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Porque os animais não-humanos devem ter seus interesses considerados em igualdade de condições aos humanos

2 de abril de 2010
26 min. de leitura
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Por Jucirene Oliveira Martins da Silva
(Universidade do Sul de Santa Catarina /UNISUL – Brasil)

Os animais têm sido desde sempre explorados pelos homens, usados  como meros objetos, dos quais não cabe averiguar os sentimentos ou os interesses. Fazemos uso dos demais animais  que compartilham  conosco a vida nesse planeta, como se não houvesse outra explicação para sua existência que não fosse saciar nossos mais variados desejos, necessidades ou caprichos. Nas palavras de Ricardo Timm de Souza: “Máquinas vivas, alvos fáceis da vontade de destruição racional, objetos de exploração de todos os tipos, de tortura, de decoração e uso, sem falar em alimento sempre à mão, os animais experimentaram desde sempre todo tipo concebível de violência humana. Incapazes de argumentar senão com sua existência nua, expostos a todas as agruras por existirem sem poderem se contrapor a seres empenhados não apenas em reduzir obsessivamente a existência da realidade externa a uma função sua, mas em determinar absolutamente o valor de realidade do Outro que si mesmo exclusivamente a partir de categorias destiladas por seu próprio cérebro, algo mais desenvolvido em suas funções cognitivas, os animais não-humanos ocuparam sempre o lugar de alvo predileto de uso violento-objetificador da vida pelos animais humanos.[…] 1

[…] está mais do que na hora de nos despirmos de nossos preconceitos antropomórficos e entendermos  finalmente que a percepção ética da Alteridade dos animais não é uma veleidade intelectual, ou um capricho contemporâneo, mas – além de um imperativo ético radical – uma questão de sobrevivência, e sobrevivência não apenas dos animais não-humanos, mas muito especificamente o único animal sobre o qual recairá a responsabilidade do fracasso absoluto, se a antevisão da catástrofe ético-ecológica que se insinua nas consciências lúcidas se realizar.2

Peter Singer entende que pode não haver qualquer outra razão – com exceção do desejo egoísta de preservar os privilégios do grupo explorador – para a recusa de inclusão de membros de outras espécies no princípio básico da igualdade de consideração. A conclusão a que chega é que não temos outra justificativa para excluirmos os interesses dos demais animais de nossas preocupações éticas que não seja o especismo3 .

O especismo é uma discriminação baseada na espécie; segundo esta visão, os interesses de um  indivíduo têm menor importância pelo fato de este pertencer a uma espécie diferente da nossa. Richard Ryder cunhou o termo, originariamente “especiecismo”, ao constatar a proximidade deste com  outros tipos de preconceito e discriminação, como o racismo e o machismo, por exemplo4.

Sob uma perspectiva ética, não se justifica a diferença de tratamento para com os animais não-humanos com o único argumento de se tratarem de seres pertencentes a uma outra espécie. A ética pressupõe que, ao efetuarmos julgamentos acerca de determinados comportamentos e valores, levemos em consideração o universo de sujeitos envolvidos nos mesmos, isso  porque o  agir de forma ética implica  não se  considerar  unicamente   escolhas pessoais   e  soluções que  nos  sejam mais favoráveis,  ao  contrário,   devemos  levar em conta o interesse de todos aqueles que são afetados por nossas decisões. Um determinado padrão ético para ser válido deve respeitar o princípio básico da igualdade e vislumbrar a igual  consideração de interesses, sem distinções baseadas em critérios como raça, classe social, religião, sexo ou qualquer outro.

