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Dez fatos sobre os mitos em torno do movimento pelos Direitos Animais

30 de setembro de 2009
13 min. de leitura
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Por Bruno Müller  (da Redação)

A matéria de duas páginas da Folha de S. Paulo do dia 27 de setembro sobre o abate humanitário não deixa de ser uma conquista. Lá, ainda que em situação claramente tendenciosa e desvantajosa para os animais e os que defendem seus direitos, há pelo menos dois marcos importantes:

O primeiro é o reconhecimento da legitimidade do próprio debate sobre os direitos dos animais e o sofrimento animal como temas relevantes. Há alguns anos, qualquer um que dissesse que animais têm direitos seria tratado com a condescendência que se dispensa às crianças, o escárnio que se destina ao palhaço ou o espanto que se experimenta diante do insano.

O segundo, o reconhecimento de que há filosofias distintas por trás do termo genérico de “defensores dos (direitos dos) animais”.

Não foi a primeira vez que o tema emergiu na imprensa brasileira, mas este debate aos poucos se torna cada vez mais frequente, e isso por si só é uma vitória, pois dá visibilidade a uma causa e uma injustiça que, por invisíveis, pareciam inexistentes. Em função do reconhecimento dessa existência, essa situação de injustiça que parecia inevitável e natural está sendo cada vez mais questionada em suas próprias bases, e assim o movimento se retroalimenta.

Dada a novidade e debilidade desse debate no Brasil, entretanto, alguns vícios de interpretação são quase tão inevitáveis quanto a naturalização da condição de propriedade dos animais. Os defensores de uma solução radical do problema – sendo “radical” uma ação que vai à raiz do problema, e não, como se costuma dizer no senso comum, um sinônimo de “violento” – aparecem de modo marginal, como o ramo mais imaturo e insensato do movimento. E, claro, como sempre acontece nesses casos, seus adeptos são todos convertidos em “criaturas” do filósofo Peter Singer, com todo o ônus que isso traz consigo. A defesa dos animais parte do utilitarismo de Singer, uma filosofia que não reconhece direitos, apenas interesses. Eventualmente, os vegetarianos são reduzidos a um bando de infanticidas e eugenistas, de tendências protofascistas. Faz sentido. Afinal, Hitler não era vegetariano? O ciclo se fecha, tudo está explicado e fica demonstrado que a ideia de abolir a exploração animal é imatura, insensata e perigosa, portada por um bando de sociopatas.

Tudo bobagem. Do início ao fim, o parágrafo anterior compila apenas mitos – ou seja, mentiras, num jargão mais direto e menos elegante. Mentiras fabricadas e fatos distorcidos para cumprir justamente o papel de desmoralizar o movimento em defesa dos animais. É dos fatos que me ocupo no restante desse texto.

1. Como tento demonstrar no texto “Traçando o Limite”, é aquele setor visto como o “moderado”, “consequente” e “sensato” do movimento de defesa dos animais que é imaturo, pois permanece na infância no debate em torno da questão animal; incoerente, pois é cheio de contradições; e insensato, pois aponta um caminho que nunca levará ao verdadeiro respeito aos direitos que eles próprios dizem ser direitos dos animais.

2. De fato, como também tento demonstrar naquele texto, esse ramo – os “bem-estaristas” – apenas por tradição e pelo senso comum pode reclamar a condição de parte integrante do movimento pelos animais. Na análise racional e objetiva dos fatos, eles sequer fazem parte do “movimento” pelos animais, pois não defendem seus verdadeiros direitos e interesses. Pelo contrário, legitimam a redução dos animais à condição de objeto e propriedade dos seres humanos.

3. A questão dos direitos dos animais existe muito antes de Peter Singer sequer nascer. No Oriente, a prática do vegetarianismo é milenar. No Ocidente, o tema foi soterrado sob séculos de lodo obscurantista de um pensamento religioso que advogava a resignação e a obediência e embotava o pensamento racional e as teses libertadoras. Há pelo menos dois séculos, porém, com o advento do Iluminismo, a questão dos animais está posta. Não há um único expoente do Iluminismo que não tenha tido uma palavra a dizer sobre os direitos dos animais.

