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As 'ilogicidades' do Zoológico de Varsóvia - parte final

22 de fevereiro de 2010
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Tal como mencionado, além da absurda ideologia de dominação e supremacia racial, o nazismo entre outros objetivos, aspirava recriar o mundo natural da Alemanha, por meio de sua pretensa limpeza, refinamento e aperfeiçoamento. O que impressiona é que esse é justamente o objetivo de todos os zoológicos mundo afora: recriar o mundo natural de forma contida, pretensamente limpa, refinada, aperfeiçoada e, sobretudo, enjaulada. Ontologicamente, a ideologia da dominação nazista obedece à mesma lógica, ao mesmo odioso padrão quando nos deparamos com a realidade de outros seres vivos aprisionados e explorados para o entretenimento humano.

Para tentar disfarçar o jardim zoológico como algo que os soldados nazistas desejassem manter intacto, além da manutenção e doação de animais valorados por Heck, Jan e sua mulher resolveram iniciar uma grande suinocultura nos prédios do decrépito zoo. No final do inverno, começaram a receber as “remessas” de porcas, e em março de 1940 teve início a criação, “alimentada, sobretudo, com sobras doadas por restaurantes e hospitais, e também com o lixo que Jan recolhia no Gueto” (op. cit., p. 87). Sem dúvida era uma grande ironia criar animais cujo consumo era um tabu por parte dos judeus. Mais irônico ainda era o codinome “Francisco”, utilizado por Jan, em evidente homenagem a São Francisco de Assis, padroeiro dos animais. Num dia de primavera, provavelmente imbuído desse ideal missionário, “levou para a casa um porquinho recém-nascido, cuja mãe acabara de ser abatida, achando que Rys poderia gostar dele como animal de estimação” (op. cit. p. 87). Certo dia, alguns soldados alemães viram o porco brincando e o arrastaram, aos guinchos, para ser morto. Não bastasse a criação de suínos, posteriormente implantou-se no zoológico uma fazenda de criação de animais para aproveitamento de peles.

É bastante usual que pessoas que lidam com zoológicos, circos, rodeios, entre outras instâncias de exploração animal, se vejam como numa espécie de missão redentora e realmente acreditem que estejam tratando bem “seus” animais e que se não fosse por eles o seu destino seria incerto. Talvez essa seja uma das expressões mais bizarras e flagrantes do fenômeno do autoengano. A preocupação com a esfera de interesses mais fundamentais dos animais nunca é colocada em questão. Na obra em comento isso fica bastante claro.

Alguns relatos são também bastante paradoxais. Ackerman afirma que era fato comum “aparecerem soldados alemães para atirar nos bandos de gralhas que enchiam o céu feito cinza, antes de pousarem nas árvores. Quando eles iam embora, Antonina saía furtivamente e recolhia os corpos, os quais limpava e cozinhava, preparando um patê que seus convivas presumiam ser de faisão, uma iguaria polonesa. Certa vez, quando as senhoras elogiaram essa conserva excelente, Antonina riu consigo mesma: ‘Por que estragar o apetite delas com meros detalhes da denominação zoológica’?” (op. cit., p. 107).
Os animais não foram feitos para serem instrumentos de nossas vontades e desígnios. A história do Zoológico de Varsóvia, nesse sentido, é bastante ilustrativa para demonstrar a realidade de pessoas que, se de um lado praticaram o bem, ao acolherem judeus perseguidos pelo regime nazista, mantinham, de outro, a mesma estrutura de dominação para com outros seres vivos. O paralelo é evidente e marcante. Animais de zoológicos são prisioneiros, são escravos tal qual, infelizmente, o foram os judeus, ciganos, negros, e membros de outras etnias e minorias. Como se falou, a dominação obedece à mesma lógica e ao mesmo padrão em ambos os casos.

Em zoológicos, animais se comportam de maneira absolutamente artificial e diversa do ambiente natural. Só o fato do confinamento impõe restrições inimagináveis. Quando presenciamos os animais nessas condições estamos vendo a sombra do que um dia foi aquele animal no ambiente natural, um verdadeiro fantasma, uma capa amorfa de uma vida outrora pulsante. Tal como afirma Nina Rosa, “nos zoológicos, vemos um arremedo triste de animais deprimidos e solitários, expostos à curiosidade humana, sem entender o que estão fazendo ali”. Se lutamos por direitos subjetivos para animais, devemos nos posicionar contrariamente a essa realidade e à perpetuação desse tipo de instituição. Nela, humanos e não humanos estão permanentemente comprometidos com a escravidão.

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