É fundamental que a ética contenha alguma exigência de universalizabilidade e imparcialidade: para que sejam moralmente válidos os princípios éticos devem ser universais e devem considerar igualmente o interesse de todos os seres envolvidos, para não incorrermos no erro de sermos discriminatórios e incoerentes. Afirma Singer: “a ética exige que extrapolemos  o ‘eu’ e o ‘você’ e cheguemos à lei universal, ao juízo universalizável, ao ponto de vista do espectador imparcial, ao observador ideal, ou qualquer outro nome que lhe dermos.”5

Como muito bem colocado por Sônia Felipe: […]A ética não é um código de comportamento para regular a relação de seres capazes de fazer uso da razão e da linguagem. Ela é, outrossim, o estabelecimento de um princípio universalizável, portanto, racional, para regular as ações desses quando afetam interesses e preferências daqueles que não as podem usar.6

[…]Se a ética é a busca do aprimoramento moral da espécie humana, tal aprimoramento do sujeito moral certamente não ocorrerá enquanto esse mesmo sujeito usar dois pesos e duas medidas para orientar-se nas decisões que toma; um, quando pesa os benefícios de sua ação voltada para dar maior conforto e bem-estar aos membros da própria espécie[…], outro, quando se trata de fazer uso de outros seres como se fossem meros objetos ou instrumentos colocados à sua disposição para que seus interesses e necessidades, ainda que mesquinhos, sejam satisfeitos. Não há moralidade alguma em tal incoerência, pois do mal causado a outrem  não resulta o bem comum a ambos […]. A ética crítica coloca limites ao gozo humano, ao declarar que os demais seres não estão no mundo para saciar nosso ego,
do mesmo modo como nenhum de nós aceita ser objeto para saciedade de gozo alheio. Nossos interesses e preferências têm tanto valor para nós quanto o têm para si interesses e preferências de qualquer ser capaz de os ter.7

É certo que não temos como sentir pelo outro, portanto, jamais saberemos exatamente como um outro ser experimenta  as mesmas sensações que nós, não sabemos com certeza se a dor que sentimos é sentida de idêntica maneira por outro indivíduo, isso   independente de se tratar de um ser humano ou não, mas esse fato não é desculpa para que deixemos de fora de nossas preocupações o bem estar e a dor de qualquer ser capaz de senti-los. Se o fato de não podermos estar no lugar do outro e não podermos sentir por este, não invalida, quando se trata de indivíduos da espécie humana, a necessidade de respeitar seus interesses, assim também não se pode desconsiderar os interesses dos animais simplesmente porque não conseguimos nos pôr em seu lugar, estar em sua pele, em sua consciência.

O princípio da igual consideração dos interesses exige que levemos em consideração os interesses dos demais seres que tenham a mesma capacidade que nós de sentir e de sofrer, o que implica que devemos levar em consideração o sofrimento de qualquer ser, em termos de igualdade com sofrimento semelhante, dentro dos limites de comparação possíveis. Os seus interesses devem importar e devem ser atendidos ainda que este ser não utilize a mesma linguagem que nós ou não atinja o mesmo grau de inteligência e raciocínio, e tal princípio deve servir de base para o tratamento
que dispensamos tanto aos humanos como aos demais animais.

Não se trata de diminuir os seres humanos ou de achar que não há diferença alguma entre as espécies, apenas de reconhecer como detentores do direito a não serem submetidos a tratamento discriminatório quanto aos seus interesses, os membros de outras espécies, já que o princípio básico da igualdade deve ressaltar as semelhanças entre os homens e os demais animais e não suas diferenças. O fato de estes poderem também sentir dor, medo e de sofrer como nós, nos aproxima dos demais animais e nos impõe o dever moral de levar em consideração tanto seu existir como indivíduos conscientes, quanto seu sofrimento ou prazer.  É comprovado cientificamente que os animais vertebrados sentem dor, por possuírem sistema nervoso similar ao nosso. De acordo com os “Princípios Internacionais para a Pesquisa Biomédica Envolvendo Animais”, adaptado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP, “Deve-se assumir que qualquer procedimento que cause dor no  ser humano, causará dor em  outras  espécies  de  vertebrados […]”8 .  Mesmo em relação aos  peixes, que  muitos ainda gostam de acreditar que sejam “insensíveis”,”a literatura científica é muito clara.  Anatômica, fisiológica e biologicamente, o sistema de  dor dos peixes é praticamente o mesmo que o das aves e dos outros animais.”9