4. A rigor, Peter Singer não inventou ou descobriu absolutamente NADA em termos de ética em relação aos animais. No máximo, sintetizou alguns séculos de debate num todo relativamente coerente. Desde sua origem, o utilitarismo advoga a inclusão dos animais na comunidade moral. Há inclusive uma passagem célebre de Jeremy Bentham, pioneiro filósofo utilitarista do fim do século XVIII, que os defensores dos animais gostam muito de citar: “a questão não é: ‘eles podem raciocinar?’, nem ‘eles podem falar?’. A questão é: ‘eles podem sofrer?’.” Tampouco o conceito de especismo foi cunhado por Singer. O primeiro a usar o conceito foi o psicólogo Richard D. Ryder, no início dos anos 1970, e Singer admite publicamente a influência de Ryder sobre sua introdução ao debate dos direitos dos animais.

5. Também desde seus primórdios, o utilitarismo jamais advogou a abolição da exploração animal. Sua interferência sempre foi no sentido de promover o bem-estar dos animais usados pelo ser humano. Assim, também Singer. Como o próprio autor também afirma, não existe argumento em seu sistema filosófico para condenar o abate de um animal que tenha vivido “livre” e morrido sem dor. É essa a “libertação animal” propalada por Singer. Infelizmente, o conceito de “liberdade” tem sido tão deturpado ao longo dos séculos, que acabou desprovido de todo o seu conteúdo. Na nossa sociedade capitalista, existe um conceito minimalista de liberdade que apenas respeita a soberania sobre a própria mão de obra: o ser humano é “livre” pelo simples fato de não ser escravo. É “livre” para exercer o ofício que desejar – mesmo que essa “liberdade” signifique ter de aceitar um emprego em condições sub-humanas, perigoso, insalubre, mal remunerado e extenuante apenas para conseguir sobreviver com o mínimo – um teto e um pouco de comida. Assim também, o movimento bem-estarista deturpou o conceito de liberdade: o animal é “livre” se for criado sem sofrimento, em condições que reproduzam a vida que teria na natureza, podendo pastar, reproduzir-se etc. e, no fim do ciclo, abatido sem dor para deleite do paladar ou da curiosidade humana. Por isso, um outro teórico, o jurista Gary L. Francione adotou uma forma mais direta para definir a liberdade animal: o direito de não ser propriedade. Segundo Francione, todos os abusos subsequentes que os animais sofrem se devem ao fato de, primeiramente, eles serem propriedade de seres humanos. Assim, abolindo essa forma de propriedade (e, nesse sentido, uma forma de escravidão), todos os interesses fundamentais dos animais estarão protegidos e preservados do egoísmo humano.

6. Assim sendo, Singer não é, nem jamais foi, nem o fundador, nem o mentor do movimento contemporâneo pelos Direitos Animais. Foi, no máximo, um interlocutor – e cada vez mais uma referência daquilo que não somos, e não daquilo que realmente somos. As referências filosóficas dos defensores dos Direitos Animais e o autoproclamado movimento abolicionista – aqueles que defendem a abolição da condição animal de propriedade – são os já citados Richard D. Ryder e Gary L. Francione, além do filósofo Tom Regan. E, para surpresa do leitor desavisado, temos também, no Brasil, um dos maiores nomes contemporâneos na discussão intelectual sobre essa matéria – a filósofa Sonia T. Felipe.

7. Consequentemente, nós, abolicionistas, não somos utilitaristas. Nós reconhecemos a categoria de “direitos” como decorrente de interesses fundamentais que devem ser preservados, não importando as circunstâncias, com exceção apenas quando esses interesses fundamentais ameaçam outros interesses fundamentais (como no caso da legítima defesa ou da amputação de um membro para preservar a vida de um enfermo). De fato, se analisadas com rigor, veremos que essas exceções na verdade confirmam a regra: direitos fundamentais só podem ser violados quando isso é necessário para preservar os direitos fundamentais de outros indivíduos ou do próprio indivíduo.  Logicamente, portanto, não defendemos o infanticídio, nem a eugenia. Nem, tampouco, consideramos válida a ideia de que se pode matar uma pessoa para salvar a vida de outras cinco. (E, apenas a título de curiosidade, é bastante duvidoso que Hitler tenha sido vegetariano – o que, por sinal, não tem a menor relevância no debate do mérito dessa questão). Entendemos que os direitos fundamentais são inalienáveis de todo indivíduo do mundo animal. A fundamentação para tal atribuição de direitos é a “SENCIÊNCIA” – conceito primeiramente empregado por Bentham num neologismo a partir da fusão de “sensação” e “consciência”. Senciência é a capacidade que todo animal tem de se ver como um indivíduo, consciente do sofrimento e do perigo de morte que lhe é infligido. A dor é o mecanismo de alerta que o organismo de qualquer animal produz quando a vida ou a integridade física deste estão sob ameaça. Por consequência lógica, compreende-se que todo animal tem o interesse fundamental na preservação de sua vida e sua integridade. Em poucas palavras, tem o DIREITO à vida e à integridade, e à liberdade para dispor delas segundo seus próprios desígnios e perseguir autonomamente a sua sobrevivência.

