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A raiz da violência

4 de junho de 2010
20 min. de leitura
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Introdução

É comum nós veganos sermos tachados das mais diversas formas. “Radicais” quando denunciamos a existência de preconceito para com as outras espécies. “Fúteis” e “ousados” quando advogamos em prol dos direitos animais e nos “esquecemos” da dura realidade e da ausência de direitos assegurados à maioria dos seres humanos. “Utópicos” quando defendemos um paradigma capaz de subsidiar relações interespecíficas não-violentas nem exploratórias.

No final das contas, e na melhor das hipóteses, é como se estivéssemos errados em “desejar” tanto num mundo tão carente e sofrido. É como se pedíssemos um clafoutis de cereja com creme de avelã sendo que o máximo possível seria um bolo de cenoura.

A despeito de como mais sejamos nomeados, defendemos a justiça e a urgência da ampliação da comunidade moral e reconhecemos que a negligência dessa questão e a desqualificação dos que se propõem a pensar sobre ela não passa de discriminação tão recalcitrante quanto a machista, a racista e a xenofóbica. Entendemos, inclusive, que o alargamento moral é pré-condição para a instauração do mundo justo e pacífico almejado por tantas pessoas.

O preconceito, em todas suas formas de manifestação, possui uma matriz comum: a desconsideração para com as semelhanças e o desrespeito para com as diferenças entre discriminante e discriminado. Entretanto, por mais que seja, em alguma medida, conhecida, apenas timidamente tal matriz é denunciada e desconsiderada ainda, a real extensão e gravidade do fenômeno, segundo aponta um número já razoável de pessoas que se posicionam reflexiva e criticamente no mundo tomando para si a tarefa deontológica de biografar suas vidas em torno de uma ética renovada.

Negros, asiáticos, indígenas e não-heterossexuais são alguns dos que por diferirem do padrão fixado como de normalidade ou correção moral – ditado arrogante e violentamente por homens caucasianos heterossexuais e abastados – sofrem todo tipo de violência: alcunhas pejorativas, chacotas públicas, perseguições, ameaças, impedimentos, explorações, agressões físicas, execuções sumárias, brutalidades, etc.

“As diferenças devem ser respeitadas”, comumente se ouve, no entanto, esse apelo de reconsideração moral não supera os lindes do antropocentrismo. A proposta desse texto é fazer coro aos que anunciam a existência de similitudes constitutivas entre as espécies e defendem as diferenças respeitáveis como não-exclusividade humana. Enunciando de outro modo, têm-se o anúncio e a defesa de que “nós, humanos, somos parecidos, afinal, a todos os outros animais, e as diferenças, entre nós mesmos e entre eles e nós, não bastam para ser tidas como superioridade que legitime a estigmatização coisificante e a exploração de quem quer que seja”, por isso, discute-se aqui o especismo que está mesmo no âmago de todas as formas de preconceito.

A matriz discriminante

O termo especismo se refere à discriminação habitual que é praticada pelos humanos contra seres de outras espécies. Sendo sentimento amplamente arraigado, manifesta-se de modos e em ocasiões diversas. Pode ser para com todas as espécies que não a humana ou a escolha de alguma(s) espécie(s) como alvo de proteção e outra(s) como alvo de discriminação. De todo modo, na vigência do paradigma antropocêntrico, a concessão de algum direito a qualquer animal está de acordo com uma deliberação explicitamente utilitarista. É o homem quem avalia e taxa as espécies como “dignas” ou “indignas” de consideração moral.  

A afirmação dos animais não-humanos como seres definitivamente dessemelhantes e inferiores pretende justificar a redução dos mesmos ao estatuto de meros recursos e artigos de propriedade de que os seres humanos dispõem para a satisfação das suas necessidades supostas e dos seus desejos. As consequências da arrogância especista vão no sentido da permissão moral para a preação, a clausura, a exploração, a tortura e o assassínio de todas quantas forem as espécies que estiverem dentro da zona de interesse humano.

O especismo responde pela matriz discriminante que subjaz a todas as formas de discriminação. Sob o machismo, o racismo, a xenofobia, a homofobia e todas as demais formas de preconceito, subsiste a discriminação para com a animalidade, discriminação para com outras espécies – aqui tomando o vocábulo ‘espécie’ como categoria e não, necessariamente, como espécie biológica.