Sabemos que os animais sentem dor e desconforto, mesmo que não possam falar, assim como sabemos quando um bebê está desconfortável: os animais tentam fugir do que lhes causa dor, gritam, esperneiam, enfim, lutam como podem para tentar salvar sua vida ou livrar-se da situação que lhes causa sofrimento. As espécies não são iguais e certamente sua sensibilidade não será a mesma a determinada intensidade de dor, mas é inegável a capacidade dos animais sencientes  de sentir dor  e sofrer quando seus interesses mais elementares, como garantia ao seu bem estar físico e mental, são desprezados.

O fato dos animais não-humanos não poderem se expressar da mesma forma que nós, de não utilizarem a nossa linguagem, é simplesmente caracterizador de que estes não necessitam desta linguagem para viver e sim de sua própria. Insistirmos que os demais animais tenham seu valor desconsiderado por não conseguirem se “comunicar” conosco da forma como gostaríamos ou entendemos que deveriam,  é totalmente sem propósito. Para entendermos melhor o absurdo de tal  situação, podemos nos imaginar falando, usando nossa linguagem, nossos códigos próprios,
que consideramos totalmente suficientes para que nos façamos entender e sendo totalmente desconsiderados por nosso interlocutor: um indivíduo para o qual nossa linguagem não fizesse o menor sentido e que utilizasse códigos totalmente diferentes dos nossos. Para este interlocutor, nosso discurso seria vazio e, comparando nossa “tentativa de comunicação” com a linguagem por este utilizada, ele provavelmente nos consideraria seres incapazes de nos comunicar, por mais que gritássemos, gemêssemos, ou qualquer coisa assim. Seria uma situação difícil, pois não teríamos como nos defender ou argumentar caso esse interlocutor acreditasse que por ser mais forte que nós
ou mais inteligente, pudesse fazer o que bem entendesse conosco, uma vez que, sob seu ponto de vista, já que não “falamos”, também provavelmente, não devemos ter sentimentos ou interesses.

Singer não defende que todas as vidas tenham exatamente o mesmo valor e, portanto, o princípio da igualdade não significa tratar a todos do mesmo modo, o que poderia no   nal das contas, acarretar   em  desigualdade;  o que se propõe é a igual  consideração.Consideração  igual por seres diferentes pode signi  car tratamento diferente e direitos diferentes.10

Em outras palavras, por serem diferentes os seres, também serão diferentes os interesses que cada um deve ter protegidos, a igual consideração consiste então em dar a cada ser aquilo que este necessita para viver  bem a vida, da
forma como sua espécie concebe o viver bem. É óbvio que as necessidades de uma ave não são as mesmas que as do ser humano ou o que um porco reconhece como uma vida boa pode não ser exatamente aquilo que satisfaça ao macaco, por isso a igual consideração implica dar  tratamento condizente ao que cada espécie precisa para viver sem sofrimento.

Os seres autoconscientes, que, diferentemente dos seres simplesmente sencientes, possuem, além do interesse em seu conforto e bem estar físico, expectativas para o futuro, podem apresentar uma capacidade de sofrimento maior, se considerarmos que sua capacidade de abstração e de planejamento os levará, mais que à dor e ao sofrimento no momento em que um fato concreto está a se realizar, a sofrer também por antecipação, pelo vislumbre do que estará por vir e do que estarão a perder: além da dor física, serão atormentados pela dor psíquica, causadora de ansiedade, temores, angústia.

