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Conto de Simone Barcelos Gutkoski

2 de fevereiro de 2010
7 min. de leitura
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 Deolinda
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Vida de Cão

Simone Barcelos Gutkoski*

14h32m
“Canil Municipal, bom dia.”
“É daí que recolhem os cães ? Tem um cão com a pata toda comida na
frente da minha casa, acho que é bicheira. Apareceu faz uns três dias
e não levanta mais… Manda a carrocinha logo, por favor !”
“… o seu pedido é uma emergência e vai ser passado pelo rádio para
que o recolhimento do animal seja feito ainda pela manhã.”
“Ai que bom, moça. A gente sofre vendo o bichinho sofrer, né ?! O que
é que vocês fazem com eles depois, hein ? Sabão ?”

15h17min
“Central chamando Apreensão!!” “Apreensão na escuta.”
“Tem um cão atropelado na Rua das Acácias. O animal está na calçada,
ao lado do mercado Santos. Parece que está com a pata quebrada.”
“Ok. Entendido.”

17h
“Apreensão chamando Central !!”
“Central na escuta!”
“Avisa a veterinária que tem dois cães para eutanásia.”
“Ok.

Na seringa, o sangue do animal misturava-se ao líquido letal incolor,
espalhando-se como um manto vermelho. Ora era de um vermelho vivo –
sangue de cão forte. Ora de uma cor pálida, alaranjanda – cão fraco,
doente. Já perdera a conta de quantas já havia feito – talvez umas
mil. A do dia era a 34ª – trigésima quarta. Sabia porque anotava cada
uma na planilha de eutanásias: canino ou felino; macho ou fêmea;
filhote, adulto ou idoso; apreensão, doação, maternidade ou cela
coletiva. Gostava de anotar no espaço em branco uma observação: cadela
prenhe, tumor de Sticker, cinomose, atropelado. Ajudava a dividir a
culpa. Afinal, papel aceita tudo mesmo. Os humanos têm direito a
atestado de óbito individualizado, padrão internacional. Os cães não.
Seu ritual funerário é o transporte até um aterro sanitário onde
decompõem-se junto às sobras da civilização urbana, enriquecendo o
denso chorúmen.

A estas alturas já não sabia mais qual a denominação certa para a
eliminação dos animais: eutanásia, sacrifício, execução, extermínio ou
destruição. A literatura internacional dos livros e papers a deixava
mais confusa ainda: elimination, killing, destruction, euthanasia,
putting to sleep, putting down. Gostava de dizer eutanásia porque era
uma palavra forte, chamava a atenção das pessoas, provocava. Palavra
dolorida que já estava incorporada na rotina de trabalho, no seu
dia-a-dia. Trabalho que ia muito além do sacrifício braçal.
Consumia-lhe horas de brainstorm – monólogos intermináveis para tentar
entender a aceitar aquela loucura banalizada – e horas de sono. Às
vezes sonhava com uma pilha de cães mortos ou acordava ouvindo
latidos. Na hora de fazer eutanásias, procurava ser a melhor possível
para que fosse rápido e indolor para o animal. A vestimenta branca que
utilizava, avental, gorro, máscara e luvas, além de ser um ritual
médico-sanitário, despersonificava-a fazendo-lhe parecer uma máquina
de injetar. Na hora de fazer, passava muita coisa pela cabeça. Teorias
sobre a morte e a dor surgiam. Sabia que cada animal comprado nos
anúncios dos classificados ou nas pets significava uma adoção a menos
e uma eutanásia a mais. Na hora de fazer, sentia raiva das pessoas.
Dos donos que entregavam os animais porque estavam velhos. Das pessoas
que abandonavam na rua animais que tiveram uma casa, vasilha com água
limpa e ração. O padrão racial não era impedimento para que os mesmos
fossem descartados pelos donos no Canil Municipal – posto de entrega
voluntária dos animais não mais desejados. Poodles branquinhos e
cinzas, cocker caramelo, fila tigrado, rotweiller, pastor, husky e até
akita ! Se não fossem adotados, em poucos dias adoeciam pelo ambiente
infecto e pela depressão que os acometia. Alguns donos diziam: “ele
apareceu lá em casa anteontem”. Ia ver, era um cão bem tratado, pêlo
brilhoso e abanava a cauda para o dono mentiroso. Os sinais caninos
não mentem. Outros donos confessavam: “comprei ele, mas não deu certo.
Ele late muito e morde o sofá.” Para conveniência e praticidade dos
humanos, as teorias comportamentais caninas e felinas eram ignoradas
ou ridicularizadas. No cárcere canino, cada cão era uma história de
vida a ser eliminada com uma injeção instantânea. Só nas celas
coletivas, mais de 200 detentos caninos aguardando – sem saber – o dia
em que partiriam para outra esfera. Sim, deveria existir no além do
além um mundo menos cruel.

