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Anima nobili x Anima vili: nós, os senhores do universo e os outros animais, nossos escravos...

25 de maio de 2010
9 min. de leitura
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Diversos autores1 têm demonstrado, de forma contundente, como são problemáticos os dados provenientes da vivissecção – a realização de operações ou estudos em animais vivos para a observação de determinados fenômenos. Sob o ponto de vista ético a vivissecção é ainda mais insustentável, embora seus praticantes insistam em defendê-la se valendo de argumentos que, em maior ou menor grau, são improcedentes2. O mais comum e tosco deles – repetido ad nauseam – geralmente se expressa na famosa pergunta: – se não testarmos em animais testaremos em pessoas, ou em criancinhas? (como se não existissem alternativas ou métodos substitutivos e como se os seres humanos não fizessem parte de etapa alguma da pesquisa, entre outras considerações).

Muito citado também é o argumento de que não há problema em usar animais em pesquisas, desde que eles tenham sido criados em biotérios para isso. A fragilidade de tal linha de argumentação é óbvia. Se a questão fosse reproduzir a vida – e não retirar da natureza, ou apanhar nas ruas –  poderíamos ter biotérios para criar seres humanos para o mesmo fim: o de realizar experimentos.  A questão aqui é outra, está claro. O que os vivisseccionistas querem dizer com tal alegação é que não estão levando nenhuma espécie à extinção, o que desvela mais uma vez a racionalidade instrumental e o antropocentrismo que dominam suas visões de mundo. Em outras palavras, não está em jogo o valor da vida de tais seres sencientes, mas o quanto a saúde da biosfera – para proveito do ser humano, bem entendido – será teoricamente afetada ou não.

Outro argumento – aparentemente mais refinado, mas que carece de coerência interna – diz respeito à necessidade que se tem de estudar os chamados “sistemas intactos”, o que só é possível em  organismos vivos pois  as técnicas substitutivas não dão conta de tal empreitada. Nesse caso é no mínimo curioso pensar que um argumento de cunho sistêmico (precisamos da visão do todo, nos dizem eles) supostamente dê sustentação a uma prática mecanicista e reducionista  (como se os erros advindos da extrapolação de dados obtidos em sistemas intactos totalmente inadequados – os animais não humanos – pudessem ser compensados por um suposto ganho em termos de visão do todo).

In anima nobili?

Entretanto, a maior das “pérolas” na argumentação pró-vivisseccionismo é a menção das expressões in anima nobili e in anima vili para se referir aos estudos e/ou experimentos em seres humanos ou animais não humanos respectivamente. Considero fato da maior gravidade que membros da comunidade científica ainda façam uso de tal dicotomia antediluviana, que nada tem de científica, já que se baseia essencialmente num dogma criacionista. Tais expressões, que corporificam uma velha ordem há muito ultrapassada pelos mais recentes estudos em etologia e diversas outras ciências (vejam o magnífico trabalho de Jane Goodall, por exemplo), se constituem numa das mais nocivas formas de especismo pois  trazem em seu bojo uma orientação fundamentalista, baseada em pré-noções e preconceitos que refletem a crença na supremacia do Homo sapiens sobre o resto da criação (sic)3.

Nunca foi tão difícil responder à pergunta do filósofo utilitarista Jeremy Bentham: “o que mais deveria traçar a linha insuperável (entre nós e os animais não humanos)?” Já não é possível dizer que os animais não têm uma linguagem; que não utilizam instrumentos e ferramentas; que não sejam capazes de algum grau de abstração em termos de pensamento; que não sintam dor ou medo e que não experimentem emoções; ou que não saibam cuidar de si próprios.

Evidências inequívocas de que os animais não humanos são muito mais do que meros autômatos – como postula a visão cartesiana e especista que domina nossa cultura – podem ser encontradas em estudos acerca do conhecimento dos animais sobre plantas e práticas medicinais. Como argumenta Engel4, num primoroso artigo sobre automedicação por parte dos animais, “as provas de que os animais gerenciam ativamente sua saúde contrastam substancialmente com a visão dominante de que eles suportam passivamente a ação devastadora de organismos patogênicos, venenos e ferimentos, e dependem exclusivamente de respostas do seu próprio sistema imune (ou da ajuda dos humanos)”. A automedicação por parte dos animais deve, portanto, ser vista como uma parte integrante da dinâmica ecológica da qual fazemos parte e que expressa um continuum entre nós – Homo sapiens – e a biosfera como um todo.

Quem é o animal vil?

Como podem, então, aqueles que se dizem cientistas, se valer de um expediente tão dicotômico e contrário às mais recentes evidências de que é tênue, em muitos sentidos, a linha que nos separa do “resto” do reino animal? As possíveis respostas para essa pergunta não são nada animadoras. Visões estreitas por parte dos pesquisadores, fruto da fragmentação do conhecimento e do diálogo pobre entre diferentes tradições de pesquisa? Com certeza essa é uma das causas, talvez a mais inocente. Tendência em se apegar ao que está sob seu domínio, permanecendo numa espécie de “movimento retilíneo uniforme”, por medo do desconhecido? É possível.

Mas a experimentação animal alimenta cadeias produtivas altamente lucrativas que envolvem a construção e instalação de estruturas laboratoriais, fabricantes de gaiolas, aparelhos de contenção, fornecedores de animais, fundações de pesquisa que captam e gerenciam fundos, além de remuneração dos  cientistas, dos que trabalham nos biotérios etc. E há a bilionária indústria farmacêutica que não se cansa de colocar novos medicamentos a todo instante no mercado, a despeito dos males que possam causar e a despeito de sua real necessidade (veja, por exemplo, “Os vendedores de doenças” no site Le Monde diplomatique – Brasil; ou acessem http://diplo.uol.com.br/2006-05,a1302).

