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Sobre o raciocínio ético: a forma (Parte 1)

5 de fevereiro de 2010
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Nas colunas anteriores, vimos que a existência de um lugar para a razão na ética faz com que esta deixe de ser relativa, subjetiva ou meramente emocional. Contudo, não falamos nada sobre como a razão pode ajudar a conhecermos o conteúdo do que é o correto, o dever, o justo, etc. Muito comumente é perguntado: “mas, a razão também não pode ser usada para fazer o mal?”. Pretendo resumir nessa coluna algumas características necessárias para que se possa dizer que um raciocínio é ético (em oposição ao raciocínio não-ético: instrumental ou prudencial, por exemplo). A partir desses critérios, poderemos ver como é possível colocar a ética em termos objetivos. Não pretendo aqui listar todos os critérios, mas somente os principais. Portanto, a lista permanece em aberto para o eventual acréscimo de critérios que possam refinar a forma do raciocínio. Vale lembrar que todos os critérios listados são necessários (ou seja, a decisão, para ser ética, não basta que cumpra apenas um ou alguns deles; precisa cumprir todos).

Antes de listarmos os critérios é importante falar sobre dois conceitos que estarão em quase todas as discussões da ética: agente moral e paciente moral. Nem todos os autores definem esses conceitos da mesma forma, e eu vou adotar aqui uma definição particular que permite distinguir alguns aspectos importantes. Os agentes morais são aqueles indivíduos a quem cabe cumprir o que a ética prescreve. Por possuírem entendimento racional dos critérios a seguir, podem ser responsabilizados pelo que escolhem. Os humanos adultos normais, pelo menos, se enquadram nessa categoria. Daí vem a idéia de aplaudir alguém que fez algo correto ou repreender alguém que fez algo errado. Pacientes morais, por outro lado, por não possuírem compreensão intelectual dos critérios a seguir, não podem ser responsabilizados pelas suas ações (nem aplaudidos nem culpados). Contudo, podem sofrer conseqüências benéficas ou maléficas de acordo com o que os afeta (por exemplo, decisões dos agentes morais). Portanto, se os agentes morais são aqueles que devem se preocupar com suas decisões, os pacientes morais são aqueles com quem os agentes devem se preocupar quando tomam as decisões. Estão no grupo dos pacientes morais, humanos muito novos, com determinadas doenças mentais, a maioria dos animais não-humanos, etc.

Vale lembrar também que todo aquele que está em condições de receber uma consequência benéfica ou maléfica da decisão dos agentes é um paciente da decisão, mesmo quando esse paciente também tenha capacidade para a agência moral (quando é um humano adulto normal, por exemplo). O inverso também é verdadeiro: pacientes morais, embora não possam ser responsabilizados pelo que fazem, podem afetar maléfica ou beneficamente outros indivíduos com o que fazem. Por exemplo, humanos adultos (agentes) e animais (pacientes) podem ser afetados por uma enchente, ou pela ação de uma criança humana que brinca com uma arma de verdade. Ainda que não faça sentido responsabilizar a natureza ou a criança pelo dano que possa causar a outros, isso não significa que, se há um agente moral que pode intervir no desenrolar dos acontecimentos, ele não deve fazer nada só porque não é um acontecimento que provém da ação de seres responsáveis. O agente moral tem a capacidade de deliberar se deve intervir ou não, então ele é responsável pelo que escolhe, mesmo quando o mal não foi primeiramente causado por ele (mas pode ter continuidade em sua omissão).

Vamos então às exigências para que estão implicadas em aceitar que a razão possui um papel a desepenhar no debate ético:

1 – Deve ser compreendido por todos os seres racionais: Se o que procuramos é um critério objetivo, então obviamente ele precisa ser um que possa ser compreendido e aceito por qualquer agente moral (qualquer ser dotado de razão). Então, é sempre lícito perguntar: isso poderia ser aceito por qualquer ser capaz de razão independentemente de crença religiosa, cultura e época? Note que isso é diferente de dizer que em lugares e épocas diferentes existem problemas diferentes. A questão aqui é saber se exatamente o mesmo problema, nas mesmas circunstâncias, caso aparecesse em outra época ou lugar, deveria ser resolvido desta maneira.