Uma das que mais lhe marcara foi a de um cãozinho atropelado. Era
sexta-feira e como restavam pedidos de urgências não atendidos, fez-se
um plantão noturno. Anoiteceu e na espera do veículo chegar, pensava
nas tarefas domésticas. O tempo não passava e o estômago lhe doía pela
fome. Já havia preparado todo o material: seringas, anestésicos,
tranqüilizantes, mordaças. Quando a pick-up chegou, viu o animal no
fundo da gaiola. Encolhido em sua dor, manifestava sua agonia através
de um choro que parecia de gente. Teve vontade de gritar, sair
correndo e levá-lo para um hospital. Mas as circunstâncias pediam
outra atitude. Eu = boa; Tanathos – morte: morte boa. Já havia
aprendido que para muitos animais a morte é a cura para a dor. Naquela
tarde, ainda aguardava a pick-up trazer dois cães para eutanásia. Já
passava das cinco horas quando acompanhou o atropelado ser retirado da
gaiola. O que de pior ainda poderia acontecer ao animal depois de ter
sido alvo de um ser dito racional que fez de seu carro uma extensão do
seu corpo e fúria ? E ser transportado ferido no camburão com outros
caninos apreendidos, classificados como perigosos e ameaçadores à
saúde da coletividade ? Ao entrar na sala de execução, o animal viu os
cães mortos no chão, empilhados. Estava atento ao ambiente estranho,
percebido pelos sons e cheiros. O sangue e os excrementos na mesa ao
lado eram o registro da vítima anterior: cadela idosa, medo e dor.
Sinais da comunicação canina. “Será que ela foi atropelada como eu ?”,
deve ter pensado. Já com a boca devidamente amordaçada pelo
funcionário, observava com os olhos assustados uma moça que vinha em
sua direção. Sentiu uma picada no glúteo e começara a adormecer.

Circular entre os cadáveres e os seus excrementos, o cheiro fétido do
ambiente e os latidos ensurdecedores exigiam-lhe um esforço em dobro.
Não eram suficientes para tirar a sua concentração. Enquanto colocava
o álcool iodado que ia se espalhando nos pêlos da pata dianteira até
tocar a pele, a veterinária notou que o cão possuía no pescoço um
sinal de sua desconhecida história: uma coleira de couro encardida. Os
carrapatos minúsculos que circulavam entre os pêlos, eram os atores
secundários da saga canina. Apertou-lhe a pata como um pedido de
desculpa e um sinal de despedida. Os auxiliares aguardavam atentos o
momento esperado. Garrote feito, veia saltada – punção certeira.
Sentia perfeitamente a agulha perfurar o vaso. O sangue veio bem
volumoso. Injetou devagar o líquido, enquanto observava o animal
desfalecer. Em poucos instantes, que mais pareciam uma eternidade, o
ser canino transformava-se em cadáver… Constatou a ausência de
reflexo ocular e de batimentos cardíacos. Óbito confirmado. Dentro do
avental branco, uma criatura anestesiada e dessensibilizada. Sentia
que ao matar, também morria. Acondicionava a seringa utilizada no
descartex amarelo. Mas onde despejar aquele sentimento de culpa,
frustração e tristeza ? Descobrira que existe um tipo de lágrima que
escorre por dentro, acumulando-se nos interstícios do corpo.

Enquanto percebia sua cervical dura e os dentes cerrados, anotava na
planilha de eutanásias: cão macho, adulto, atropelado com fratura no
membro posterior esquerdo, posterior insensível. Queria escrever algo
mais para individualizar e humanizar o seu procedimento, mas
faltava-lhe a palavra. Não sabia que o cão sacrificado um dia tivera
um dono e um nome: era chamado por Valente.

Simone Barcelos Gutkoski trabalhou como veterinária do Centro de
Zoonoses de Porto Alegre de julho de 2000 até o final de 2001.
Em 2002, o conto “Vida de Cão” recebeu o Prêmio Revelação Literária Nova
Prova 20 Anos.

fonte: http://www.luzanimal.org/artigos/artigo24.htm

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