Por essa linha de raciocínio, Singer acaba por diferenciar essas formas de vida, admitindo que a do ser autoconsciente possa ter maior valor do que a dos demais seres, não podendo essa diferença, entretanto, servir como uma justi  cativa para a exploração de uns pelos outros:1 1

O argumento para estender o princípio da igualdade além da nossa própria espécie é simples, tão simples que não requer mais do que uma clara compreensão da natureza do princípio da igual consideração de interesses. Como já vimos, esse princípio implica que a nossa preocupação com os outros não deve depender de como são, ou das aptidões que possuem (muito embora o que essa preocupação exige precisamente que façamos possa variar, conforme as características dos que são afetados por nossas ações).É com base nisso que podemos a  rmar que o fato de algumas pessoas não serem membros de nossa raça não nos dá o direito de explorá-las e, da mesma forma, que o fato de algumas pessoas serem menos inteligentes que outras não signi  ca que os seus interesses possam ser colocados em segundo plano. O princípio, contudo, também implica o fato de que os seres não pertencerem à nossa espécie não nos dá o direito de explorá-los, nem significa que, por serem os outros animais menos inteligentes do que nós, possamos deixar de levar em conta os seus interesses.1 2

Para os que insistem em perpetuar a situação de sofrimento e tortura a que temos submetido os animais não-humanos, por entender que esse é um costume já tão arraigado em nosso mundo, que não podemos conceber a existência sem ele, é interessante lembrar que, da mesma forma que fazemos atualmente  com  os demais animais, já exploramos, torturamos e privamos de liberdade, em um passado não muito distante, seres humanos cuja cor da pele destoava da nossa,  comportamento considerado totalmente absurdo e inadmissível atualmente. Ficamos perplexos hoje diante de tanta ignorância e crueldade, que permitiu que comportamentos racistas e discriminatórios fossem
aceitos como “normais” por tanto tempo, entretanto, é de se questionar se nosso comportamento frente aos animais não-humanos não deveria também causar a mesma perplexidade e indignação. Jeremy Bentham, ainda na época em que na Inglaterra era considerado aceitável escravizar seres humanos negros, escreveu:  Talvez chegue o dia em que o restante da criação animal venha a adquirir os direitos  dos quais jamais poderiam ter-lhe sido negados, a não ser pela mão da tirania. Os franceses já descobriram que o escuro da pele não é razão para que um ser humano seja irremediavelmente abandonado aos caprichos de um torturador. É possível que um dia se reconheça que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a terminação do osso sacro são razões igualmente insuficientes para se abandonar um ser senciente ao mesmo destino. O que mais deveria traçar a linha intransponível? A faculdade da razão, ou,talvez, a capacidade da linguagem? Mas um cavalo ou um cão adultos são incomparavelmente mais racionais e comunicativos do que um bebê de um dia, de uma semana, ou até mesmo de um mês. Supondo, porém, que as coisas não fossem assim, que importância teria tal fato? A questão não é “Eles são capazes raciocinar?”, nem “São capazes de falar?”, mas sim: “Eles são capazes de sofrer?”1 3

Verifica-se, nesta passagem, que a característica vital apontada por Bentham  para dar a um ser o direito de ser ratado com igualdade é a capacidade para sofrer. Em sua abordagem, também utilitarista, Peter Singer, na mesma linha, reconhece direito à consideração dos interesses dos seres sencientes, ou seja, todos aqueles que têm capacidade de sofrer devem ter seus interesses atendidos no que concerne a livrá-los da dor e do sofrimento: O critério mais importante para o direito à vida de um ser vivo, escreveu Singer, não é a inteligência, a razão ou o discernimento. Um recém-nascido tem menos razão do que um porco, e, apesar disso, não podemos comê-lo ou maltratá-lo para testar nele a ação de um novo xampu. O motivo decisivo para respeitar um ser vivo e outorgar-lhe o direito à vida
é sua capacidade de se alegrar ou sofrer.1 4

