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A nossa crueldade contada pela ciência

14 de julho de 2010
5 min. de leitura
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Em 1997, o escritor John Coetzee foi convidado pela Universidade de Princeton para apresentar as prestigiadas Tanner Lectures. Ele podia falar do que quisesse, já que o tema se referia à “compreensão do comportamento e dos valores humanos”. Surpreendendo todos, decidiu ler dois relatos sobre “La vita degli animali” [A vida dos animais] (Ed. Adelphi, 2000). A protagonista dos contos era uma escritora australiana chamada Elizabeth Costello, que era convidada por uma universidade norte-americana para falar do que quisesse. Surpreendendo todos, ela decidiu discutir sobre a vida dos animais.

A reportagem é de Piergiorgio Odifreddi, publicada no jornal La Repubblica, 25-06-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

O que Coetzee fez com que se concluísse com o seu duplo imaginário nas Tanner Lectures, a propósito do uso dos animais como alimentação e experimentação, foi: “Estamos circundados por uma obra de degradação, crueldade e extermínio capaz de rivalizar com o que o Terceiro Reich foi capaz. Ou melhor, capaz de fazer com que ele pareça ser pouca coisa em comparação, já que a nossa é uma obra sem fim, capaz de autogeração, pronta a colocar no mundo incessantemente coelhos, ratos, frangos e animais com o único objetivo de matá-los”.

A vida dos animais é um livro poderoso, que, porém, persiste no pecado original de toda a literatura: narra histórias inventadas sobre seres imaginários que povoam um mundo de fantasia. Portanto, não pode produzir nenhum efeito significativo e duradouro sobre a vida de pessoas reais que vivem no mundo real. Não é por nada que o bioético Peter Singer (foto), que no livro faz coro a Coetzee, declara explicitamente: “Vocês dizem que sou antiquado, mas prefiro manter a verdade e a ficção bem separadas”.

A sua declaração é particularmente relevante, porque Singer é o autor do livro-manifesto “Libertação animal” (Ed. Lugano), publicado pela primeira vez em 1975 e recém republicado em uma nova edição atualizada pela editora Saggiatore. Um documento-verdade, justamente, que, longe de se limitar aos efeitos soporíferos das histórias-ficções, redespertou no mundo inteiro uma sensibilidade concreta com relação aos sofrimentos e aos direitos dos animais.

Como filósofo, Singer começa analisando as duas tradições ocidentais com relação aos animais. A majoritária, de exploração e domínio em nome da suposta superioridade humana, que a partir do Gênesis passa através de Aristóteles e Tomás de Aquino, para chegar até Descartes e Kant. E a minoritária, de respeito e empatia em nome do pertencimento comum a  árvores da vida, que remonta a Pitágoras e continua com Hume e Voltaire, para chegar a Bentham e Darwin.

Os capítulos fundamentais do livro são, porém, aqueles que jogam na cara das almas simples, que acreditam que amar os animais significa acariciar cães e gatos ou se horrorizar com as touradas e os massacres das focas, os dados e os fatos relativos ao uso de animais na experimentação e na alimentação. Em particular, Singer conta em detalhes as vidas, os sofrimentos e as mortes de campos de concentração que, a todo ano, os bilhões de animais (dez bilhões só nos EUA, uma vez e meia a população mundial!) são obrigados a sofrer, cuja carne e cujos produtos acabam em nossas mesas e nas nossas barrigas: frangos, bezerros, porcos, coelhos, perus, aves e peixes de um lado, e galinhas de ovos e vacas de leite do outro. Todos seres que, embora não falem nem rezem, no entanto sentem e sofrem e demonstram isso de maneira atroz a qualquer um que assuma a briga de ir visitar os lugares indecentes em que são amontoados e criados industrialmente.

Singer dedica quase toda a sua atenção ao problema ético levantado pelo uso dos animais, principalmente como alimentação, e toca só de passagem em dois aspectos que também são muito importantes. E talvez também mais convincentes, pelo menos em um mundo que é insensível à ética e à moral até com relação aos homens: muito menos com os animais.

O primeiro aspecto é econômico: para que possamos comer animais, eles devem comer vegetais. A maioria das plantações mundiais é, por isso, dedicada à produção das rações, com um gasto duplo. De eficiência, porque a energia do Sol armazenada pelas plantas é utilizada só indiretamente, por meio da carne que já a utilizou, em vez de diretamente, por meio dos vegetais. E de custo, porque os animais que comem os vegetais são obviamente mais caros do que os próprios vegetais. Dito com um slogan: “A carne vale menos do que os vegetais, mas custa mais”.

O segundo aspecto é biológico: o nosso intestino é longo, como o dos herbívoros, e não curto, como o dos carnívoros. O que significa, sobretudo, que não é a natureza que nos impõe que comamos carne, mas sim a cultura (se quisermos chamá-la assim). Mas significa também, e principalmente, que o nosso intestino não é adaptado para a digestão da carne, que de fato ali se detém por muito mais tempo e se decompõe muito mais profundamente do que os vegetais. O resultado é uma alta incidência de câncer de intestino grosso nas sociedades que comem muita carne, como as ocidentais, e uma baixa ou inexistente incidência naquelas que comem pouca ou nenhuma, como as africanas e as orientais. Por lei, se deveria também avisar os consumidores, assim como já avisam os fumantes, colocando este aviso nos produtos do açougue: “A carne mata”.

Sem o apoio dos testemunhos recolhidos no explosivo livro de Singer, os poderosos relatos de Coetzee seriam uma invenção literária vazia. À luz daquelas, adquirem, ao invés, um valor de denúncia processual. Deixemos a ele, portanto, a última palavra: aquela que ele disse no dia 22 de fevereiro de 2007, quando foi convidado para o congresso Sento, organizado pelo Voiceless (Sem Voz), um instituto australiano pela proteção dos animais. Desta vez, o escritor fez o contrário das Tanner Lectures de dez anos antes: não foi, mas enviou um texto próprio, que foi lido na abertura por um representante seu.

E a sua conclusão, sobre a qual nos fará bem meditar, foi: “Quando descobrimos que os nazistas tiveram a brilhante ideia de adaptar os métodos da criação industrial, inventados e perfeccionados em Chicago, ao massacre (que eles preferem chamar de trabalho) dos seres humanos, naturalmente gritamos de horror: que crime terrível tratar seres humanos como animais! Mas teria sido melhor se tivéssemos gritado: que crime terrível tratar seres humanos como engrenagens de um processo industrial! E esse grito deveria ter tido um adendo: que crime terrível, pensando bem, tratar seres vivos como engrenagens de um processo industrial!”.


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