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A pergunta do fariseu

28 de junho de 2010
4 min. de leitura
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Vez que outra, a gente fica divagando sobre alguns conceitos formais aos quais as ciências chegaram. Uma dessas tais formulações científicas me garantiu bons minutos de reflexão: vem das ciências humanas (um nome tão aberto) a sentença de que o homem é um animal social, gregário. Vejamos bem. Animal. Que vive em comunidade.

Sabe quando uma coisa leva a outra? Acabei me concentrando na expressão “comunidade”. Afinal, quem compõe esse complexo de relações que nomeamos comunidade? Certa vez escrevi uma exortação que enfrentava esse enigma. Parece-me, a gregariedade do ser humano é expressada com plenitude no famoso rifão “ama teu próximo”. O problema consistirá em saber quem é, de fato, o próximo. A resposta a essa pergunta, concluí, responde também àquela.

Honestamente, a inquietação não me é original. Há séculos que se travam colóquios a respeito da condição do outro, do próximo. Na história recente da Filosofia ocidental, esta interrogação foi fundadora do complexo pensamento de Emmanuel Lévinas, o filósofo da alteridade (“alter” vem de “outro”). Mas a frase virou jargão entre nós por conta da moral cristã. Eis aqui um ponto para o qual chamo atenção. Um fariseu, conta a bíblia, quis saber “quem era o seu próximo”.

Em setembro de 2008, tive o prazer de receber em Pelotas o filósofo (e promotor de justiça) Sandro Ferreira. Não fazia muito tempo que ele concluíra o mestrado, no qual, com exatidão, pôs-se no deslinde do que seja, enfim, o próximo. Contou-me que sua investigação partia de uma imagem, uma fotografia capturada pelo célebre Sebastião Salgado. Um menino pobre, junto de outras crianças igualmente miseráveis, brincando nos trilhos de um trem do outro lado do planeta.

A primeira inquietação, com efeito, seria: este menino retratado pelo famoso fotógrafo seria um próximo meu? Ainda que fisicamente distante… e pesasse embora a sujeição às mazelas abissais de um sistema que gera pobreza sem fim ao redor do mundo, e sem a minha culpa direta… o pequeno garoto, seria, ou não, meu próximo?

Se a dúvida se estancasse nesse aspecto da imagem, teríamos já um bom ponto de partida. Mas a sutileza capturada pela câmera de Salgado arrematava a confusão de nossos preceitos: o garoto da foto segurava no ar, com os braços erguidos, um cachorrinho. Quero imaginar que cena projetava afeto, cumplicidade. Ambos animais, humano e canino, dividindo as misérias de um mundo de sujeira. Rarefeito de consolação. Carente de alívio. De mãos dadas, sobre os mesmos trilhos, homem e animal dançavam a valsa imprecisa da compaixão, a musicalidade de sentir-se e saber-se próximo.

Resvalando entre as composições desta cena, e agora retomo por conta própria o inquérito sobre a alteridade, arrisco a hipótese de que a proximidade se encerra e se amplia no endereço de um olhar. O menino pobre dos trilhos, certamente, é mais douto em sentir do que em explicar. É mais instruído em perceber do que em explanar. E justamente aí, do chão das suas humildes sabedorias, não deixou de interagir ternamente com o cãozinho que havia de meramente coadjuvar a brincadeira. Num passe de mágica, fruto de um querer despretensioso do garoto, o cachorrinho se revela ator. Protagoniza – e bem no centro dos acontecimentos –, um instante da vida dura de um punhado de indigentes.

Despidas de quaisquer adornos, quase nuas, vivem aquelas crianças num reduto da sua própria animalidade. E na imagem, canino e humano se afivelam ao mesmo cordão umbilical; por desgraça, é na pobreza transbordante que entrevemos a proximidade entre ambos, porque passam a mesma fome, lutam contra o mesmo frio, disputam o mesmo ar, caminham nos mesmos trilhos e irmanam-se na mesma dor.

Retornemos ao fariseu e sua inquietação. Fosse assim, “intuitiva”, a resposta, algum dia na história os animais teriam figurado como destinatários da compaixão cristã. Como preocupação de suas campanhas pela fraternidade. Se a resposta coubesse ao humilde e inocente garoto dos trilhos, o seu cão também teria de ser resgatado do holocausto.

Hoje eu pergunto aos que professam a fé do Livro de Deus: acaso é justo servir-se do sangue dos animais, à revelia de sua evidente luta para continuar a viver? A despeito de sua angústia e dor à beira da morte? E mesmo cientes tais homens e mulheres de Deus que se tratam de dores que se podem evitar?

A pobreza do menino dos trilhos não pode ser imputada à conduta isolada de alguém. É bem verdade, todos nós transitamos naquele trem que atravessa e marca a vida dos miseráveis, mas a responsabilidade direta não compete a um só. Não desejamos mal ao menino, não lhe apontamos uma arma. E se, no infortúnio, a apontarmos, não puxaremos o gatilho. Entretanto, ao pé dos mesmos vagões, encontra-se o outro animal, “alter”, a quem, sem acusar de odioso, direcionamos as nossas lépidas facadas de morte.

A história do próximo, por ironia, confunde-se derradeiramente com a nossa. Seu sangue se aquece novamente nas nossas entranhas, seu corpo apodrece no nosso estômago, e sua alma se vinga com o remorso que – cedo ou tarde –, haveremos de sentir.

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