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Veganismo: definição revisitada

5 de abril de 2010
13 min. de leitura
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Vários e das mais variadas espécies são os motivos que levam as pessoas a se tornarem vegetarianas ou mesmo veganas. Uma metáfora pode ser utilizada para sintetizá-los: as “quatro portas”, que compreendem os quatro tipos de argumentos comumente utilizados na defesa e divulgação do vegetarianismo/veganismo. São razões de ordem médica, social, ambiental e ética.

As duas primeiras “portas” congregam argumentos em prol dos seres humanos e que quase sempre aparecem segmentados já que são distintos na medida em que se referem à pessoa em si – para quem se dirige os argumentos – e aos demais indivíduos – o conjunto dos seres humanos.

Há ainda uma classe de argumentos que envolvem as “fés” religiosas particulares. São razões de ordem espiritual que afirmam ser o assassínio de animais e a ingestão de alimentos com base nos pedaços de seus corpos prejudicial energética e carmicamente ao ser humano. Esses argumentos carecem que se creia na permanência da vida no pós-morte e na natureza daquele estado. A omissão ou a refutação que se possam fazer a essa classe de argumentos não prejudicam a permanência e a validade dos movimentos de ideais veganos.

Sem dúvida alguma, a razão central para o veganismo, de acordo com o entendimento de veganos e veganas, é a de ordem ética (daí o uso da expressão “ética vegana” como sinônimo privilegiado para veganismo) uma vez que só ela é capaz de contrapor-se a todas e quaisquer reações dos que se recusam em conceber como necessária a inclusão de animais à comunidade moral.

Caso se diga que alimentar-se com produtos de origem animal é prejudicial à saúde, poder-se-á ouvir dizer “o problema é a ingestão em excesso”. Se o argumento pró-vegano for que a produção de carne é o que causa fome no mundo, poder-se-á ouvir contra-argumentar “o problema é a desigualdade social e não a pecuária, sem contar que em muitas localidades ao redor do mundo a única possibilidade de sobrevivência humana é garantida pela pecuária… regiões com insegurança hídrica, solos inférteis e insolação acentuada compõem um cenário que inviabiliza ou pelo menos dificulta a agricultura”. Caso a tônica vegana recaia na afirmação de que as atividades de produção de alimentos de origem animal são das que mais degradam o meio ambiente, poder-se-á ouvir replicar “a pecuária tem sido sim um problema, mas existem alternativas… tem como até mesmo produzir em maior escala e diminuir os impactos causados no ambiente”.

Esses discursos transversais em prol do veganismo são muito criticados, inclusive, e talvez até principalmente, dentro das fileiras do próprio movimento. O entendimento dos autores meta-veganos no sentido de intensificar essa crítica se justifica porque se concebe que a insistência nesses argumentos desfoca o central e enfraquece o que já carece de empoderamento. Ficar batendo nas teclas adjacentes (“vire vegan por você”, “vire vegan pelos outros” ou “vire vegan pela natureza”) atrapalha um enfrentamento sério, maduro e producente. Não é objetivo desse texto apresentar tréplicas possíveis às oposições das múltiplas razões veganas, mas pensar acerca do que é, de fato, nuclear.

Sendo as razões éticas (“vire vegan pelos animais”) as únicas capazes de sobreviver a todos os embates travados, pertinente se faz que sobre a afirmação e a defesa delas recaiam a maior parte das energias e dos engajamentos dos sujeitos veganos. Igualmente válidas se fazem as reconsiderações para com as definições de ética vegana, e essas reconsiderações que podem e devem, em certa medida, produzir novas definições (novas em linguagem, não em essência) são especialmente motivadas através dos contatos com o público não-vegano. Em busca de conceitos bem-explicados e compreensíveis capazes de dar a entender toda a seriedade e a complexidade envolvidas é que várias têm se apresentado as formas de se definir e explicar o porquê e o projeto do veganismo.

A conceituação apresentada a seguir, híbrida de filosofia moral, pós-humanismo e zooantropologia, é fruto da leitura de artigos dos professores de filosofia Sônia Felipe e Claudio Tugnoli, e do pesquisador das ciências biológicas e da epistemologia, Roberto Marchesini. Sobretudo do pensamento da professora Sônia é que se reveste esse texto, já que ela faz escola no Brasil.