Portanto, segundo Singer, os interesses constituem o novo parâmetro ético a ser considerado, “e para ter interesses, basta que o ser em questão seja capaz de sentir dor e de sofrer, ou de sentir prazer”. Esse novo parâmetro amplia muito a aplicação do princípio da igualdade, pois passa a abranger, além dos membros da espécie homo sapiens, todas as demais espécies dotadas de um sistema nervoso central organizado.15

Segundo a concepção utilitarista preferencial, adotada por Singer, devem ser sempre levadas em conta e maximizadas as preferências dos indivíduos: em relação à vida, é a preferência do indivíduo por estar vivo que vai definir-se podemos ou não tirá-la dele.1 6  Se a preferência é, em seres sensíveis e conscientes, em situações de perigo e dor, não ser morto e não sofrer, não temos o direito de submeter esses indivíduos a situações que lhes causam mal, que não atendem seus interesses de viver e de não sofrer. É inegável que estes seres não têm interesse em sofrer, serem
torturados física e psicologicamente, terem sua liberdade de movimento tolhida, sua vida completamente subordinada à nossa vontade.

Entretanto, ainda que reconheça nos animais não-humanos seres merecedores de nossa consideração e respeito, Singer mantém-se bastante cauteloso em relação à atribuição de direitos aos animais, pois, dado que estes não podem defender-se,  para que tais direitos sejam assegurados faz-se necessário que alguém os reclame. No seu entender, a ética animal pode realizar um trabalho muito mais abrangente, com a abordagem da crítica à tradição especista e a exigência da expansão do princípio da igualdade para a consideração dos interesses de seres que não são humanos, do que a criação de leis, que podem ser esquecidas, porque os seres humanos, julgando que as leis já estão a proteger os animais, não se dispõem a sair para defendê-los.1 7

Dessa forma, Singer prefere se afastar da questão de os animais terem ou não “direitos”, fundamentando sua tese no fato de que nós, seres humanos, temos deveres para com estes seres, deveres estes que incluem considerar seu interesse de bem estar e de não serem molestados em sua liberdade e prazer de viver. É imperioso, portanto, afim de mudarmos  nosso comportamento em relação   aos   animais e,  para que este comportamento esteja eticamente   legitimado, reconhecermos que não temos justificativa moral para sujeitarmos estes seres a uma vida miserável
e sofrida, que tem como única finalidade nos servir.

Para justificar o uso dos animais como alimento, muitos preferem esquecer momentaneamente nossa pretensa superioridade intelectual e moral e utilizar o argumento de que se os animais se comem entre si, então nós também devemos comê-los. Quando os animais, movidos pelos seus instintos, comem uns aos outros, o fazem em situações incomparáveis com a situação em que os colocamos, pois a maioria dos animais mata pela sua sobrevivência1 8 e não há como se comparar esse fato, de luta pela sobrevivência,  com a realidade da produção em massa em que os colocamos, onde bilhões de animais são continuamente torturados e mortos por todo o planeta.  Não vivemos
em uma época de escassez, temos, se quisermos, condições de sobreviver tranquilamente sem o sacrifício de tantas vidas. A continuarmos com esse comportamento, estaremos por certo reconhecendo maior importância a um banal prazer do ser humano, que se habituou com o sabor da carne e não quer abrir mão desse prazer, do que à vida dos demais animais; estaremos colocando nosso deleite acima do sofrimento e da dor – reais, de muitos seres.

Tampouco convence, a quem se dedica a raciocinar um pouco mais profundamente a respeito  do assunto,  a justificativa de que os animais nos foram colocados à disposição pelo Criador para que deles fizéssemos o que bem entendêssemos, pois como muito bem observou Sônia Felipe, é estranho que seres vivos destinados a servir exclusivamente de alimento para o homem, tenham sido constituídos de uma mente, uma consciência, sensibilidade, liberdade de movimento e não apenas de matéria viva  apta a  nos alimentar. Teria sido um desperdício divino colocar uma mente, uma consciência em animais, se seu objetivo fosse unicamente que estes tivessem suas carcaças ingeridas pelo homem.2 0