2 – Racionalidade:
O critério anterior não indica que todos os agentes morais irão, de fato, compreender e aceitar o princípio. Significa apenas que o princípio poderia ser compreendido e aceito por todo e qualquer ser racional, independentemente de época e lugar. Como saberemos isso? Por haver uma argumentação consistente que lhe de apoio, que ela mesma não viole as leis da lógica, não caia em falácias. Por exemplo, não pode haver contradição: uma mesma decisão, nas mesmas circunstâncias, não pode ser certa e errada ao mesmo tempo. Vimos nas colunas anteriores que, por exemplo, o subjetivismo cometem esse tipo de falácia (pois a mesma decisão pode ser certa e errada ao mesmo tempo, nas mesmas circuntâncias, dependendo de quem decide).

Essa exigência também se caracteriza pelo fato do princípio ter de estar embasado numa razão, um argumento, uma justificativa que possa ser aceita por um ser racional. É essa razão que servirá como fundamento das regras. Por exemplo, a regra de que é errado matar pode estar fundada na razão de que é ruim perder uma vida que proporciona desfrute (algo que pode ser compreendido por qualquer ser racional). Exceções a essa regra podem surgir quando a razão que dava sustentação à regra não se apresenta em determinado caso (como é o caso quando um paciente terminal incurável solicita eutanásia, por exemplo).

3 – Deve poder ser universalizada:
O critério da universalidade implica que, ao tomarmos uma decisão, precisamos nos imaginar no lugar de todos aqueles envolvidos, afim de decidir qual, dentre as opções disponíveis, é realmente a melhor (uma que poderia ser aceita, independentemente da posição que fosse ocupada). Isso implica que algumas decisões podem ser contraditórias, e, com isso, eliminarem a possibilidade de serem éticas.  Por exemplo, se uma determinada busca pelo prazer ou liberdade é alcançada com o impedimento da busca do prazer ou liberdade de outros, então tal regra não pode ser universalizada, pois é ela mesma um impedimento ao que propõe.

A exigência de universalidade mostra que é possível querermos certas coisas apenas quando estamos ocupando uma posição privilegiada da situação, mas não a desejaríamos que todos a cumprissem o tempo todo, independentemente da posição que ocupássemos. É possível que eu deseje que seja correto o mais forte oprimir o mais fraco quando estou na posição de opressor, mas, basta imaginar situação semelhante, só que na posição de oprimido, ou, sem participar da situação, para logo perceber que é uma situação injusta. A exigência de universalidade se coloca para todo juízo que pretenda ser ético porque é um juízo tal que é recomendado para o cumprimento de todos; portanto, não é possível recomendar algo que só podemos aceitar quando estamos numa das posições e não em outras.

4 – Evitar apelos retóricos: Se queremos descobrir a verdade em ética, precisamos tomar cuidado para não nos deixar levar por apelos retóricos. Exemplos clássicos desse uso são, diante do caso de alguém que assassinou os seus pais, dizer “tenham pena desse pobre órfão!”, ou “sabe quem falou que isso é certo? Jesus. Portanto, é certo”, ou ainda “Hitler foi um homem mau e era vegetariano; logo, ser vegetariano é errado”. Muitas pessoas pensam que os argumentos existem como um mero artifício para convencer os outros; já vimos na avaliação do emotivismo (coluna anterior) que, se isso estivesse correto, qualquer motivo que convencesse alguém seria uma razão ética válida, o que não é verdade. Isso não significa que as emoções não desempenhem um papel nas questões éticas; significa apenas que uma emoção que temos pode ser tanto uma resposta moral adequada quanto um preconceito, e não podemos descobrir qual das duas coisas ela é simplesmente por ser uma emoção forte.

Na próxima coluna, continuaremos com a lista de exigências formais.

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