* * *

O veganismo é um movimento de debate filosófico, proposição de leis e ação direta que visa a implantação e o desenvolvimento de uma ética senciocêntrica, contraespecista, pós-humanista e desanimalizada. Esses vocábulos possuem intersecções semânticas consideráveis que podem bastar para, até certa medida, afirmá-los como sinônimos, no entanto, aqui são apresentados isoladamente, como se representassem faces distintas, com o objetivo de frisar as características da ética vegana.

O movimento vegano se pauta no reconhecimento de que seres sencientes têm direitos e de que somente a adoção da senciência (sensibilidade e consciência – característica própria dos seres dotados de sistema sensorial-neuronial e autonomia prática, isto é, os animais) como princípio definidor de pertença à comunidade moral (senciocentrismo) é capaz de assegurar direitos a todos os seres humanos. Somente evitando-se critérios como racionalidade, capacidade intelectual e artística, linguagem, capacidade de reivindicar direitos e reconhecer deveres ou possibilidade de vir a ser capaz e, ao mesmo tempo, assumindo a senciência como a medida certa é que os direitos humanos conquistam uma base de fundamentação filosófica pertinente e rompem com a discriminação para com outras espécies (chamada especismo), uma vez que tal atributo (capacidade de experienciar dor e prazer) não é exclusividade de humanos (daí a ética vegana ser contra-antropocêntrica).

Além disso, veganos acusam o velho humanismo de ignorar ou subestimar todas as semelhanças entre humanos e animais e frisar as diferenças ditas intransponíveis que separam uns dos outros. A ideia de uma demarcação nítida e rígida entre animais humanos e não-humanos se desfez por meio de uma série de estudos experimentais, por exemplo por aqueles que permitiram dar-se conta de que muitos símios são capazes de inteligência instrumental e até de usar uma linguagem.

A afirmação da tese conectiva e continuísta – diferenças de habilidades entre animais humanos e não-humanos como diferenças de grau, não de natureza, uma vez que todas as criaturas vivas possuem vinculações –, cuja argumentação decisiva está em Darwin, é dos argumentos de maior importância na defesa de um movimento contraespecista.

“(…) Além da inteligência, cujo uso e posse podem ter muitos graus, nós e os animais compartilhamos de aspectos decisivos da vida material e da organização social de um território: a busca de alimento, a conquista de um parceiro, a realização de uma posição de liderança ou o incremento de status, a proteção da família e a defesa do próprio território. (…)” (TUGNOLI).

O foco do movimento vegano incide sobre a crítica ao humanismo (eis o pós-humanismo) ao apontar o animal como parceiro de consciência, ao afirmar o homem em uma relação de parentesco com ele, tanto do ponto de vista filogenético, quanto do ponto de vista da abertura à hibridação. A tese da dependência cultural do homem com relação ao animal (a cultura humana como fruto da sinergia e do confronto, da parte do homem, com as habilidades e os modelos comportamentais das diversas zooespécies, com as quais o homem interage desde os primórdios) não implica nenhum reducionismo e mostra quanto é infundada a pretensão do velho humanismo de que a cultura seja oposta ao zoomórfico e aos modelos animais.

Em vez de entender cultura como emancipação do homem, como elemento de diferenciação absoluta deste em relação às outras espécies animais, o veganismo reconhece ao animal o papel de magister – o homem aprende com os animais, mediadores que são nos planos operativo, cognitivo, semiótico, estético, etc. – e defende que desse modo todos os animais sejam conhecidos e respeitados.

Toda visão fundada na dicotomia homem/animal é abandonada dentro da ética vegana e, reconhecendo o papel essencial da alteridade, em todas as suas dimensões, o estatuto dialógico da antropopoiese é afirmado – daí a necessidade de se evitar perigosas negligências no confronto com o outro (animal, cultural, tecnológico, etc.) que conduzam o homem a se conceber como uma ilha autossuficiente, como o único protagonista do mundo, como o unigênito e possuidor de direitos exclusivos, como centro e medida da realidade.