Não se discute aqui a morte de animais por estrita  necessidade de sobrevivência ou legítima defesa, uma vez que,   nestes casos,  o homem  não tem  liberdade de escolha, e não seria cabível tentar utilizar argumentos éticos ou códigos morais, quando o estado é de necessidade e o instinto de sobrevivência impera, mas o que não se pode negar é que as condições de sofrimento e dor a que submetemos esses animais durante toda sua vida, por mais curta que esta seja sob nosso ponto de vista, para que, ao   nal, sejam mortos para nos servir de alimento, simplesmente para suprir um capricho do nosso paladar, é, do ponto de vista ético, inaceitável. Já existem muitos estudos mostrando que uma dieta vegetariana pode ser extremamente rica e não se pode desconsiderar o fato de que nós, seres humanos modernos, temos escolha.

A verdade é que um novo paradigma, no que diz respeito ao tratamento que dispensamos aos animais, deve estar baseado nos interesses dos próprios animais, enquanto seres dotados de consciência e sensibilidade e não mais voltado às consequências que este tratamento trará aos seres humanos, sejam elas boas ou ruins. Temos de considerar  os interesses dos animais simplesmente porque eles têm interesses e é  injustificável excluí-los da esfera de consideração moral; fazer com que essa consideração dependa de consequências benéficas para os seres humanos é aceitar a implicação de que os interesses dos animais não merecem consideração por si mesmos.2 1

Em relação a experimentos científicos com animais, no entender de Singer, por se mostrarem desprovidos de qualquer caráter de relevância ou urgência, a maioria destes deveria cessar imediatamente, devendo, para aqueles experimentos que se mostrassem relevantes, serem buscadas alternativas de substituição do uso dos animais nos mesmos.2 2

Segundo Singer, no campo da psicologia é que são realizados muitos dos experimentos mais dolorosos23  e “o que mais perturba […] é que, apesar do sofrimento vivenciado pelos animais, os resultados obtidos, mesmo como relatados pelos próprios experimentadores, são triviais, óbvios ou sem sentido.”24

Singer observa que, neste campo, mostra-se assim o dilema do pesquisador: “ou o animal não é como nós e, neste caso, não há razão para fazer o experimento, ou  o animal é como nós, e, neste caso, não deveríamos realizar no animal um experimento  que seria   considerado  ultrajante se realizado em um de nós.”25    Como   afirma Singer, o  especismo faz com que toleremos crueldades em membros de outras espécies, que nos deixariam indignados se realizados com seres humanos.2 6

A abordagem utilitarista adotada por Singer permitiria concluir, em uma situação hipotética, que seria admissível a morte ou utilização de um animal em uma experiência, desde que esta fosse de tal relevância, que permitisse salvar a vida de milhares de pessoas e se fosse considerado admissível fazer essa mesma experiência em um ser humano órfão, portador de danos cerebrais profundos e irreversíveis. Somente no caso de essa experiência ser admissível nesse ser humano, caracterizando assim que a opção pelo animal não teve motivos especistas, é que seria também admissível nos animais. Embora tal raciocínio não signi  que a absoluta abolição do uso dos animais em experimentos, esse uso seria drasticamente reduzido27 , pois é bem provável que seriam muito raras as situações em que se consideraria admissível utilizar um ser humano em algum experimento, se comparadas às situações nas quais são rotineiramente utilizados os animais.