Homens e mulheres, brancos e negros, cidadãos e estrangeiros, adultos e crianças, e não apenas humanos e animais, são vistos pelo homem branco europeu ou eurodescendente como seres de ‘espécies’ distintas. Uma vez que a exploração e a sua legitimação ocorrem pari passu, frisa-se a existência de supostas diferenças intransponíveis capazes de legitimar os níveis e subníveis de consideração e desconsideração morais e, desse modo, as formas todas de exploração obtentoras de benefícios ego, andro, etno ou antropocêntricos.

Toda vez que um grupo de pessoas é negado em sua dignidade, apela-se para uma equiparação com os “brutos”. As crianças, os idosos, os estrangeiros, os negros, as mulheres, os homossexuais, os religiosos de outras denominações, todos são tidos como tão desprovidos de racionalidade e potencialidade intelectiva superior e tão repletos de instintos e lastros naturais quanto os animais.

“(…) O mito da pureza, a submissão dos animais ao homem, a idéia existencialística da forma perfeita, foram as bases de toda a forma de discriminação. Santo Agostinho já havia entendido isso, pois onde há discriminação humana versus não-humano e maltrato aos outros viventes, há o modelo para submeter o homem ao homem. Não é por acaso que o operador discriminativo sempre apelou à natureza zoomorfa do discriminado: o louco, a mulher, a criança, o estrangeiro sempre foram representados como animais ou como portadores de uma maior dose de animalidade. (…)” (MARCHESINI)

 Os dizeres veganos “Libertação Animal, Libertação Humana” estão em perfeita sintonia com essa constatação. A reforma da ética para o reconhecimento e a defesa das três liberdades relativas ao corpo – não ser aprisionado, não ser escravizado e não ser assassinado – a todos quantos sejam capazes de experienciar dor e prazer é o que está incluído na proposta vegana para o mundo. A ética senciocêntrica contraespecista é apontada como antídoto contra as atrocidades cometidas pelos homens em sua solidão de espécie, em sua arrogância de suposto unigênito e protagonista exclusivo da face da Terra. Daí que os discursos e as práticas veganos, porque abolicionistas, sejam distintos dos discursos e práticas protetores bem-estaristas. O apelo vegano é por jaulas vazias e não por jaulas maiores, para tanto, são enunciadas as similitudes entre animais humanos e animais não-humanos.

Enxergando o semelhante no dessemelhante: alargando o círculo

A discriminação é sempre motivada pelo desejo ego, andro, etno ou antropocentrado de conquista e benefício próprio dos detentores de poder que não concebem impedimentos de qualquer ordem para as suas ânsias, alheio destruidoras. Pareado a esse movimento cujo objetivo é o ganho, vão-se tecendo concepções capazes de, supostamente, legitimar suas ações para o mundo e, em especial, para si. Para tanto, os potentados ignoram ou subestimam todas as semelhanças entre si – o discriminador – e aqueles que são discriminados e diferenças absolutas e intransponíveis são elencadas.

Essa posição que é nomeada por muitos de “cegueira ética circunstanciada” pode ser criticada nos termos postos por Charles R. Magel na sua consideração à pesquisa com cobaias. “Pergunte para os vivisseccionistas por que eles experimentam em animais e eles responderão: ‘Porque os animais são como nós’. Pergunte aos vivissecccionistas por que é moralmente certo experimentar em animais e eles responderão: ‘Porque animais não são como nós’. A experimentação animal apóia-se em contradição de lógica.”

O que há, de fato, é um jogo de forças que, para além da existência de diferenças reais justificativas de inferioridade, se opera nos termos de uma dinâmica de interesses ego, andro, etno ou antropocêntricos e que se veem, de repente, criticados e impelidos a pensar sobre si e se autojustificar. 

Por mais que essa discussão não produza resultados comuns,  algo nela é inegável: a definição e a defesa dos Direitos Animais não representam uma posição filosófica infundada ou uma questão ética menor, ao contrário, estão mesmo no cerne de toda a definição de uma ética do dever.
 
Muitos são os teóricos cujas produções representam, em alguma medida, os fios que hoje compõem a trama do movimento pela Ética Animal quer seja no nível do Bem-estar quer seja no nível dos Direitos Animais. Apesar das diferenças constitutivas entre esses dois níveis, o que entra em debate é a definição de como tratar as semelhanças e as dessemelhanças constitutivas dos terráqueos.

