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Porca e seus oito filhotes fogem de criadouro

7 de dezembro de 2009
3 min. de leitura
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Por Ana Cardilho
em colaboração para a ANDA

Ao todo somos nove. Eu, meus sete irmãos e a mamãe. Sou o caçula, o menorzinho de todos e, claro, o mais mimado. A vida parecia boa. Nós dormíamos bem juntinhos, a mamãe contando histórias, mostrando estrelas e sempre com o corpo muito quente, perto dos nossos. Minha história preferida era a dos três porquinhos que enganavam o lobo mau.

De manhã, o dia começava com o sol iluminando nosso cantinho. Não demorava e logo chegava a comida. Uns moços traziam baldes cheios de legumes, farelos e frutas. Muito abacaxi. Eu gostava do sabor daquelas rodelas amarelas que davam cócegas no céu da boca. Eu achava esses moços tão bonzinhos, mas meu irmão mais velho e a mamãe sempre avisavam que não era para eu me enganar. Não entendia. Se eles nos davam comida e um lugar seguro para dormir, por que eles não seriam pessoas do bem? A pergunta ficava no ar, meu irmão saía de perto e ia focinhar, irado, poças de lama, e mamãe apenas suspirava meio triste, pensativa.

O tempo passou, eu e meus irmãos estávamos bem gordinhos e mamãe cada vez mais preocupada e silenciosa. Até que num final de tarde, quando estávamos cochilando depois de uma farta refeição ouvimos uma conversa: os moços da comida combinavam que no dia seguinte, bem cedo, eles nos levariam para um tal de abate. Eu não sabia o que essa palavra poderia significar, mas entrei em pânico por conta do pânico que minha mãe sentiu. Ela começou a passar mal, a gritar, e se debatia contra a cerca de madeira. Os moços da comida davam risadas do sofrimento da mamãe e disseram que ela seria a primeira a ir para o matadouro e virar salsicha. Matadouro eu entendi, apesar de minha pouca idade. Salsicha, eu deduzi. Seríamos todos mortos. Uma família dizimada. E não havia nada que pudéssemos fazer para mudar o objetivo de nossos criadores.

Nesse momento entendi por que, afinal, eles não eram pessoas boas. Na verdade, só nos davam comida porque queriam que engordássemos muito. Só nos davam um lugar  para que não ficássemos doentes estragando os lucros que teriam com nossas carnes, nosso sangue, gordura e ossos.

Naquela noite todos choramos juntos, horas seguidas. Até que meu irmão mais velho, cansado de chafurdar em suas poças de lama, decretou: tinha achado um jeito. Ele focinhou tanto, mas tanto e com tamanha energia, que havia conseguido fazer um túnel que saía de nosso chiqueiro e ia dar lá fora, rumo à nossa liberdade. Passamos um a um, e mamãe foi a que mais teve dificuldade para conseguir fugir, por ser a maior. Mesmo assim, ela forçou, forçou e forçou, incentivada por nossos olhinhos ansiosos esperando por ela do lado de fora da nossa casa que era, no fundo, uma prisão.

Enfim, livres.

Mamãe correndo na frente. Nós todos atrás. Horas de estrada, sem parar, sem respirar, sem pensar. Apenas corríamos, juntos, desesperados. Até que fomos vistos, até que viramos notícia e uma pessoa boa de uma entidade de proteção nos acolheu. Escapamos da morte. Hoje, não somos salsicha. Somos seres que respiram, que sentem, que têm direito à vida tanto quanto qualquer outro ser.

Hoje, somos os nove porquinhos que venceram os homens maus. A mamãe pode nos contar histórias, podemos ver as estrelas, e quando a comida chega não sentimos mais medo. Apenas paz e felicidade. Aqui ninguém come salsicha!

Ana Cardilho é escritora e jornalista. Com um olho na realidade e outro na prosa imaginária conta com mais de 20 anos de experiência em rádio e TV, tendo feito reportagens, edição e fechamento de telejornais e programas, e é ficcionista.

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