É possível criticar, na situação mostrada no exemplo acima, o fato de que ainda seria  permitido o uso de animais, mesmo que em casos muito raros. A crítica feita por Tom Regan está no fato de se deixar de levar em consideração apenas o bem estar do próprio sujeito envolvido ou afetado pela ação. Segundo Regan, a abordagem utilitarista faz com que seja aceitável que um indivíduo possa ser desrespeitado, caso a ação que lhe causa mal-estar tenha como resultado um benefício para um número maior de indivíduos. Para Regan, se uma ação causa mal a um indivíduo, esta não é justificável, ainda que possa ser benéfica para muitos outros, pois estaríamos desrespeitando um ser portador de valor inerente.2 8

Regan critica também o fato de Singer não reivindicar direitos aos animais. No seu entender, Singer erra ao não avançar no sentido de declarar direitos aos animais, pois, somente por via do direito é que se pode obrigar um ser racional a deixar de fazer algo que não seja de seu interesse particular deixar de fazer, como comer carne, por exemplo.29   Entretanto, nenhuma crítica  que se  faça à abordagem adotada por Singer tem o poder de desmentir que a tese defendida por este filósofo, que nos propõe expandir a fronteira moral para além da espécie humana, alargar a esfera de moralidade na  qual  temos  vivido, para   que  nela se  possam incluir os  animais  sencientes,  é  um grande avanço no campo do  comportamento e do pensamento ético, por nos levar a enxergar os animais não-humanos como seres sensíveis e conscientes, merecedores de terem seus interesses considerados por nós e não apenas como meros  objetos de uso,  prontos para consumo.

Em países como o Brasil, onde ainda pouca importância acadêmica tem sido dada à causa animal, a filosofia já não pode se furtar a discutir e re  etir sobre a impossibilidade de ser ética uma moral que exclui de seus limites de ação e consideração seres sensíveis e conscientes, que, negligenciados, vêm sendo tiranizados pela mão humana ao longo do tempo. Devemos ser coerentes: o princípio da igualdade de interesses nos obriga a tratar com a mesma consideração todos aqueles que estejam em situação semelhante. Não podemos impor restrições a este princípio a nosso bel-prazer, sermos relativistas em sua interpretação, de forma a nos bene  ciar em proveito de outros seres que, por serem incapazes de articular as palavras como nós, por não possuírem a mesma   neza de raciocínio que, diga-se de passagem, muitos humanos também não têm, ou ainda não têm, ou já não têm mais, são excluídos de nossa esfera de moralidade e abandonados de qualquer proteção relativa aos seus interesses. Esse comportamento, totalmente arbitrário e discriminatório, só se justifica pelo especismo, o qual já é mais do que tempo de abandonarmos, pois “apenas mediante o rompimento radical com mais de dois mil anos de pensamento ocidental relativo aos animais
poderemos construir uma base sólida para a extinção dessa exploração.”3 0

À parte considerações em relação à certeza dos limites exatos de dor e de consciência de cada ser envolvido em nossas ações, a verdade, da qual não podemos mais fugir, é que, ao menos em relação aos  seres dotados de sensibilidade, capazes de sentimentos de dor e prazer, e capazes de manifestar alguma noção de si mesmos como vivos,  temos o dever moral de incluí-los nas mesmas  preocupações éticas  que envolvem o  tratamento dos  membros de  nossa espécie.  O simples reconhecimento do nosso dever moral de tratar com responsabilidade e respeito estes ani-mais, deixando de matá-los, torturá-los, explorá-los e nos abstendo de usá-los em experimentos dolorosos e demorados, que tenham demonstrado ao longo do tempo serem improfícuos ou sem a menor relevância, já representará um enorme passo em direção a uma sociedade mais justa, ética e, porque não dizer, menos “humana”, se considerarmos, neste caso, ser essa qualidade uma preterição dos interesses dos demais seres não incluídos em]nossa espécie.

SILVA, J. O. M. Especismo.

ethic@   Florianópolis v. 8, n. 1 p. 51 – 62  Jun 2009.