Desde Darwin, os cientistas têm concordado que não há, biologicamente falando, qualquer diferença “mágica” e essencial entre seres humanos e outros animais e essa constatação é capaz de subsidiar considerações morais de primeira grandeza. Estando todos os organismos em um mesmo continuum físico logo, deveriam estar, igualmente, em um mesmo continuum moral. Porém, não é assim que a realidade se tem apresentado. De acordo com as morais tradicionais concebe-se uma barreira ilhando humanos em relação ao restante da natureza.

As condições usualmente apontadas para a posse de direitos – capacidade de reivindicação de direitos por parte de quem pretende possuí-los, reciprocidade entre direitos e deveres para com os outros e acordo intersubjetivo prévio que dê o “direito de ter direitos” (contrato social) – aplicam-se apenas a agentes morais ou humanos paradigmáticos (caracterizados por autonomia, capacidade de decidir e agir segundo princípios morais e obrigação de responder pelas suas ações perante outrem) e não a pacientes morais ou humanos não-paradigmáticos (caracterizados pela incapacidade de agir autônoma e responsavelmente), ficando fora da esfera moral, de acordo com esse paradigma, por exemplo, todos os recém-nascidos e crianças, deficientes físicos e mentais profundos e idosos senis.

Entretanto, direitos são atribuídos aos humanos não-paradigmáticos tal qual a agentes morais, corroborando a tese de que, no que diz respeito a direitos morais, não há diferença entre agentes e pacientes morais. Desse modo, se direitos são atribuídos a humanos não-paradigmáticos, deve-se também, por uma questão de coerência lógica e moral, atribuir direitos a todos os animais que possuam as mesmas capacidades cognitivas e afetivas dos humanos não-paradigmáticos.

Essa ordem de justificativas para a Ética Animal pode ser encontrada sob diversas óticas, inclusive no “princípio de igual consideração a interesses semelhantes” de Peter Singer e no “argumento por analogia” a que Tom Regan faz referência. O que se vislumbra é a defesa da senciência como critério coerente definidor de pertença à comunidade moral. “(…) se um ser sofre, não pode haver nenhuma justificação moral para recusar ter o sofrimento em consideração. (…)” afirma Singer.

Muitas são as espécies sencientes – capazes de experienciar dor e prazer – que devem ser incluídas no círculo moral e três são os tipos de evidências que suportam essa afirmação (de que sejam dorentes):

a) Evidências anatômicas: existência de um efetivo sistema nervoso cuja função é justamente permitir a seu portador, experienciar dor e prazer, posicionando-se diante da vida com o capacidade de, descobrindo agressores que atentam contra suas integridades física e psíquica e, fazendo uso de sua autonomia prática, desvencilhar-se da ameaça dos mesmos, procurando, destarte, ter assegurada sua sobrevivência;

b) Evidências comportamentais e fisiológicas: manifestação de comportamentos e “eventos” orgânicos sabidamente relacionados à dor, ao sofrimento e à ansiedade, tais como diarréia, tontura, hiperidrose – transpiração excessiva –, hipertensão, taquicardia, midríase pupilar – dilatação da pupila –, inquietação, tremores, urgências urinárias, formigamentos, etc. e outros comportamentos relacionados com o interesse manifesto pela vida continuada – fuga, bote, rosnado, etc.;

c) Evidências neuroquímicas: existência de substâncias neurotransmissoras conhecidamente associadas à senciência, à transmissão da dor e à efetuação de respostas contra as causas da mesma.

O âmbito dos sistemas morais deve ser alargado ao ponto de abrigar todos os seres dorentes e não apenas o ser humano, isso é o que defendem os abolicionistas. Essa é a implicação moral trazida pelo darwinismo mas amplamente negligenciada. “Dor é dor, independente de quem a sofre” afirma Richard Ryder. Uma quantidade X de dor em um cão, uma vaca ou um coelho equivale a uma quantidade X de dor em um ser humano. É a dor que importa e não o dorente.

Ryder é autor de uma crítica consistente ao utilitarismo que concebe como objetivo da sociedade a consecução de maiores taxas de bem-estar para maiores quantitativos de indivíduos. As teorias utilitaristas entendem a dor como algo que deva ser minimizado e o prazer maximizado e que um bom Estado, governo, instituição ou situação possa ser conhecido pelo excedente de prazer, pela diferença positiva entre os níveis de prazer e os níveis de sofrimento, genericamente considerados.

