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Jeguicidas: uma resposta

7 de maio de 2010
6 min. de leitura
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Por Heron José de Santana, Luciano Rocha Santana e Tagore Trajano

Em recente ensaio publicado no Jornal A Tarde o antropólogo Roberto Albergaria, professor aposentado da UFBA, se insurge contra as ações que a Promotoria de Meio Ambiente de Salvador, juntamente com a Subcomissão de Direitos dos Animais da OAB/BA e as sociedade protetoras Terra Verde Viva e Célula- Mãe, empreenderam para abolir a participação de animais durante o ciclo de festas do carnaval de Salvador.

Dentre outros epítetos fomos acusados de jeguicidas, censores, dogmáticos, elitizinha estrangeirada política e ecologicamente correta, juridistas, parcialistas, disciplinadores-doutrinadores, donos da verdade, donos do poder, fundamentalistas-xiitas culturalmente desinteligentes e civicamente deseducativos, déspotas, cabeças duras, jeguicidas-liberticidas da americanizada moda animalista-antiespeciesista.

Tantos insultos proferidos contra a nossa ação de proteger os animais apenas demonstram que as forças conservadoras, como já ocorre com outras demandas sociais, não vão ficar de braços cruzados e que reagirão de forma cada vez mais agressiva aos avanços do movimento pelos direitos dos animais.

De fato, a serviço de forças retrógradas da elite política baiana, o ilustrado antropólogo procura deslegitimar o acordo consensual firmado entre Ministério Público, OAB/BA, sociedades protetoras dos animais e organizadores da Mudança do Garcia, espécie de bloco carnavalesco de conteúdo sociopolítico que desfila durante o carnaval de Salvador.

Travestido de democrata, o texto reflete a escola política cunhada na cultura da arrogância e da prepotência que dominaram a cena política do nosso Estado durante décadas.

Por ignorância ou má-fé, o autor se esquece de que o acordo firmado pelos interessados encontra respaldo na Constituição Federal, que proíbe expressamente a prática de crueldade contra os animais, na lei de crimes ambientais e especialmente no Código de Saúde do Município de Salvador, que diz no seu art.186: “É proibido a permanência de animais de estimação soltos nas ruas e logradouros públicos ou privados, de uso coletivos ou locais de livre acesso ou público”.

Pior, para a utilização desses animais existem pessoas que os criam, afrontando o art. 197 do mesmo Código de Saúde, que proíbe expressamente  a instalação e manutenção de estábulos, cocheiras ou estabelecimentos congêneres em área urbana.

Os conservadores não conseguem perceber que houve consenso entre os interessados, fruto de um diálogo civilizado. No seu afã de desmerecer o acordo, o autor atinge as prerrogativas do Ministério Público, da Ordem dos Advogados dos Brasil, que na sua ótica destorcida não teriam legitimidade para representar o Estado ou os advogados baianos.

De nossa parte, gostaria de afirmar que o acesso ao cargo de promotor de justiça não ocorre por nepotismo (direto ou cruzado), servilismo ou qualquer outra forma de corrupção moral, mas por meio de um das mais democráticas formas de acesso aos cargos públicos:o concurso de provas e títulos.

Por outro lado, o Ministério Público, pelo menos aquele a que eu me identifico, não representa governos nem Estados, e possui apenas um senhor: a Constituição e as leis do País na defesa dos direitos sociais indisponíveis e do Estado Democrático de Direito.

Não obstante, o texto representa muito bem os interesses do “coronelismo” e “mandonismo”, velhos conhecidos da política nordestina, que eu denominaria  “política da carroça”, que a despeito de governar a cidade há várias décadas não conseguiu inseri-la em um contexto de modernidade. Nem mesmo o Metrô, que segundo o Ministério Público Federal se encontra inserido num mar de corrupção, essa política conseguiu ainda colocar em atividade.

Por outro lado, todos os trabalhos na promotoria do meio ambiente que represento são desenvolvidos em constante debate com a sociedade civil, tal como ocorreu na revitalização das lagoas do Flamengo, no combate à favelização das praias de Salvador ou à poluição sonora, dentre outras ações.

O autor, que juntamente com outras forças conservadoras mais parecem as “viúvas do jegue”, se insurge contra o consenso das partes, e se esquece de que os organizadores da Mudança do Garcia não apenas concordaram em pôr fim ao sofrimento dos animais, como incorporaram as reivindicações das sociedades protetoras.

Ao contrário do texto que as acusam de omissão, sou testemunha de que as sociedades protetoras Terra Verde Viva e Célula Mãe são entidades que trabalham o ano inteiro recolhendo animais abandonados destinando-os para abrigos ou para doação, suprindo a omissão do poder público.

Ao recebermos a representação dessas entidades e da OAB/BA, convidamos os organizadores da Mudança do Garcia, e após mais de uma hora de debates celebramos o referido acordo extrajudicial, que é prerrogativa do Ministério Público.

O autor se opõe ao cumprimento da lei que protege os animais, pois se encontra apegado a uma tradição cultural que utiliza simbolicamente um meio de transporte ultrapassado e destinado às áreas rurais do nosso Estado, onde os animais são constantemente humilhados e vilipendiados.

Esquece que uma sociedade que maltrata os seus animais também maltrata o seu povo, que vive excluído do espaço público pela elite política que enriquece à custa do dinheiro público.

Não temos dúvida de que os organizadores da Mudança do Garcia encontrarão uma fórmula que possibilite a manutenção da tradição sem que seja preciso submeter os animais às várias formas de crueldade que significa a participação dessas criaturas no desfile, submetidos ao estresse e à poluição sonora que caracterizam o evento. As carroças são apenas uma dimensão simbólica que pode muito bem ser substituída por alegorias ou qualquer outra forma de representação cultural.

Seja como for, o debate sobre os direitos dos animais ocorre na maioria dos países civilizados, e é evidente que Salvador, uma sociedade cosmopolita, não pode ficar de fora deste debate.

O artigo representa a incompetência da política da carroça, que a despeito de governar a cidade há várias décadas não conseguiu inserio-la em um contexto de modernidade. Nem mesmo o Metrô, que segundo denúncia do Ministério Público Federal se encontra inserido num mar de corrupção, conseguiu ser colocado em atividade.

Todos os trabalhos na promotoria do meio ambiente são desenvolvidos em constante debate com a sociedade civil, tal como ocorreu na revitalização das lagoas do Flamengo, no combate à favelização das praias de Salvador ou à poluição sonora, dentre outras ações.

O antropólogo se insurge contra o consenso das partes, e se esquece de que os organizadores da Mudança do Garcia não apenas concordaram em pôr fim ao sofrimento dos animais, como incorporaram as reivindicações das sociedades protetoras dos animais à sua crítica social.

Gandhi, em sua política de não violência, afirmou certa feita que “a grandeza de uma nação e o seu progresso moral podem ser avaliados pela forma com que ela trata os seus animais”.

De fato, toda tradição cultural evolui através dos tempos, e assim como ocorreu com a escravidão humana e os direitos das mulheres, a inclusão dos animais em nossa esfera de dignidade moral é um processo histórico irreversível, a despeito da virulência das forças conservadoras de nossa sociedade.

Heron José de Santana Gordilho é Professor Universitário, Promotor de Justiça do Meio Ambiente em Salvador ([email protected]).

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