Notas
1  Souza, Ricardo Timm de. Ética e Animais – Re  exões desde o Imperativo da Alteridade. In: Veritas, Porto Alegre,
v.52, n.º 2, junho de 2007, p.124.
2  Ibid., p. 125.
3  Singer, Peter. Libertação Animal.Ed.rev.-Porto Alegre, São Paulo:Lugano, 2004, prefácio à edição de 1975, xxi.
4  Ryder, Richard. “All beings that feel pain deserve human rights”, The Guardian, 6 August 2005. Disponível em: http://
www.guardian.co.uk/uk/2005/aug/06/animalwelfare. Acesso em 13/03/2009.
5  Singer, Peter. Ética Prática, tradução de Jefferson Luiz Camargo. 2.ª ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1998,
p.20.
6  FELIPE, Sônia T. Por Uma Questão de Princípios: Alcance e Limites da Ética de Peter Singer em Defesa dos Ani-
mais.Florianópolis: Fundação Boiteux, 2003, p.86.
7   Ibid., p.91-92.
8  Princípios Internacionais para a Pesquisa Biomédica Envolvendo Animais. Adaptado do International Guiding Prin-
ciples for Biomedical Research Involving Animals (CIOMS) – Genebra, 1985. Disponível em:http://www.unoescjba.
edu.br/CEP/cepuno/textos/pesquisa_envolvendo_animais.htm. Acesso em 12/03/2009.
9  . Schwartz , Richard H. “Do You Eat Fish?” Tikkun, Nov. 1999. Disponível em:www.  ndarticles.com/p/articles/mi
. Acesso  em 12/03/2009.
1 0   Singer, Peter. Libertação Animal, 2004, p.4.
1 1 Id., Ética Prática ,1998, p.71 e Libertação Animal, 2004, p. 23.
1 2  Id., Ética Prática ,1998, p.66.
1 3  Bentham, Jeremy  apud Singer, Peter. Libertação Animal, 2004, p. 09.
1 4  Singer,Peter apud Precht,  Richard David. Quem sou eu? E, se sou, quantos sou? Uma aventura na Filoso  a.Tra-
dução de Claudia Abeling.São Paulo: Ediouro, 2009, p.181.
1 5  Singer,Peter apud Felipe, Sônia T. Por Uma Questão de Princípios: Alcance e Limites da Ética de Peter Singer em
Defesa dos Animais, 2003, p.70.
1 6  FELIPE, Sônia T. Por Uma Questão de Princípios: Alcance e Limites da Ética de Peter Singer em Defesa dos Ani-
mais, 2003, p. 131.
1 7  Singer, Peter apud Felipe, Sônia T. Por Uma Questão de Princípios: Alcance e Limites da Ética de Peter Singer em
Defesa dos Animais, 2003, p.138.
1 8  Singer, Peter. Ética Prática, 1998, p.80-81 e Libertação Animal, 2004, p. 255.
1 9  Teixeira, Eduardo Didonet e Buglione, Samantha.Cenários Contemporâneos – livro didático utilizado pela Univer-
sidade do Sul de Santa Catarina – Palhoça: Unisul Virtual, 2008, p. 164 -165.
2 0  FELIPE, Sônia T. Por Uma Questão de Princípios: Alcance e Limites da Ética de Peter Singer em Defesa dos Ani-
mais, 2003, p.46.
2 1  Singer, Peter. Libertação Animal, 2004, p. 277
2 2  Ibid., p.45.
2 3  Ibid., p.47.
2 4  Ibid., p.55.
2 5  Singer, Peter. Libertação Animal, 2004, p.58.
2 6  Singer, Peter.Libertação Animal, 2004, p. 77.
2 7  Id., Ética Prática, 1998, p. 77-78.
2 8  Regan, Tom apud FELIPE, Sônia T. Por Uma Questão de Princípios: Alcance e Limites da Ética de Peter Singer
em Defesa dos Animais, 2003, p. 192.
2 9  Ibid., p. 185- 186.
3 0  Singer, Peter. Libertação Animal, 2004, p. 243.

Referências
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Defesa dos Animais.Florianópolis: Fundação Boiteux, 2003.
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