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Perfil de senhora protetora é descrito em lindo texto

18 de maio de 2010
4 min. de leitura
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Nathalia Pereira
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O texto é o perfil de uma senhora que abriga, com muita dificuldade, animais em sua casa, no Recife.

Perdão por Descartes

Um ano antes de morrer, Nietzsche foi decretado louco. Sua insanidade irreversível teve a gota d’água constatada por causa de um abraço na manhã do dia três de janeiro de 1889. Quem testemunhou a estranha conduta do filósofo alemão disse que ele caminhava pela Praça Carlo Alberto, em Turim, quando viu um cavalo sendo açoitado pelo tutor. Então, como se sentisse a dor do animal, o abraçou e chorou aos soluços. O gesto foi devidamente justificado pelos médicos: Nietzsche tinha a constituição nervosa extremamente sensível e deveria ser internado com urgência.

Tanta estranheza causada por um gesto de amor a um animal, em detrimento da comodidade humana, pode ser justificada por fé e razão. Pois a gênese da Bíblia, dita sagrada, comprova que o ser humano foi criado para imperar sobre os outros animais e a ciência de Descartes nos diz que o cavalo por quem Nietzsche chorou era machinae animatae. Engrenagem que não sente. Se recorrermos à constituição brasileira, veremos que os animais não são titulares de direito, ou seja, não tem direito subjetivo, personalidade jurídica. São, basicamente, propriedade humana.

Tarcísia Maria da Conceição é uma professora aposentada que, aos 75 anos, vive sozinha com aproximadamente 60 gatos, 15 cães e uma pomba de asa quebrada. Se os médicos de Nietzsche a conhecessem, provavelmente diriam que sofre de constituição nervosa excessivamente sensível, já que ela também chora quando se lembra dos cavalos açoitados.

As pálpebras de dona Tarcísia caem pesadas sobre os olhos enquanto ela reclama do cansaço. Administrar tantas outras vidas claramente anula o tempo destinado a si. Então, a rotina é basicamente a mesma, de dedicação plena e exclusiva aos seus protegidos de bico e focinho. Tempo para cozinhar não sobra e a solução é se virar com o que tem de mais instantâneo no momento: um suco ou um sanduíche para matar a fome.

A ex-professora de português mora na mesma casa amarela, no bairro do Cordeiro, há 25 anos. Antes com os pais, mais além com alguns gatos e, depois da aposentadoria, com dezenas de animais. Quando ela concluiu, ainda jovem, as graduações em Direito e Letras restavam muitos outros sonhos com novos cursos e viagens, mas então a vida foi virando ordem. Certamente, a constituição nervosa da aposentada a impediu de desviar os olhos da inocência sofrida dos animais abandonados, objetos do direito humano.

Também  inocente, dona Tarcísia acreditava há tempos que o salário do professor de escola pública ia aumentar, criou esperanças e acolheu o máximo de animais em casa. Hoje os sustenta com o parco dinheiro da aposentadoria, que não sobra nem para reformar a casa. Aliás, não se entra mais na casa amarela, porque o conforto se perdeu. Até a varanda foi dominada pelos mamíferos, aves, insetos e aracnídeos. Desejáveis ou não, é com eles que dona Tarcísia divide o espaço apertado.

Há dois anos, o projeto criado por um grupo de universitários, veterinários e professores da Universidade Federal de Pernambuco – o Adote um vira-lata – descobriu uma dona Tarcísia atrapalhada com a quantidade crescente de companheiros em seu quintal. Desde então, a ajuda é constante. O objetivo desses defensores dos animais é arranjar outros tutores para os cães e gatos abrigados no “lar de dona Tarcísia”, como é chamado. Enquanto os protegidos da aposentada não encontram outro lar, os membros do “Adote” ajudam com o banho dos animais, vermífugos, vacina e esterilização.

Dona Tarcísia, com seu temperamento obstinado, mesmo que carinhoso, enfrenta atritos com os participantes do projeto, quase sempre pelas mesmas razões. Eles não querem que ela abrigue mais animais, pelo simples motivo de ser insustentável. Enquanto a senhora conversa – sempre muito eloqüente- uma cadelinha vira-lata não sai de seus pés de jeito nenhum. Dona Tarcísia explica que ela foi abrigada em sua casa para se recuperar de uma cirurgia de esterilização arranjada pelos membros do “Adote” e reclama porque eles querem devolvê-la ao campus da UFPE, onde foi encontrada.

A aposentada conta que o motivo de seu medo é a insensibilidade humana diante do sofrimento dos animais. Ela diz que não entende quando muitas pessoas questionam porque ela não cuida de crianças ao invés de bichos. Num mundo com tão poucos que se preocupam verdadeiramente com o bem estar animal, ela prefere tentar dinamitar sozinha a ilha de Manhattan e acolhe todos em que identifica a dor nos olhos. Como a pombinha alojada na gaiola de seu quintal porque quebrou a asa, dona Tarcísia também sofre com a liberdade perdida. Diz que não cuida por hobby, o faz por amor.

As dores que dona Tarcísia sente não são apenas do cansaço, ou da idade. Ela padece com uma colite há alguns anos e o tratamento foi, segundo ela, entregue às mãos de Deus. Sem dinheiro para pagar um plano de saúde, ela se aflige com a possibilidade de não poder cuidar de seus animais. Também não contata a família – um irmão idoso e duas sobrinhas – para não “aborrecê-los”. Ainda assim, dona Tarcísia nega qualquer arrependimento e conserva a esperança de que sua missão será compensada. “Quem sabe Deus não absorve meus pecados?”. Sorri.

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