EnglishEspañolPortuguês

Os animais e a questão da alteridade

11 de fevereiro de 2010
5 min. de leitura
A-
A+

 Entrevista com Sandro de Souza Ferreira

Sandro de Souza Ferreira é formado em direito pela Unisinos, Promotor de Justiça em Novo Hamburgo, professor de direito ambiental e de direito penal na FEEVALE. Atualmente cursa mestrado em filosofia na Unisinos. Sua dissertação, que foi defendida no dia 24 de agosto de 2006 leva o título O próximo de Kierkegaard, o outro de Lévinas e a condição animal. . Ferreira concedeu entrevista à IHU On-Line, por e-mail. Confira, a seguir, trechos da entrevista.

IHU On-Line-  Como os conceitos de Próximo, de Kierkegaard, e de Outro, de Lévinas, podem ser pensados em relação à condição animal?

Sandro Ferreira– A ética pensada a partir da alteridade, na qual a responsabilidade assume o papel primordial, inclusive em face da liberdade, pode apresentar-se como um bom caminho. É nesse contexto que sobressaem os nomes de Kierkegaard e de Lévinas, filósofos que pensaram a alteridade e a responsabilidade de formas inovadoras.

A ética da alteridade

 Kierkegaard e Lévinas pensaram a ética a partir da alteridade. E a responsabilidade dela decorrente, quer assuma o nome de renúncia de si, quer assuma o nome de substituição, não encontra limites. A vontade e a autonomia cedem ante a presença heteronômica de uma alteridade que não coincide com o Eu. No encontro é despertado o amor – para Kierkegaard – ou o desejo metafísico – para Lévinas –, ambos marcados pela insaciabilidade, pela infinitude e impensáveis na ordem da economia. Nem Kierkegaard nem Lévinas expuseram, diretamente, uma ética endereçada aos animais. Em que pese o silêncio de Kierkegaard e de Lévinas, a ética da alteridade, tal como por eles pensada, pode, entretanto, apresentar-se como uma boa perspectiva de encaminhamento do debate acerca da condição animal. Caso se entenda que o perfeccionismo de Aristóteles e de Tomás de Aquino – ainda que relido e com o acréscimo de uma renovada reta razão – não possa dar conta dos intrincados problemas que cercam nossas relações com os animais – nem sempre assim tão edificantes – e caso se entenda que as vozes de Singer e de Regan, por vezes, pareçam ceder ante as fortes objeções que lhes são opostas, Kierkegaard e Lévinas apresentam-se como alternativas plausíveis de diálogo. Kierkegaard fala que a forma mais desinteressada de amar é recordar uma pessoa falecida. O morto nada exige e, em relação a ele, não se pode esperar qualquer retribuição. Se Kierkegaard estiver certo, amar um animal pode ser a segunda forma mais desinteressada de amar.

IHU On-Line– É possível compatibilizar ética animal e alimentação para uma população mundial em constante crescimento?

Sandro Ferreira– Não sei se é possível essa compatibilização. Peter Singer e Tom Regam sugerem que sim. O fato é que, mesmo as superestruturas que utilizam animais como fonte de geração de proteínas não dão conta, atualmente, de alcançar alimentos a todas as pessoas. E mesmo que a criação de animais em escala industrial fosse capaz de cumprir esse mister, permaneceria problemática a questão acerca da eticidade dessa solução.

IHU On-Line– Do ponto de vista jurídico, quais são os direitos dos animais Quais foram as mudanças e os progressos pelos quais passou a legislação nos últimos anos?

Sandro Ferreira– Os animais, atualmente, são vistos com bens passíveis de apropriação, de comercialização e de abate não-criminal. Não há ilicitude – exceto quando a morte de um animal implicar em significativo dano ao meio ambiente – em quitar a vida de um animal. Existem apenas leis que vedam a prática de atos cruéis contra os animais, mas que não trazem qualquer garantia contra uma possível quitação não-criminal.

Nosso direito permanece vinculado às estruturas do contratualismo e o que estabelece o momento em que alguém passa a ser titular de direitos é a noção de sujeito. E os animais não são sujeitos, não são sujeitos de direitos. A tradição filosófica sempre esteve indissoluvelmente ligada – embora nem sempre o reconhecesse – à dificuldade de definir a vida. Essa dificuldade, paradoxalmente, fez o indefinível acabar por ser “incessantemente articulado e dividido”. A condição animal é subtraída – ou expulsa – do interior do homem como condição de “possibilidade de se estabelecer uma oposição entre o homem e os demais viventes e, ao mesmo tempo, de organizar a complexa economia das relações entre os homens e os animais”. Essa cesura entre o humano e o animal se estabelece, conclui Agamben, “fundamentalmente no interior do homem, que sempre foi pensado como a articulação e a conjunção de um corpo e uma alma, de um vivente e de um logos, de um elemento natural e de um elemento sobrenatural”.

Quando um animal é levado à morte, assim, não se fala, propriamente, em nosso direito, em assassinato. Derrida situa essa exclusão no que chama de carnofalogocentrismo. Há apenas “necessidade, desejo, autorização ou justificativa para levar à morte”. E, para Derrida, o carnofalogocentrismo está ligado à “instituição violenta do quem como sujeito”. E o sujeito é o sujeito viril, o sujeito que “aceita o sacrífico e come a carne”; “o chef – inclusive chef de Estado – deve ser um comedor de carne, para ser, inclusive, simbolicamente comido por si mesmo”.

A justiça em relação aos animais, portanto, passaria pela desconstrução da estrutura carnofalogocêntrica, pois enquanto ela é mantida e justificada – com força de lei – se irá sempre “reconstruir sobre o nome de sujeito, na verdade, sob o nome de Dasein, uma identidade delimitada ilegitimamente e que, entretanto, goza da autoridade de direitos – e em nome de um tipo especial de direitos”.

Fonte: UNISINOS

Você viu?

Ir para o topo