Os experimentos com animais rendem ainda muitos outros frutos. Os doutores Jean e Ray Greek comentam que há um ditado cínico, mas verdadeiro,  que diz que “um rato é um animal que, quando injetado, produz um artigo”. A frenética busca pela produtividade – esse traço distintivo da sociedade industrial também presente em nossas instituições de ensino superior – provocou o surgimento de hordas de jornais e revistas científicas cujos editores e membros dos conselhos editoriais são também, em sua maioria, vivisseccionistas. “Tanto a revisão de artigos científicos, quanto a aprovação de projetos acadêmicos ou instituições de pesquisa, são feitos na base da troca de favores entre amigos. E tudo é aprovado. De fato, é muito mais fácil e cômodo trabalhar com animais. Após um fim de semana comum, ou até um longo período de férias, os animais estarão lá, em suas jaulas e gaiolas, esperando o pesquisador. A pesquisa clínica é muito mais cheia de dificuldades. Os seres humanos podem ser desonestos em suas respostas, podem estar indisponíveis quando mais se precisa deles e podem ser pessoas desagradáveis ou até viver em ambientes perigosos (como viciados em drogas etc.), expondo o pesquisador a todas essas situações, destacam os Greek. Os experimentos com animais também tomam muito menos tempo – com relação aos estudos clínicos – para a publicação de artigos. Enquanto um pesquisador clínico publica um trabalho, um vivisseccionista publica, em média, cinco. Além disso, estes últimos são muito mais agraciados com financiamento do que outras modalidades de pesquisa. Entre 1977 e 1987 apenas 7,4% da receita do NIH (National Institute of Health)  foi destinada a pesquisas baseadas na observação de pacientes, e em 1994, o Instituto Nacional do Câncer (uma divisão do NIH) destinou apenas 1% para pesquisas clínicas” (Greek & Greek, 2000). Não se sabe ao certo o quanto da verba do NIH vai para a pesquisa baseada em modelos animais. Calcula-se entre 30% e 70%. Mas, independentemente disso, as universidades faturam milhões a cada ano. E o fato é que o NIH banca muito pouco as pesquisas clínicas baseadas em pacientes (Greek & Greek, 2003).

Ainda segundo Greek & Greek (2003), “nos anos 1990 as companhias farmacêuticas pressionaram o governo norte-americano para agilizar a liberação de drogas no mercado. A pressão aconteceu sob a forma de lobbies e contribuições para campanhas políticas. E o governo cedeu. Em 1988 a FDA (Food and Drug Administration) aprovava apenas 4% das novas drogas introduzidas no mercado. Em 1998 a aprovação das ‘primeiras no mercado’ chegou à marca de 66%. Não é preciso duvidar do poder político que exerce o ramo farmacêutico, uma indústria de 100 bilhões de dólares. Nos últimos dez anos as companhias de drogas destinaram, sob a forma de contribuições, 44 milhões de dólares para os principais candidatos e partidos políticos nos EUA. Isso significa que a FDA é efetivamente financiada pelo bloco farmacêutico”.

Advogar em causa própria não combina com uma “alma nobre”

Seja por motivos de ordem pessoal, ou de natureza pretensamente altruísta (como é o caso da criação da maior parte dos novos fármacos), os cientistas que são a favor da vivissecção estão advogando em causa própria porque estão sendo, no mínimo, especistas. Enquanto são realizados acalorados debates e envidados esforços gigantescos, muito válidos, é claro, para encontrar alternativas ao uso de células-tronco embrionárias – pois a vida humana é considerada sagrada, mesmo que ela se resuma a um punhado de células – permite-se que seres sencientes como cães, gatos, primatas etc. sofram toda sorte de abusos em laboratórios para supostamente beneficiar os animais humanos. E tudo porque são rotulados como anima vili.

Todas as evidências – tanto de ordem ética, quanto científica – apontam na direção de abolir de vez os experimentos in anima vili (sic). Mas, infelizmente, como na fábula de La Fontaine intitulada “O lobo e o cordeiro”, o lado mais forte sempre encontra uma forma de oprimir os indefesos e inocentes e exercer sua truculência em proveito próprio.

Notas:

(1) Veja, por exemplo:
ARCHIBALD, Kathy. Animal testing: science or fiction? The Ecologist, maio. 2005: 14-17.
BARNARD, Neal & KAUFMAN, Stephen. Animal research is wasteful and misleading. Scientific American, fev. 1997. 80-82.
GREEK, Ray C.& GREEK, Jean S. Sacred cows and golden geese – the human cost of experiments on animals. Foreword by Jane Goodall. New York/London: Continuum, 2000.
GREEK, Ray & GREEK, Jean. Specious Science: How Genetics and Evolution Reveal Why Medical Research on Animals Harms Humans. London, New York: Continuum, 2003.
LaFOLLETTE, Hugh & SHANKS, Niall. Brute Science: Dilemmas of Animal Experimentation. London: Routledge, 1996.

(2) No que tange às questões de ordem ética existe uma rica e extensa bibliografia onde se destacam autores como Peter Singer, Tom Regan e Gary Francione, por exemplo.

(3) Não é difícil compreender que atrelado a esse especismo venha, a reboque, uma ética de destruição das condições de vida no planeta.

(4)  ENGEL, Cindy. Heal Thyself. The Ecologist 32 (3), abril de 2002: 34-38.

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