Ryder, ao contrário, propõe que a dor em cada matéria seja individualmente tomada e que a ruindade de uma ação seja julgada pelo nível de dor sofrido pelo indivíduo que por ela mais sofra – o “sofredor máximo” – e não pelo quantitativo de benefícios conseguidos para um número maior de indivíduos. A bondade ou ruindade de uma instituição, uma situação ou do que mais for deve ser aferida pelo ser que mais sofre e não pelo que mais goza. Não devem servir as altas doses de prazer, coletivamente tomadas, para atestar a qualidade de uma situação, e sim as baixas doses de sofrimento envolvidas, desde o âmbito do indivíduo. 



“u.p.” e “u.d.” são, respectivamente, hipotéticas “unidade de prazer” e “unidade de dor”.

Das três situações imaginárias apresentadas, a situação “i” é a que gera mais prazer e a que possui um maior excedente de prazer em relação ao sofrimento. Nesse sentido, em comparação com as demais, pode ser identificada como a situação que mais se adequa ao que é afirmado pelo utilitarismo como “estado ótimo”. Entretanto, dentro de uma perspectiva senciocêntrica contraespecista, nem a taxa de PA, de PIM ou de PL servem para classificar uma situação qualquer. É o nível de DA e, em especial, o nível de DIM (o “máximo sofredor”) que devem ser os critérios qualificadores de boas e más situações.

Cada indivíduo (dorente) experimenta suas próprias dores e essa realidade não pode ser negligenciada por concepções éticas que concebam a moralidade do “sacrifício benfazejo”. Dentro de uma perspectiva senciocêntrica, faz-se uso da política do “ninguém a menos”, porque se entende como injustificável a coisificação de qualquer ser senciente, independentemente dos possíveis benefícios que tal ação traga para um coletivo.   

Para além dos que se ocupam em anunciar analogias entre os animais não-humanos e animais humanos como justificativa absoluta e necessária para a defesa dos Direitos Animais, existem teóricos que concebem pertinência intrínseca aos Direitos Animais, baseando-se na consideração para com a subjetividade animal. Destarte, não é a similitude a seres humanos que torna tal ou qual espécie defensável, mas seu valor inerente, o fato de um ser apresentar-se como “sujeito-de-uma-vida” (Tom Regan) ou “vulnerável” (Sônia Felipe).

Quaisquer sejam as perspectivas defendidas, a reflexão filosófica sobre a consideração ética devida aos animais é determinante para questionar a visão antropocêntrica do mundo e do mundo judaico-cristã ocidental, em especial, ao mesmo tempo que constitui contributo inestimável para a alteração de hábitos e costumes humanos que põem em causa a integridade de outras espécies e o próprio fenômeno Vida terráquea. (BECKERT)

Vozes éticas

Direitos Animais por analogia ou por inerência, conforme apresentados acima, podem ser encontrados sem academicismos em escritos, discursos e práticas dos mais diversos agentes humanos em seus ativismos cotidianos.  Os argumentos de uma ou outra definição não são facilmente classificáveis, mas aqui são distinguidos em (1) argumentos “contra o embrutecimento do ser humano” e (2) argumentos “em prol do alargamento da comunidade moral”.

Deve-se lembrar de que tais classes não são, em absoluto, mutuamente excludentes e os resultados conquistáveis com uma possível aceitação social de qualquer dessas duas categorias possivelmente sejam parecidos. A tônica dos movimentos veganos não se restringem em tal ou qual frente e sim consubstanciam esforços para que ambas classes de propagação do senciocentrismo cheguem a um número cada vez maior de pessoas humanas.

1) Contraembrutecimento humano

A crueldade para com animais embrutece o homem e habilita-o à cometer crueldades contra qualquer vivente, inclusive outros seres humanos. Nesse sentido, depreende-se que a exploração animal e a exploração humana são dimensões irmãs de um mesmo e amplo processo de naturalização da violência contra o outro e da anulação da alteridade. Sob essa perspectiva, faz parte do progredir das morais humanas o reconhecimento de direitos aos animais porque irmãos em senciência.

