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Sobre o raciocínio ético: os conteúdos (Parte 6)

6 de agosto de 2010
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Na coluna anterior, após termos concluído que o benefício/malefício sobre os atingidos pelas nossas decisões deve ser o ponto central do raciocínio ético, preparamos terreno para investigar a possibilidade da existência de outros conteúdos válidos para a ética.

Abaixo, encontra-se uma lista de conteúdos que serão utilizados ao longo dessa análise. Estes, em meu entender, passam nos testes formais e são metas válidas para a moralidade (ainda que nenhum deles seja absoluto). E não são absolutos justamente porque um tipo de preocupação pode limitar os excessos de outra. Assim, nos comentários abaixo citarei algumas críticas quanto a essas metas, mas isso não significa que devamos descartá-las; significa apenas que essas críticas apontam os excessos que devem ser evitados na busca de tais metas.  

Vale lembrar que todos esses conteúdos precisam ser universalizados, ou seja, se alguém adota, por exemplo, o conteúdo do fomento da liberdade como meta da ética, só entra aquela liberdade que é conseguida sem impedir a liberdadede outros indivíduos, e, essa liberdade dos outros indivíduos deve seguir o mesmo critério. Se a meta é a autonomia, não pode violar outras escolhas autônomas universalizáveis; se a meta é a felicidade, não pode violar outras satisfações da felicidade que também são universalizáveis, etc. Seguem-se exemplos disso abaixo:

1) Satisfação/felicidade. A maioria dos filósofos não usa esses termos como sinônimos. Por falta de espaço, aqui, no entanto, serão utilizados assim. Tal preocupação pode ser dividida, de acordo com o que o agente terá de decidir, da seguinte maneira: (a) Não-maleficência: todos aqueles atos que visam não causar mal aos atingidos. Esse princípios diz respeito a algumas coisas que os agentes devem deixar de fazer (omissão), a fim de evitar causar danos. Os danos podem vir na forma de uma inflição de algo ruim, ou de uma privação de algo bom, sendo que na privação, não necessariamente há percepção do dano por parte do indivíduo prejudicado (como, por exemplo, quando alguém é assassinado enquanto está inconsciente). (b) Beneficência: envolve produzir um benefício, o que geralmente vêm com uma ação (mas também pode acontecer por parte de omissões). Pode ser dividida em: (b1) curar um dano já existente (b2) prevenir que novos danos aconteçam; (b3) restaurar um benefício que foi perdido; (b4) aumentar benefícios a partir do nível que estão.

Como vimos, a preocupação com a satisfação pode indicar limites em várias outras preocupações: (a) pode mostrar que seguir uma regra que cumpre os critérios formais causará mais danos do que benefício, em determinados casos, como vimos com o exemplo da regra “jamais tirar uma vida humana”; (b) pode mostrar que uma preocupação excessiva em fomentar a liberdade corporal pode trazer mais danos do que benefícios, caso outros interesses importantes não estejam sendo satisfeitos. Por exemplo, não é exatamente verdade que todos os casos de animais domesticados estariam melhor na rua, por estarem livres – a satisfação de outros interesses como viver livre de sofrimento, fome, frio, doenças, etc. poderiam estar em falta. (c) Pode mostrar que uma preocupação excessiva com satisfazer preferências pode danar estes mesmos indivíduos. Por exemplo, uma criança pode preferir brincar em um lugar onde poderá ser atropelada; (d) Uma preocupação excessiva com que “a justiça seja feita, sejá lá quais forem os custos” pode gerar conflitos futuros intermináveis, ainda piores; (e) Atos danosos podem vir de boas motivações (“de boas intenções, o inferno está cheio”) e alguns atos, mesmo com motivações ruins, podem causar benefícios. Contudo, um proponente do critério da satisfação reconheceria aqui que decisões movidas por motivações boas têm chances muito maiores de terminarem em boas conseqüências; (e) Uma preocupação excessiva com dizer a verdade pode ser a ruína do recebedor da verdade, como, por exemplo, quando contamos a alguém que está muito doente e isso afeta de tal modo seu estado psicológico que o impede de se recuperar.

