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Traçando o limite

6 de setembro de 2009
10 min. de leitura
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No último domingo, 27 de setembro de 2009, a Folha de S. Paulo publicou matéria de duas páginas sobre abate humanitário e bem-estar animal [1]. A matéria enfatizava as restrições europeias à indústria brasileira da carne. Procurando proteger seu mercado interno, a União Europeia levanta uma série de barreiras à exportação de carne do Brasil. Primeiro, as condições sanitárias; depois, a observância de padrões éticos no manejo dos animais a serem abatidos. Mais um capítulo desse folhetim do comércio internacional está para ser redigido a partir do dia 20 de outubro deste ano, quando auditores europeus virão pessoalmente inspecionar os métodos e os padrões éticos da indústria de carne suína. Se aprovarem o que virem, o Brasil – que já é o maior exportador de carne do mundo – terá, enfim, acesso ao cobiçado mercado da UE.

A descrição contida na matéria sobre o método “humanitário” de abate de um porco é eloquente. A indiferença que nós, humanos, manifestamos a esse modelo industrial de matar é kafkiana (Kafka, por sinal, tendo sido um vegetariano). Mais kafkiano, porém, é o papel que pessoas que se autodenominam defensoras dos animais cumprem nesse sistema. A matéria comemora que a “proverbial desconfiança que sempre existiu entre as entidades de proteção e a indústria de proteína animal” finalmente foi rompida. Sob os auspícios da Sociedade Mundial de Proteção Animal (WSPA), todo o sistema de abate humanitário está sendo supervisionado. A WSPA é o que se conhece no meio como uma entidade bem-estarista: ela se propõe a promover o bem-estar de animais usados por seres humanos, não em combater o uso em si. Como cita a própria matéria, uma veterinária ligada à entidade diz que “o animal pode servir ao homem, desde que se dê qualidade de vida a ele”.  E qual é exatamente o fundamento racional para afirmar que o animal pode “servir” ao ser humano? O resultado prático dessa concepção, que vigora há dois séculos no ocidente, pode ser deduzido pela contribuição inestimável que a WSPA está dando para que, brevemente, o Brasil amplie o número de animais gerados e abatidos na indústria da carne. Trocando em miúdos (uma expressão, por sinal, tristemente apropriada): a WSPA, autodenominada defensora dos animais, está contribuindo para que mais animais venham a ser mortos nos anos vindouros. Em nome do bem-estar, ela contribui para o aumento do número de indivíduos que sofrem e, portanto, contribui para a maximização do sofrimento, não para sua redução, que é o que afirma.

A justificativa para tamanha esquizofrenia moral, também digna de Orwell, todos nós já conhecemos. A certa altura da matéria, uma veterinária da WSPA explica:

“Nossa missão é intervir na realidade. E a realidade é que o abate não acabará amanhã. Há projeções que mostram que a tendência, ao contrário, é de aumento do consumo. Que seja, pelo menos, com redução de sofrimento e dor.”

Pela lógica da WSPA, se não podemos acabar com o assassinato amanhã, devemos regular a forma e as circunstâncias em que as pessoas são mortas. Se não podemos acabar com o estupro… bem, vamos criar uma legislação para determinar até onde o estupro é aceitável. Pela lógica da WSPA, a pena de morte não é errada. Basta dar uma injeção letal…

A matéria, porém, reconhece a existência de outro tipo de defensores dos animais: os autoproclamados abolicionistas, para quem o abate humanitário não soluciona o dilema ético envolvido no uso de animais para fins humanos. Os abolicionistas, grupo no qual me incluo, acreditam que a pecuária, assim como outras formas de exploração animal – como a experimentação em laboratório, a pesca, a caça, o uso de animais para tração, transporte e entretenimento (como rodeios, vaquejadas e circos) e até mesmo a apicultura e a criação de animais de estimação – devem acabar. “Mas como?”, alguém poderá perguntar, surpreso. “Isso significa que devemos ser vegetarianos!”. Sim. Vegetarianos, e algo mais. Abster-se não só da carne, mas do leite, ovo, mel e derivados desses produtos; não usar produtos testados em animais; não comprar animais de estimação; não participar de qualquer atividade que faça uso de animais. Já existe um nome para isso: VEGANISMO. Cunhado por um inglês, no século passado, insatisfeito com o mau uso do termo “vegetariano” e consciente de que só ser vegetariano não resolve o problema, pois a comida é apenas um dos motivos pelos quais tratamos animais como objeto, exploramos e matamos.