Seguem abaixo algumas citações referentes a esse argumento, facilmente acessáveis, e que, em alguma medida, constam de muitos meios proveganos impressos e eletrônicos.

“A compaixão pelos animais está intimamente ligada a bondade de caráter, e pode ser seguramente afirmado que quem é cruel com os animais não pode ser um bom homem.”
(Arthur Schopenhauer)

“Enquanto estivermos matando e torturando animais, vamos continuar a torturar e a matar seres humanos – vamos ter guerra. Matar precisa ser ensaiado e aprendido em pequena escala; enquanto prendermos animais em gaiolas, teremos prisões, porque prender precisa ser aprendido em pequena escala; enquanto escravizarmos os animais, teremos escravos humanos, porque escravizar precisa ser aprendido em pequena escala.”
(Edgar Kupfer-Koberwitz)

“Crueldade é algo que está presente em famílias humanas por incontáveis eras. É quase impossível alguém que é cruel com os animais ser generoso com as crianças. Se, se permite às crianças a crueldade contra seus animais de estimação ou outros que cruzem seus caminhos, elas aprenderão facilmente a ter o mesmo prazer com a miséria de seus semelhantes. Essas tendências podem facilmente levá-las ao crime.”
(Fred McGrand)

“Incêndios propositais e crueldade com animais são dois dos três sinais de infância que sinalizam o potencial de um assassino serial.”
(John Douglas)

 “Entre 135 criminosos, incluindo ladrões e estupradores, 118 admitiram que quando eram crianças queimaram, enforcaram ou esfaquearam animais domésticos.”
(Ogonyok Soviet anti-cruelty magazine)

“Até que tenhamos coragem de reconhecer crueldade pelo que ela é – seja a vítima um animal humano ou não humano – não podemos esperar que as coisas melhorem neste mundo… não podemos ter paz vivendo entre homens cujos corações se deleitam em matar criaturas vivas. Para cada ato que glorifica o prazer de matar, estamos atrasando o progresso da humanidade.”
(Rachel Carson)

“A não violência leva-nos aos mais altos conceitos de ética, o objetivo de toda evolução. Até pararmos de prejudicar todos os outros seres do planeta, nós continuaremos selvagens.”
(Thomas Edison)
 
“Primeiro foi necessário civilizar o homem em relação ao próprio homem. Agora é necessário civilizar o homem em relação a natureza e aos animais.”
(Victor Hugo)

2) Proalargamento moral

Para além dos discursos que prescrevem a violência contra-animais e a exploração de animais com objetivo de “humanizar” o homem, há aqueles em que se pode encontrar a defesa da existência de semelhanças e diferenças constitutivo-respeitáveis entre animais humanos e não-humanos. Nesse sentido, a violência e a exploração, sob todas suas formas, são entendidas como erradas em si, para além da dimensão humana de humanização ou embrutecimento. Sob essa perspectiva, a violência contra-animais e a exploração de animais são entendidas como tão graves quanto a violência contra-humanos e a exploração de humanos.

Em grande medida, é a tese continuísta que justifica essa classe de argumentos. A aceitação científica acerca da existência de um continuum biológico entre todos os seres vivente subsidia a coerência da defesa de um igual continuum ético entre os mesmos.

As citações que seguem são características desse conjunto de argumentos.

“O erro da ética até o momento tem sido a crença de que só se deva aplicá-la em relação aos homens.”
(Albert Schweitzer)

“Os animais existem por suas próprias razões. Eles não foram feitos para os humanos, assim como os negros não foram feitos para os brancos ou as mulheres para os homens.”
(Alice Walker)

“Não há diferenças fundamentais entre o homem e os animais nas suas faculdades mentais… os animais, como os homens, demonstram sentir prazer, dor, felicidade e sofrimento.”
(Charles Darwin)

“Por que é que o sofrimento dos animais me comove tanto? Porque fazem parte da mesma comunidade a que pertenço, da mesma forma que meus próprios semelhantes.”
(Émile Zola)

“Não importa se os animais são incapazes ou não de pensar. O que importa é que são capazes de sofrer.”
(Jeremy Bentham)

“Entre a brutalidade para com o animal e a crueldade para com o homem, há uma só diferença: a vítima.”
(Alphonse de Lamartine)

“Jamais creia que os animais sofrem menos do que o humano. A dor é a mesma para eles e para nós. Talvez pior, pois eles não podem ajudar a si mesmos.”
(Louis Camuti)

Finalizando

O que de mais profundo e constitutivo há em nós humanos, é igualmente presente e constitutivo em todos os animais: a natureza senciente, caracterizada pela capacidade de experienciar dor e prazer, pela autonomia prática, pelo interesse por uma vida continuada, pelo interesse em não sofrer dor, tê-la eliminada ou, pelo menos, minorada, pelo interesse pela integridade física e psíquica.