“(…) os predicados humanos se realizam na medida em que o homem acolhe o mundo e se faz menos auto-referido. Parece um paradoxo, mas nós realizamos as nossas qualidades antropodecentrando-nos, ou seja, não desligando-nos do mundo e fechando-nos em nós mesmos, mas assumindo outras perspectivas. (…)” (MARCHESINI)

Os profundos significados das relações homem/animal não podem ser reduzidos ao mero desfrutamento. Há que se reconhecer as múltiplas valências formativas das interações interespecíficas – já é sabido, por exemplo, que a interação dialógico-considerativa entre animais humanos e animais não-humanos aumenta o vocabulário imaginativo, facilita a familiarização com a diversidade, encoraja a comunicação, aumenta o grau de auto-estima dos primeiros.
 
Entretanto, a ética vegana não se pauta na reconsideração moral dos animais motivada pelas funções e prestações formativas que estes desempenham para os humanos, se assim fosse, a visão de apropriação antropocentrada estaria mantida, mesmo que sob outros termos. Tendo em vista o valor intrínseco (fins-em-si-mesmos) dos seres sencientes, a ética vegana é pela criação de modos de viver, conviver e produzir que dispensam “(…) toda prática levada a efeito às custas do bem próprio, da liberdade e da vida de animais não-humanos e humanos. (…)”(FELIPE) O projeto é de criação de uma cultura não-animalizada, livre de todos e quaisquer empregos de animais vivos ou mortos. Nessa nova cultura, a obtenção de benefícios, tais quais saúde, bem-estar e realização profissional, não podem depender da exploração de animais, por isso, a tônica é pela criação de modos veganos de ser, livres de crueldade e violência e, mais que isso, livres da exploração e da escravidão de animais, pelos mesmos motivos que crueldade e violência, exploração e escravidão de humanos são impensáveis hoje, pelo menos para grande parte das comunidades humanas.

 “(…) Para qualquer ser vivo, a maior violência que se pode cometer é tirar-lhe a liberdade de mover-se para prover-se seguindo o modo que melhor se adequa ao alcance do bem que lhe é próprio. Por isso, a defesa dos direitos animais passa inevitavelmente pela libertação deles de todas as formas de privação da liberdade à qual estão condenados no sistema que os torna objetos de propriedade humana. Não são os veganos quem proíbem outros de usarem animais como se fossem coisas descartáveis. Quem o faz é o princípio ético que todo humano admite como válido quando seu interesse em não ser sequestrado, usado, explorado e assassinado está em jogo. Por submeter-se ao princípio ético, o movimento vegano admite que tal princípio prescreve certas ações, e proscreve outras. (…)” (FELIPE)

Quando acuado ou violentado, o ser humano se pronuncia, em defesa de si próprio, não enunciando “eu sou capaz de produzir teorias científicas corretíssimas” ou “eu sou capaz de produzir obras de arte valiosíssimas”. Não se apela para as diferenças. O que se comunica são as igualdades. “Eu também sou gente… sou de carne e osso… suo, choro e sangro… o que dói em você, dói igualmente em mim”. Apela-se para aquilo que é capaz de equiparar a todos os seres humanos, na verdade, o único item capaz de fazer isso – faz-se referência à senciência, à capacidade de experienciar dor e prazer. Quando se defende os direitos de seres humanos não-paradigmáticos (comatosos, portadores de doenças e comprometimentos mentais graves, anencéfalos, recém-nascidos, idosos senis, etc.) é somente sobre isso que se pode pautar. Os animais também possuem esse “item comum” mas a eles não é assegurada igual consideração para interesses semelhantes. É contra isso – a discriminação de seres igualmente dotados por natureza de capacidades sencientes – que trabalham os sujeitos veganos.  

A Profa. Sônia Felipe afirma que pensar com a clareza vegana possibilita agir em prol da construção de um modo de vida que afirma os direitos animais, ecossistêmicos e humanos, sem que, para cada um desses âmbitos se forje uma ética antagonista às demais. A clareza vegana possibilita ainda o questionamento de posições bem-estaristas e vegetarianas que se acomodam em pensar em medidas de “lida gentil” e “abate humanitário” como construções sociais maximamente éticas.

