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O artesão e a centelha

5 de abril de 2010
10 min. de leitura
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Um lugar comum da vida dos escritores profissionais, particularmente aqueles dos quais se exige grande prolixidade, como cronistas e colunistas de jornal, é a falta de assunto. Sobre o que escrever? O leitor (e o empregador) não quer saber se lhe faltam ideias ou notícias a comentar naquele determinado dia. Há que mostrar produtividade. É difícil manter um padrão de qualidade, de relevância e profundidade quando nos permitem tão pouco (uma lauda, com sorte) e nos exigem tanto (um texto por dia, e nem quero começar a pensar nos blogueiros profissionais, que precisam atualizar o conteúdo quase que de hora em hora).

Mas, afinal, do que estou reclamando? Em primeiro lugar, não sou escritor profissional. Em segundo lugar, não tenho uma coluna diária num jornal ou página de internet. Por fim, assunto é o que não me falta. Há tanta injustiça ocorrendo cotidiana e simultaneamente no mundo, que é humanamente impossível dar conta de tudo, mesmo que tenhamos apenas um dia para nos prepararmos. Pois a injustiça não descansa, não tira férias e não dá trégua.

Nos jornais de 25 de fevereiro de 2010 podemos ler: morreu, em decorrência de uma greve de fome , o dissidente cubano Orlando Zapata, perseguido político, condenado por “desobediência”, “desordem pública” e “resistência” [1], isto é: condenado e em última instância morto por confrontar um regime desumano – pois desumano é um regime que persegue seus oponentes e lhes deixa morrer de fome por intolerância e intransigência, não importando com quais fantasmas, reais ou imaginários, ele se bata, nem que propósitos, torpes ou sublimes, ele alegue ter. Seu funeral se deu sob estrita vigilância e algumas dezenas de subcidadãos cubanos foram detidos “preventivamente” [2]. Os políticos latino-americanos, que se dizem tão sensíveis às injustiças, silenciaram de forma vergonhosa, inclusive dois dos mais loquazes, que gostam de dar palpite em tudo, e que visitaram Cuba no mesmo dia: os presidentes do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva, e da Venezuela, Hugo Chávez [3]. Cúmplices de um crime. Nenhuma lágrima será vertida por esse infeliz na casta de intelectuais e ativistas europeus e latino-americanos que dizem lutar por um mundo mais “justo e igualitário”. Não admira que um dos seus símbolos seja o globo terrestre invertido: eles não querem o fim da opressão, e sim a troca de papel entre opressores e oprimidos.

No dia 24 de fevereiro de 2010 a ONU divulgou que 346 crianças morreram no Afeganistão apenas em 2009, em função da “Guerra ao Terror”, 131 delas (37,8% do total) em função de ataques aéreos das forças da OTAN, que também atingiram mais de 600 escolas [4]. Apenas um dia antes foi noticiada a morte de 27 civis, confundidos com terroristas, também em ataque aéreo da OTAN, a qual reconheceu o próprio o erro e pediu “desculpas”; já o secretário de Defesa dos EUA simplesmente disse que “erros acontecem” [5].

E o que dizer da violência contra os animais, a mais covarde e injusta de todas, pois promovida contra seres incapazes de se defender? No dia 23 de fevereiro de 2010 veio a público o caso de animais criados pela indústria da pele na Finlândia, um dos maiores produtores dessa “mercadoria” em todo o mundo [6]. O vídeo-denúncia afirma que são 50 milhões de animais vitimados anualmente por esta indústria. Ele mostra pequenos mamíferos cobiçados por sua beleza, confinados, empilhados, mutilados, expostos a epidemias e danos neurológicos e, por fim, eletrocutados e asfixiados, tudo em nome da “moda”, enquanto estilistas e designers denunciam a “hipocrisia” e o “politicamente correto” contra sua “liberdade criativa”. Não deixam de estar certos quanto à hipocrisia. Afinal, grande parte dos seres humanos que alegam repulsa contra as atrocidades e a frivolidade do comércio de peles não abre mão do seu igualmente atroz e frívolo bife, frango grelhado, salame, ovo cozido, queijos refinados ou iogurte “light”, dentre outras especialidades da indústria da morte.