Não há nada de irreal ou inviável nessa ideia. Se você ficou interessado, sugiro que faça uma pesquisa pela internet, onde há vários websites nos quais você pode aprender um pouco mais sobre como ser vegano é fácil e viável. É claro, a dimensão da exploração é tamanha que muitas vezes usamos produtos que implicam o sofrimento e morte de animais, mesmo que não queiramos. Até mesmo a comida vegetariana pode vir infestada de pesticidas que provocam a morte de insetos e pequenos mamíferos. Porém, à medida que o movimento se expande, maiores são as condições para eliminar completamente a exploração animal e seus subprodutos. Mesmo os pesticidas e o adubo de origem animal podem ser eliminados da agricultura, especialmente se tirarmos a pecuária do mapa. A pecuária é, provavelmente, a indústria mais ineficiente, poluente, irracional e improdutiva do mundo. Ela gera mais gases do efeito estufa que toda a emissão advinda de automóveis, polui os rios e lençóis freáticos – informações que você não irão encontrar nos websites de grandes ONGs ecológicas, para as quais  falar de veganismo é um tanto impopular e, por conseguinte, risco de ver secarem as fontes de financiamento. A pecuária produz pouca quantidade de alimento, e para isso requer um vasto território – mesmo no caso dos animais criados em confinamento. Ela emprega pouco, e seus lucros beneficiam poucos industriais. A própria carne, como alimento, é desnecessária e, menos que benefícios, implica riscos à saúde de quem a consome com regularidade. Faz algum sentido? A única razão para isso persistir é o gosto pela carne, um vestígio dos primórdios da humanidade, como dizem alguns, mas que, longe de sinalizar a evolução da espécie, é um sinal de atavismo: um hábito arcaico, mantido apenas pela tradição, e que de fato entrava de várias maneiras a “evolução” humana – evolução da consciência ética e ambiental, além do manejo racional da terra e dos recursos naturais que podem definir o próprio destino das sociedades humanas.

Nós, abolicionistas e veganos, intervimos na realidade, ao contrário do que sugere a veterinária da WSPA. Enquanto os bem-estaristas contribuem para que os números aumentem, nós contribuímos para que eles diminuam. A WSPA prosperou por meio de seu discurso bem-estarista. É claro, então, que ela não irá fazer autocrítica e reconsiderar a incoerência absurda de seu discurso. É verdade que a WSPA interfere na realidade – anestesiando animais e consciências. Seu discurso, porém, está mais confortável na esfera do surreal. Um triste quadro digno de Salvador Dalí. (Curioso destacar que menciono três gênios nesse ensaio. Mas são os cenários lúgubres que eles imaginaram que comparo às ideias bem-estaristas e o mundo que delas resulta.)

Uma funcionária do abatedouro coberto na matéria afirma: “Não está escrito em lugar nenhum que um animal tenha de sofrer para morrer”.

Então eu me pergunto: onde exatamente está escrito que ele deve morrer para servir a humanos? Na Bíblia, dirão alguns. Não estou muito interessado em debate teológico, mas a Bíblia também respalda a escravidão, condena à morte adúlteros e homens que se deitam com mulheres “impuras” (isto é, menstruadas), dentre outras normas que os cristãos modernos não fazem muita questão de respeitar. Seja onde for que está escrito que animais devem servir aos humanos, isso foi escrito pelos próprios seres humanos, certamente não um observador isento, e muito menos a partir do ponto de vista do indivíduo que sofre o dano (o “paciente moral”, no jargão da filosofia), mas do agente que o inflige. Por muito tempo as discussões sobre ética giraram em torno do agente moral. Hoje há virtual consenso de que a discussão ética deve priorizar o paciente moral, sob pena de tratá-lo como objeto desprovidos de interesses, fazendo prevalecer os interesses do agente e chancelando, desse modo, todo tipo de abuso – exatamente como nós fazemos em relação aos animais não humanos.

