a respeito dos animais a autora conseguiu passar em um livrinho de 24 páginas. Primeiro, que se pode dar um animal de presente para alguém. Segundo, que esse animal pertence a esse alguém que tem o direito de mantê-lo preso em troca de um bom tratamento. Depois, que uma jaula grande é melhor do que uma jaula vazia. E ainda o conceito de “animais de cativeiro”.
Estes são, infelizmente, conceitos de bem-estarismo tão comuns hoje em dia. Usam-se os mesmos conceitos para explicar às crianças os critérios de criação de gado e outros animais. Ou ainda explicar por que adoramos os cães e matamos as vacas. Afinal as vacas foram feitas para ser alimento e os cães, não. Então nos chocamos com o consumo de cães na China.
O pior de tudo é que a autora sabe conduzir a história e seduzir o pequeno leitor. E sou capaz de apostar que muitas crianças terminam o livro convencidas de que não há problema algum em manter um passarinho na gaiola. É a competência literária versus a incompetência ética.
Francamente, a publicação desse livro foi um verdadeiro desserviço à causa animal. Espero, e muito, que ele não seja recomendado e nem adotado por nenhum professor consciente.

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