Caso voltemos nosso olhar sobre o percurso histórico do ocidente perceberemos que, aos poucos, embora não definitivamente, as morais humanas foram se dando conta das incoerências das restrições à pertença à comunidade moral. Hoje, inclusive, doutrinas, políticas e práticas baseadas na superioridade de povos ou indivíduos de determinadas origens nacionais, raciais, religiosas, étnicas ou culturais, são apontadas como racistas, cientificamente falsas, juridicamente inválidas, moralmente condenáveis e socialmente injustas. Nessa mesma direção, os veganos são aqueles que apontam que doutrinas, políticas e práticas baseadas na suposta superioridade de determinadas espécies, ou que a defendem alegando razões de origem genética, fisiológica ou anatômica são especistas, cientificamente falsas, juridicamente inválidas, moralmente condenáveis e socialmente injustas.

A pretensão vegana é pelo fim do especismo, pelo fim da contra-animalidade que impera no mundo, sobretudo de tradição judaico-cristã ocidental em cujas fileiras fez nascer a sociedade capitalista, desenvolvimentista, industrial e consumista – cúmulo dos impactos sociais, ecológicos e éticos.

Denúncia e anúncio são as duas faces de um programa maduro de “mudamundo” e desse modo têm se constituído os movimentos veganos. Denúncia das permanências injustas de um jeito de se fazer humano que traz memórias aprazíveis a poucos e tende a reproduzir o status quo matriz de violência e exploração. Anúncio da pertinência e da urgência de rupturas com esse curso histórico e de construção de um presente em que se configure uma dinâmica equilibrada de vetores de forças, desejos e interesses, que permita a todos dorentes, sencientes, viventes caberem no mundo e serem reconhecidos em suas validades intrínsecas e permitidos à realização da sua natureza, à atualização plena da sua forma: o seu fim, o seu bem, a sua lei.

De denúncia em denúncia e de anúncio em anúncio seguem adiante os que acreditam em outro mundo possível e entendem outro mundo preciso.

Referências

BECKERT, Cristina. Direitos dos animais. In: INSTITUTO DE FILOSOFIA DA LINGUAGEM. Dicionário de Filosofia Moral e Política. Disponível em:<http://www.ifl.pt/main/Portals/0/dic/direitos_dos_animais.pdf>. Acesso em: 17 abr. 2010.

FELIPE, Sônia T. A desanimalização do consumo humano: desafios da ética vegana [palestra proferida na abertura da Reunião de Fundação da Sociedade Vegana, São Paulo, em 14 de março de 2010]. Disponível em: <http://www.sociedadevegana.org/index.php?option=com_content&view=article&id=16:a-desanimalizacao-do-consumo-humano-desafios-da-etica-vegana&catid=16:etica&Itemid=5>. Acesso em: 14 abr. 2010.

INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS. As vantagens esquecidas de uma antiga aliança [artigo de Roberto Marchesini]. 01 dez. 2007. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=11034>. Acesso em: 24 mar. 2010.

INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS. O pós-humanismo como ato de amor e hospitalidade: entrevista com Roberto Marchesini. Disponível em: <http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_tema_capa&Itemid=23&task=detalhe&id=91>. Acesso em: 19 mar. 2010.  

INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS. Pós-humanismo: o ser humano e o animal se hospedam um ao outro: entrevista com Cláudio Tugnoli. 16 out. 2006. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=1067>. Acesso em: 19 mar. 2010.

Painism. Disponível em: <http://www.richardryder.co.uk/painism.html>. Acesso em: 18 abr. 2010.

Speciesism. Disponível em: <http://www.richardryder.co.uk/speciesism.html>. Acesso em: 18 abr. 2010.

Utilitarismo. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Utilitarismo>. Acesso em: 18 abr. 2010.



Allan Menegassi Zocolotto

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