A veterinária coordenadora do projeto de abate humanitário da WSPA lança um desafio aos que desconfiam de seus propósitos: “Se você soubesse que vai morrer hoje, você preferiria morrer sob tortura, agonizando, ou calmamente, sem dor?”

Maravilhosa peça de retórica que esconde mais do que ilumina. Morrer e morrer sem dor são as únicas possibilidades? Não me parece muito auspicioso, da posição do paciente moral… Pergunto eu, então: se a esta pessoa hipotética fosse dada uma terceira opção – viver – qual seria, então, a resposta? O mesmo ocorre com os animais. Todos os animais têm interesse em continuar vivendo, e isso pode ser demonstrado por um simples mecanismo: a dor. A dor é o alerta do organismo contra situações potencialmente nocivas. Como, então, justificar a sujeição dos interesses vitais dos animais a interesses secundários do ser humano? De onde vem exatamente a ideia de que é aceitável matar um animal, mesmo que seja sem dor, eu não sei. O que sei é que essa ideia não representa nenhum avanço verdadeiro na nossa ética cotidiana e não tem qualquer justificativa ética ou racional.

Pensando bem, talvez os céticos, ainda que representantes da velha e ultrapassada visão cartesiana de que animais são máquinas incapazes de sentir, sejam mais coerentes e conscientes. Seu espanto não é fruto apenas de preconceito, mas de uma intuição – um instinto, se preferirmos – em relação à falta de lógica inerente ao pensamento bem-estarista. Você pode convencer os seres humanos a adotar práticas questionáveis através de um discurso incoerente. Até os nazistas conseguiram arrastar milhões para suas teses infundadas. Despertar consciências e promover a justiça, porém, é uma tarefa muito mais árdua. Mesmo que demore mais tempo, esse é o trabalho que deve ser feito.

O fato é que, quando estabelecemos uma meta, temos que empregar meios coerentes com o fim desejado. E nós chegamos apenas até onde nos propomos chegar, como me disse uma vez o biólogo Sérgio Greif, um dos principais abolicionistas brasileiros. Se nós defendermos o abate humanitário, não chegaremos à meta da libertação animal. Isso porque o paradigma de pensamento não foi desafiado. Se, um membro da WSPA diz que não há nada de errado em usar animais, claro que ninguém chegará, por esse meio, à conclusão de que é errado usar animais. Assim, eles nunca deixarão de ser explorados, torturados e mortos. Logo, a “intervenção na realidade” da WSPA não é, como eles dizem, para criar condições para que os animais um dia sejam realmente livres. Ela apenas legitima a absurda ideia da superioridade humana, o antropocentrismo, a ideia de que o ser humano pode “reinar” sobre todos os outros seres. Ela legitima a perpetuação da condição básica que é a que justifica todos os abusos posteriores (e, portanto, aquela que deve ser efetivamente atacada para dar fim a esses abusos): transformar os animais em propriedade dos seres humanos.

Se nós, abolicionistas, dispuséssemos dos recursos que ONGs bem-estaristas têm, hoje teríamos muito mais veganos no mundo. Mas, claro, se essas ONGs tivessem um discurso abolicionista, provavelmente não teriam esses recursos. Afinal, o sistema não entrega dinheiro para quem quer destruí-lo. Isso demonstra claramente de que lado da linha que separa defensores de animais e exploradores de animais estão aqueles que defendem medidas como o abate humanitário. Creio que não preciso encerrar esse texto com uma afirmação direta. O leitor que dispõe de raciocínio lógico entenderá a conclusão a que quero chegar.

[1]A matéria pode ser conferida nos seguintes endereços eletrônicos:

http://www1. folha.uol. com.br/fsp/ dinheiro/ fi2709200913. htm (matéria principal);
http://www1. folha.uol. com.br/fsp/ dinheiro/ fi2709200914. htm (entrevista 1);
http://www1. folha.uol. com.br/fsp/ dinheiro/ fi2709200915. htm (entrevista 2); http://www1. folha.uol. com.br/fsp/ dinheiro/ fi2709200916. htm (análise).

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