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População de araras-azuis-de-lear triplica em sete anos no sertão

22 de setembro de 2009
8 min. de leitura
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A riqueza em espécies de aves cedo fez a fama do Brasil e, ainda no tempo das grandes navegações, rendeu-lhe o apelido de Terra dos Papagaios. O título faz sentido até hoje, pois é o país com maior riqueza de espécies de psitacídeos, a família das araras, maritacas, papagaios e periquitos. Infelizmente, um outro recorde também faz parte da nossa história. O de possuir o maior percentual de espécies dessa família ameaçadas de extinção: 24% delas têm um futuro incerto devido, sobretudo, à perda de hábitat e ao tráfico.

As quatro araras-azuis genuinamente brasileiras, por exemplo, estão listadas no Apêndice I da Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Fauna e Flora Selvagem em Perigo de Extinção (CITES) que, entre outras coisas, proíbe a comercialização ou transporte desse animais sem documento especial. De uma delas – a arara-celeste (Anodorhynchus glaucus) – hoje não se tem mais notícia, nem em cativeiro. A ararinha-azul (Cyanopsitta spixii) é considerada extinta na natureza e as tentativas de salvar a espécie, com a criação em cativeiro, esbarram na resistência dos criadores particulares em ceder seus mascotes para formar os casais ideais.
Já a arara-azul-grande ou arara-una (Anodorhynchus hyacinthinus) é tida como vulnerável e sua sobrevivência depende do sucesso de projetos de conservação, como o Projeto Arara Azul, coordenado por Neiva Guedes, no Pantanal Mato-grossense. Também a arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari), listada como criticamente ameaçada, tem seu futuro atrelado tanto à fiscalização, como às intervenções conservacionistas, de melhora do hábitat e garantia de alimento e abrigo para a população em vida livre.

A descrição científica da arara-azul-de-Lear data de 1858, feita por Charles Lucien Bonaparte, sobrinho de Napoleão, a partir de um exemplar no Museu de História Natural de Paris e de uma ilustração feita pelo poeta e ilustrador britânico Edward Lear (daí o nome em sua homenagem). A informação de procedência era vaga, indicava apenas “Brasil”. Somente um século depois, o ornitólogo Helmut Sick, doutor em ciências naturais pela Universidade de Berlim, organizaria uma expedição para traçar o mapa de distribuição da espécie. A andança à procura das araras durou mais de dez anos, conforme descrito no livro Ornitologia Brasileira, do próprio Sick: “Localizamos, junto com Dante M. Teixeira e Luiz P. Gonzaga, a pátria de A. leari no Raso da Catarina, nordeste da Bahia (dezembro de 1978), o que foi realmente uma descoberta, não uma redescoberta. É a única arara da região”.

Sick não cita em seus relatos, mas Caboclo, na época com sete anos, estava lá. É assim que Eurivaldo Macedo Alves, 33 anos, é conhecido. Nasceu num povoado de Canudos – Rosário – e viveu ao pé da Serra da Toca Velha, onde o ornitólogo teve seu primeiro encontro com a arara-azul-de-lear. “Ele ficou muito contente, porque, afinal, procurava a arara há muitos anos e nunca tinha visto um bicho em liberdade”, conta. “O Sick ficou lá falando alemão o tempo todo, chamou os outros colegas, tirou foto. O gringo ficou doido”.

A descoberta dos principais dormitórios e das regiões de nidificação – entre os municípios baianos de Canudos e Jeremoabo, passando por Euclides da Cunha até Paulo Afonso – ajudou a avaliar o tamanho da população da arara-azul-de-lear. Mas também a deixou mais vulnerável ao tráfico de animais silvestres. E a espécie chegou a ser dada como extinta na natureza do final dos anos 80 até 1991, quando um bando foi localizado, dando origem a um grupo de trabalho, criado em 1992. Hoje chamado Comitê para Conservação e Manejo da Arara-azul-de-lear, o grupo coordena os planos de ação do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), além de acompanhar sua implementação.

Um dos maiores problemas e, certamente, o maior desafio é vencer o tráfico. Apanhadores de araras, como são chamados, escalam os paredões da Serra Branca e Toca Velha, capturam os filhotes e alimentam um mercado milionário de colecionadores ilegais de aves, em todo o mundo.

Em 2001, o Centro Nacional de Pesquisas para Conservação das Aves Silvestres (Cemave-Ibama) passou a coordenar as atividades de campo do Comitê e executar os projetos de responsabilidade do órgão ambiental, em conjunto com duas organizações não governamentais: a Associação Brasileira para Conservação das Aves (Proaves) e a Fundação Biodiversitas.

Da base de campo de Serra Branca, a cerca de 50 quilômetros de Jeremoabo, são desencadeadas as ações que começaram a mudar o rumo da história da arara-azul-de-lear. No período de reprodução – de novembro a março – biólogos, veterinários e técnicos madrugam todos os dias para o trabalho de monitoramento dos ninhos e para a contagem das araras. Uma espécie de censo é realizado mensal e simultaneamente nos dois principais dormitórios. Há sete anos, eles contavam apenas 170 indivíduos. Hoje já são 550 aves, uma população três vezes maior.
A veterinária Débora Malta Gomes e o biológo Bruno de Freitas Xavier estão entre os pesquisadores-guardiões. Segundo eles, uma das formas de coibir o tráfico é manter profissionais em campo. Além de sua presença física inibir os apanhadores de araras, eles estudam os hábitos e comportamento da espécie, ajudando a preencher lacunas de conhecimento e buscando soluções para os problemas de conservação.