2) Preferências: Pode ser extremamente difícil, em muitos casos, determinar o que vai fazer alguém feliz, ou o que vai aliviar seu sofrimento. Com base nisso, alguns filósofos sugerem que devemos perguntar a tal indivíduo o que ele prefere, independentemente de sabermos se isso será o melhor para ele a longo prazo ou não. Embora ajude em muitos casos, um problema com essa visão é que certamente certas preferências que dão satisfação a curto prazo causam sofrimento a longo prazo – como, por exemplo, fumar. Alguns autores, que vêem a satisfação de preferências como algo bom em si mesmo, dirão que é melhor permitir à pessoa satisfazer seu desejo por fumar, mesmo que isso venha lhe causar câncer. Outros, que vêem a satisfação de preferências como um caminho para garantir a felicidade, teriam de admitir que fomentar a preferência nesse caso não é caminho para fomentar a felicidade a longo prazo, ou, até mesmo, para fomentar outras preferências. Outro limite dessa visão é que existem indivíduos que sabemos que possuem preferências (crianças muito pequenas, animais não-humanos) mas não podem, em muitos casos, nos comunicá-las. Pode acontecer ainda, que eles nos comuniquem, mas certamente satisfazer tal preferência irá daná-los. Por exemplo, um cão que pede para ir brincar na rua, quando sabemos que certamente será atropelado.

3) Autonomia: Com base nos problemas da satisfação de preferências x satisfação da felicidade, alguns filósofos sugerem o seguinte: com relação a indivíduos que possuem capacidade para compreender e julgar as conseqüências de suas escolhas (possuem autonomia), devemos respeitar suas escolhas, mesmo que isso venha a lhes causar sofrimentos futuros; já indivíduos que estão destituídos de autonomia (temporariamente ou permanentemente), devemos adotar uma posição mais paternalista e buscar sua felicidade (o que, às vezes, irá nos colocar contra a sua satisfação de preferências quanto ao momento presente). Uma forte crítica a essa visão diz respeito à dificuldade de saber se alguém, mesmo sendo um humano adulto, compreende as conseqüências de suas escolhas e os possíveis danos envolvidos. Outra crítica diz respeito a algumas visões restringirem a moralidade ao respeito pela autonomia. Sabemos que alguém ter liberdade para fazer escolhas autônomas não é o bastante para alguém se sentir razoavelmente bem, pois todas as escolhas disponíveis podem ser muito ruins. Assim, muitos filósofos defendem que, além de respeitarmos a autonomia, teríamos deveres de, por exemplo, beneficência, ou seja, ajudar outros indivíduos. A autonomia, em alguns autores, aparece como sendo boa em si mesma (mesmo que não traga felicidade) ou como derivada da felicidade (“as pessoas se sentem melhor quando suas escolhas autônomas são respeitadas”).

4) Liberdade corporal. A liberdade corporal é vista, em alguns pensadores, como boa em si mesma; em outros, como condição para o fomento da felicidade. Os do primeiro tipo podem apontar que mesmo que, por exemplo, um animal não-humano seja extremamente feliz sendo cuidado por humanos, algo a que lhe é devido está faltando, que é viver solto, mesmo que isso for deixá-lo numa condição pior. Os do segundo tipo diriam que a liberdade corporal só é importante enquanto for condição necessária para a busca de satisfação e que, quando se torna um inferno (como pode ser o caso de um animal que viva livre mas não tenha o que comer, nem com quem se relacionar e esteja vulnerável a doenças ou predação), deixa de ser um bem. Como vimos, a do primeiro tipo entra em conflito direto com a exigência conseqüencial, por pretender ser independente de preferências, satisfação, felicidade, dos atingidos – portanto, deveria ser descartada.

5) Motivação correta. Como falamos, é possível causar um mal, mesmo tendo uma boa intenção. Contudo, não é verdade que o valor moral de uma decisão reside todo nas suas consequências. Se assim o fosse, uma ação que visa uma preocupação consigo próprio, e que por acaso evita a morte de alguém, seria tão recomendável quanto uma que tem realmente a intenção de evitar a morte desse alguém. Podemos citar como exemplo o veganismo motivado pela preocupação com a saúde do próprio agente e o veganismo motivado por evitar a morte dos animais. A preocupação com a motivação correta também pode estar sendo vista ou como boa em si mesma ou como fundada nas conseqüências. No primeiro caso, uma decisão que começa com uma intenção ruim já é errada. No segundo, aponta-se que é mais fácil resultarem boas conseqüências de boas intenções. Contudo, os defensores dessa última posição têm de admitir também que, se de uma intenção ruim estiverem saindo boas conseqüências, e a outra opção com boa intenção tiver conseqüências não tão boas, então a consequência boa da intenção ruim é melhor.

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