E esses são apenas exemplos recentes. Alguns número genéricos podem ajudar a colocar a questão em contexto. Na região metropolitana do Rio de Janeiro, segundo dados do Instituto de Segurança Pública do estado, foram 5.794 homicídios em 2009 e 5.717 em 2008, médias de cerca de 35 para cada 100 mil habitantes, estatística digna de países em guerra [7]. E, por falar em guerra, na Faixa de Gaza, na Palestina, apenas na ofensiva israelense do inverno de 2008-2009, mais de mil palestinos morreram. A região é ocupada por Israel desde 1948 e foi palco de inúmeros conflitos armados desde então, perpetrados pelos dois lados. Nessa disputa assimétrica, porém, a balança de sofrimento pende de forma inegável e desmedida para um deles: o palestino. Os palestinos convivem com a pobreza generalizada; violações frequentes das liberdades públicas e do direito de locomoção; a construção de um muro de concreto de “defesa”, que divide o território palestino e incorpora mais terra ao Estado de Israel; o bloqueio econômico que asfixia sua já limitada economia. Milhares de palestinos foram removidos à força de suas casas, desde o início da ocupação israelense. O índice de desemprego na Faixa de Gaza, segundo a OXFAM, supera a marca de 40% [8]. E, para piorar o quadro, corrupção, autoritarismo e disputas fratricidas entre as próprias autoridades palestinas atingem uma população que vive prisioneira há mais de seis décadas.

Por fim, neste exato momento, milhares de seres sensíveis estão sendo mortos, mutilados, torturados pelo simples fato de não serem humanos. Os dados defasados da FAO (de 2003) falam em 45,9 bilhões de galináceos, 1,24 bilhão de suínos, 345 milhões de caprinos e 292 milhões de bovinos abatidos por ano, para citar dados de apenas algumas espécies de animais “de criação”. As estimativas seriam de um total de 50 bilhões de animais abatidos para consumo em 2003, e, com o aumento do consumo de produtos de origem animal no mundo, a tendência é esse número apenas aumentar. E percebamos que esses dados se referem apenas aos países que fazem tal levantamento estatístico, apenas no setor da alimentação, excluindo o extermínio de animais em outras indústrias, e o número incalculável de animais marinhos mortos pela indústria pesqueira [9].

Dificilmente vocês ouvirão manifestações públicas de repúdio a eventos dessa natureza de uma mesma fonte. Pois, infelizmente, a solidariedade humana é bastante seletiva. O sofrimento de uns vale mais que o de outros, a depender de afinidades culturais, étnicas, sociais, políticas, ideológicas e, claro, afinidades de espécie.  Perdidos entre cada lado do muro da Guerra Fria, que não mais existe no mundo material, mas persiste e persistirá por muitas décadas no mundo das ideias, as vítimas humanas da opressão continuarão a existir e multiplicar-se. Quanto aos animais não humanos, os humanos opressores e oprimidos, cotidianamente, irmanam-se ao menos nessa prática, numa matança de escala incomparável para servir seu paladar, curiosidade e orgulho de superioridade, num holocausto fútil e absolutamente evitável. Nas palavras de meu amigo e colega escritor Rafael Jacobsen: “apesar de o número exato de pessoas exterminadas pelos nazistas nos campos de concentração ainda ser objeto de pesquisa e debate, as estimativas mais avantajadas apontam para (…) um total de 22.130.000 pessoas (sim, mais de 22 milhões). Faço mais um rápido cálculo mental e começo a rir: esse número representa mirrados 0,04% em comparação com os tais de 50 bilhões de animais mortos a cada ano. Súbito, a imensa tragédia do holocausto adquire contornos de brincadeira de criança” [10].

Tudo isso se dá enquanto alguns, como eu, se dedicam a este inocente (e alguns diriam inócuo) ofício de pensar e escrever. Não admira mesmo que ativistas das mais variadas causas tenham uma certa desconfiança daqueles que usam a pena como arma, e a verdade como munição. O que palavras vãs podem contra as dores que se materializam a cada hora, minuto, segundo? “Palavras, palavras, palavras”, como diria Hamlet. Como a palavra pode aliviar a dor? O que resta diante de tantas insanidades? Toda a experiência humana, toda a sua história, seus feitos, conquistas, suas artes e descobertas empalidecem, tornam-se fúteis, perdem sentido quando a vida humana e animal é tratada com total descaso e descartada como lixo; quando os indivíduos são silenciados, atados, perseguidos e, por fim, mortos, apenas por serem mais frágeis ou pensarem diferente ou terem uma origem diversa; quando suas mortes são desconsideradas, como se jamais sequer tivessem existido; vistas como efeito colateral ou mal necessário; ou tidas como resultado da ordem natural das coisas, um sofrimento material sobre o qual não pesa qualquer sofrimento moral, seja por seus algozes, seja pelas testemunhas omissas.

E, no entanto, a palavra tem poder, sim.Todos nós, mesmo os mais imediatistas e voluntaristas, e os menos eruditos, trabalhamos com ideias e conceitos que alguém um dia se deu ao trabalho de colocar no papel. O escritor dificilmente inaugura alguma tendência. A originalidade é uma impossibilidade matemática: com tantos seres humanos vivendo ao mesmo tempo, expostos aos mesmos estímulos, alguns deles partilhando dos mesmos interesses ou vivendo sob as mesmas condições, é difícil comprovar o pioneirismo em qualquer corrente filosófica. Contudo, o escritor dá método e coerência às ideias que estão soltas no mundo.