Durante os censos, por exemplo, os pesquisadores não registram apenas o número de aves existentes, mas também observam os deslocamentos da população. Todos os meses, dois grupos de observadores se dividem entre a Serra Branca e Toca Velha e durante três dias acompanham as araras, dando preferência aos dias de lua nova, quando as araras retornam mais cedo para os paredões.

No censo final de 2004, em novembro, os observadores contaram 441 indivíduos, um número menor do que o do mês anterior, de 550 aves. “Esse resultado era esperado”, explica Débora. “Muitas araras já estavam acasaladas. É o início do período de reprodução e os casais com ninhos formados não costumam deixar os paredões”.

E se as aves não deixam as chapadas é para lá que os técnicos vão: os ninhos são monitorados para se entender o comportamento reprodutivo da arara-azul-de-lear; saber quantos casais estão com filhotes, a cada período de reprodução, e se o aumento da população está efetivamente se consumando. Rondas e fiscalização complementam as ações de censo e pesquisa, assim como a preservação e até cultivo da palmeira licuri, o principal alimento da espécie.

Mas o maior sinal de mudança está no testemunho dos habitantes locais. Quando Otávio Manuel Nolasco, nascido em Jeremoabo, comprou os 20 mil hectares da Fazenda Santa Branca, na década de 1980, não contava mais de 30 araras. Agora é mais do que o dobro. “A evolução é comprovada visualmente”, diz.
Eurivaldo, o Caboclo, criado entre os paredões da Toca Velha, em Canudos, também nunca chegou a contar mais de 35 indivíduos, na década de 1980. “Já entre 1994 e 1995 tínhamos um número de 72 aves”, garante. “A quantidade de gente pra contar era muito pouca. Não era um número exato. Mas eu contava, sempre contei e conto até hoje da mesma forma e acredito que a população de araras cresceu”.

Caboclo, Otávio e tantos outros moradores do Raso da Catarina responderam ao chamado do grupo de especialistas em defesa da arara-azul-de-lear. E, hoje, o envolvimento da comunidade é um dos principais trunfos do projeto conservacionista. Caboclo acredita na diferença que fez e pode fazer a educação ambiental. Garante que os moradores de Jeremoabo, Canudos e Euclides da Cunha já estão conscientizados da importância da arara-azul-de-lear para a região. “Hoje o traficante não tem acesso fácil pra entrar nas propriedades e pegar as araras”, reitera. “Os proprietários não deixam caçar e os moradores ainda têm um apoio grande da fiscalização do Ibama, do Cemave, da Polícia Federal e até das prefeituras. Antes a gente enfrentava o tráfico sozinho e agora, com o apoio de tanta gente, fica mais fácil combater. Eu mesmo não quero sair da Toca Velha, nem quando eu morrer. Vou ficar assombrando os caçadores”.

A “outra” ararinha

A arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari) é muito parecida com a arara-una (Anodorhynchus hyacinthinus), o maior psitacídeo do mundo. Mas esta tem 98 centímetros da cabeça à cauda, enquanto a de Lear chega aos 70 centímetros. Sua plumagem é de um azul mais claro e o amarelo em volta dos olhos e nas faces tem contornos diferentes. Tais diferenças são sutis para os leigos e o tamanho é a forma mais fácil de distinguir as duas espécies. Por isso, popularmente, a arara-azul-de-lear também é chamada de ararinha-azul, quando então a confusão é com uma terceira espécie, a Cyanopsitta spixii, hoje considerada extinta na natureza. A spixii é a ararinha-azul ‘de verdade’, enquanto a lear é a ‘outra’ ararinha-azul.

Encontrada apenas no sertão da Bahia, na região conhecida como Raso da Catarina, a arara-azul-de-lear tem resistência sertaneja, vive na caatinga, num clima semiárido, de altas temperaturas e chuva irregular. Atualmente a espécie tem dois sítios de reprodução e dormitório, nos municípios de Jeremoabo (Serra Branca, propriedade particular) e Canudos (Toca Branca, patrimônio da Fundação Biodiversitas). De comportamento distinto das araraúnas, as Lear não dormem empoleiradas, mas procuram abrigo nas fendas dos paredões de arenito.

Durante o período de reprodução, os casais se separam do bando e passam a freqüentar o ninho feito em buracos nos paredões das chapadas, com altitudes de 380 e 800 metros e grandes desfiladeiros. A temporada reprodutiva chega com as chuvas (novembro) e se estende até maio, quando os filhotes começam a sair. Os casais são fiéis (monogâmicos) – como os demais psitacídeos – e dividem os cuidados ao filhote. Chegam a criar três filhotes por temporada, mas a média de sobrevivência é de duas ararinhas por casal.

Fonte: EPTV

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