Por mais que se concebam as medidas bem-estaristas como uma etapa para o abolicionismo (consideração essa das mais controversas dentro do veganismo), não se deve negligenciar a violência sexual a que são submetidos os animais que servem para a produção de leite e ovos.

A coisificação de animais é pré-condição para a mercantilização de seus corpos e substâncias corporais, mas a objetivação dessa exploração capitalista só é possível pela dominação sexual que os humanos exercem sobre eles. Somente a reprodução mecanizada é capaz de assegurar que nasçam os bilhões de seres sencientes condenados aprioristicamente a servir de máquina e matéria-prima para a indústria da carne, do leite e dos ovos.

“(…) A natureza reprodutiva de bovinos, suínos, avinos, caprinos e equinos não permite sua reprodução em números que batem recordes em relação a toda reprodução animal conhecida ao redor do planeta. Somente para a exploração da indústria de laticínios, os Estados Unidos e o Brasil contabilizam juntos uma população de aproximadamente 500 milhões de vacas, escravas sexuais, inseminadas mecanicamente ao longo dos 6 a 8 anos de gestação, parto e lactação aos quais são condenadas até exaurirem. Destino melhor não é garantido às galinhas exploradas sexualmente pela indústria de ovos. Ao cabo de 4 anos estão esgotadas. Tanto as galinhas quanto as vacas, exploradas sexualmente pela indústria ovo-lacto, acabam nos matadouros. Não se pode adotar o modo de vida vegano e ao mesmo tempo ignorar a escravização sexual de algumas espécies animais, mantendo-se o especismo eletivo sexista, enquanto se condena a escravização de outras. (…)” (FELIPE)

Esse é o veganismo, postura/proposta desconcertante e ousada porque “conspiradora e perturbadora da ordem”, e movimento na “condição de Davi ante Golias”, disposto a embates árduos porque multidimensionais – moral, emocional, mental, político e econômico – a ser travado contra os padrões e conceitos instituídos, contra as tradições que se armam defensivamente quando acuadas, justificando-se com quaisquer termos, e contra as ciências, que negando-se ideologicamente filiadas e arrogando-se neutras e peritas, afirmam um determinado estatuto humano totalmente contrário ao defendido como possível e necessário pelos sujeitos veganamente (“vegan na mente”) engajados.

É ainda a professora Sônia quem faz pensar. Se existem humanos dispostos a unirem-se na fundação e na vivência de um projeto de remover da consciência humana todo e qualquer traço antropocêntrico, que entende os animais como objetos de propriedade e os humanos como seus senhores, já não há um poder absoluto, hegemônico e inquestionável do ser humano. Tirando-se do lugar de senhores, esses sujeitos veganos tiram os animais do lugar que os torna vulneráveis à hostilidade, ao desprezo e à destruição, nos moldes dos padrões culturais e morais animalizados. Embora ainda sejam poucos os humanos que traçam sua biografia em torno da libertação dos animais porque entendidos como sujeitos de direitos fundamentais – vinculados à vida, à liberdade e à condição de vulnerabilidade na busca do próprio bem a seu próprio modo –, esses poucos já marcam sua presença no mundo e não podem ser negligenciados.

REFERÊNCIAS

Especismo. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Especismo>. Acesso em: 27 mar. 2010.

FELIPE, Sônia T. A desanimalização do consumo humano: desafios da ética vegana. Disponível em: <http://www.sociedadevegana.org/index.php?option=com_content&view=article&id=16:a-desanimalizacao-do-consumo-humano-desafios-da-etica-vegana&catid=10:geral>. Acesso em: 27 mar. 2010.

INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS. O pós-humanismo como ato de amor e hospitalidade: entrevista com Roberto Marchesini. Disponível em: <http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_tema_capa&Itemid=23&task=detalhe&id=91>. Acesso em: 19 mar. 2010.  

INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS. Pós-humanismo: o ser humano e o animal se hospedam um ao outro: entrevista com Cláudio Tugnoli. 16 out. 2006. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=1067>. Acesso em: 19 mar. 2010.




Allan Menegassi Zocolotto

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