O escritor é um artesão da palavra. Se ele pouco ou nada cria, ainda assim sua arte e ofício são mais importantes do que a maioria é capaz de admitir ou mesmo reconhecer. Ele verbaliza as tendências de sua época, é um porta-voz de seu tempo. Não cria revoluções, mas ajuda a propagá-las, incendiando as mentes de seus contemporâneos. Ele fabrica a cola que une aqueles que partilham de suas ideias, dá a estas a coerência necessária para a ação consciente e eficaz, e as exporta para além do estreito círculo em que elas habitam. Sua palavra pode ser a última arma que resta para jogar luz sobre a brutalidade que é praticada nas sombras e questionar a indignidade que é justificada pelos tiranos. O artesão pode, pela sua pena, lançar aquela centelha de dúvida, esperança ou entusiasmo que possibilita a mudança e inspirar aquele vislumbre de sabedoria e conhecimento necessários para despertar consciências e, em última instância, conquistar a vitória sobre a ignorância e a injustiça.

Sinto profunda tristeza quando vejo meus semelhantes calarem diante de todas essas formas de tirania, desmerecerem a vida de suas vítimas e negligenciarem sua dor. Se nada mais posso fazer por esses indivíduos feitos não indivíduos, corpos animados transformados em matéria inanimada, posso ao menos usar minha pena e minha voz para denunciar seu flagelo, demonstrar minha indignação e minha recusa em compactuar com uma realidade tão atroz. Nesse caso, a palavra não é apenas uma forma de aliviar o próprio sofrimento que experimentamos diante do sofrimento alheio. É também uma forma de despertar consciências para que talvez, no futuro, elas sejam abolidas, para nunca mais virem a se repetir.


[1] “Anistia Internacional pede a Cuba que libere seus prisioneiros políticos”. In: http://noticias.uol.com.br/ultnot/afp/2010/02/24/ult34u219092.jhtm. Acessado em 25 de fevereiro de 2010.
[2] “Comissão denuncia prisão de opositores antes de enterro de dissidente”. In: http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2010/02/25/funeral-de-dissidente-cubano-sob-vigilancia-e-repressao.jhtm. Acessado em 25 de fevereiro de 2010.
[3] “Análise: Visita de Lula a Cuba sinaliza a sucessor importância de laços”. In: http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u698312.shtml. Acessado em 25 de fevereiro de 2010. Sobre a proverbial política externa ativa do governo Lula, gostaria de recordar a antológica observação do ex-presidente argentino Néstor Kirchner: o Brasil quer eleger até o Papa. Claro que nosso governo usou a falácia da “não-intervenção” para silenciar sobre o prisioneiro cubano, assim como já fez sobre as eleições fraudadas e repressão popular no Irã. A desculpa colaria se nosso governo tivesse tido o mesmo pudor ao tratar do golpe de Estado em Honduras e das bases estadunidenses na Colômbia. O presidente também nega ter recebido qualquer carta dos dissidentes cubanos. Diante do currículo (ou folha-corrida) desse governo, quem dá um tostão pela veracidade da alegação? Dizem que nossa política externa é autônoma e afirmativa, mas a mim parece mais hipócrita e covarde, com certeza refletindo as melhores qualidades dos homens e mulheres que a comandam.
[4] “Ataques aéreos mataram 38% de crianças vítimas de conflito afegão em 2009”. In: http://noticias.uol.com.br/ultnot/efe/2010/02/24/ult1807u54493.jhtm. Acessado em 25 de fevereiro de 2010.
[5] O GLOBO. “OTAN mata por engano 27 civis no Afeganistão”. 23 de fevereiro de 2010, p. 26.
[6] “Grupo pelos direitos dos animais denuncia sete fazendas de pele, na Finlândia”. In: https://www.anda.jor.br/?p=48376. Acessado em 25 de fevereiro de 2010.
[7] “Taxa de homicídios no Rio não usa base do IBGE”. In: http://urutau.proderj.rj.gov.br/isp_imagens/Uploads/SaiunaImprensa10_059.pdf. Acessado em 25 de fevereiro de 2010.
[8] OXFAM. “The Gaza Strip: A Humanitarian Implosion”. In: http://www.oxfam.org.uk/resources/downloads/oxfam_gaza_lowres.pdf. Acessado em 25 de fevereiro de 2010.
[9] JACOBSEN, Rafael. “Ano Novo, Velhos Números”. In: http://vista-se.com.br/site/ano-novo-velhos-numeros. Acessado em 25 de fevereiro de 2010.
[10] Idem.

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