8. A atribuição de direitos, como dito acima, não se refere ao agente moral, mas ao paciente moral. Não importa se o paciente moral tem inteligência para compreender seus direitos e para se exigir dele uma contrapartida em deveres. Assim fosse, os recém-nascidos, os comatosos, as pessoas com deficiências cognitivas e outros seres humanos temporária ou permanentemente incapacitados de compreender e seguir as normas sociais não teriam direitos – não se pode exigir deles qualquer contrapartida em deveres. A atribuição de direitos, então, se fundamenta apenas naquilo que faz com que a vida de recém-nascidos, comatosos e deficientes cognitivos e outros seres humanos em situações análogas seja valiosa e inviolável. Fato é que nenhuma corrente conservadora, antropocêntrica, consegue fundamentar, de modo coerente, quais são os direitos fundamentais de um indivíduo e quais os indivíduos que os detêm. O fato significativo é que, para abordar esse problema de forma abrangente e coerente, precisamos desafiar a mentalidade antropocêntrica dominante. A uma situação de fato – a consagração da ideia dos Direitos Humanos – faltava uma sólida base filosófica. É mérito dos filósofos que assumiram a defesa dos direitos dos animais o alcance da fundamentação filosófica para definir o que são os direitos fundamentais e qual a sua abrangência. A fundamentação está na senciência dos indivíduos humanos, mesmo os recém-nascidos, comatosos, deficientes cognitivos e outros seres humanos incapazes de observar deveres (ou, no jargão do direito, “inimputáveis”). Todos os seres humanos são sencientes, e por isso são sujeitos de direitos. E, como eles, os demais animais (com a possível exceção das esponjas).

9. Por consequência lógica, esses direitos fundamentais, que costumamos definir como “Direitos Humanos”, não são propriamente “Direitos Humanos”. Se os interesses fundamentais à vida, à liberdade e à integridade são partilhados não apenas pelos seres humanos, mas também pelos demais animais, a única atitude filosoficamente coerente é estender os direitos que protegem tais interesses fundamentais a todos os indivíduos que deles partilham. Portanto, esses “Direitos Humanos” são, na verdade, “DIREITOS ANIMAIS”.  Sem esquecer que o ser humano, como já demonstrado por Charles Darwin – e como se ainda houvesse necessidade de prova nessa matéria – também é um animal. Então, essa mudança não implica uma redução da esfera dos direitos, mas, ao contrário, sua ampliação. Os “Direitos Animais” se referem aos seres humanos tanto quanto os “Direitos Humanos” antes, mas se referem também aos demais animais, e esta é a única mudança implicada na atualização do termo. Portanto, todo defensor dos Direitos Animais, por obrigação ética e lógica, e por coerência, deve ser, também, um defensor dos Direitos Humanos. Não existe deturpação possível para afirmar, como fazem alguns, que a “promoção” de direitos para os animais corresponde a uma “inferiorização” da condição humana e dos direitos dos seres humanos que, equiparados a “meros” animais, tornam-se mais vulneráveis à violação de direitos. Essa é uma leitura limitada pelo próprio antropocentrismo daqueles que a formulam: porque eles veem os animais como seres inferiores, eles deduzem que equiparar Direitos Humanos e Direitos Animais implica uma inferiorização do ser humano. Não é esta a interpretação correta dos Direitos Animais. De fato, seus defensores em muitas circunstâncias se valem da analogia com os Direitos Humanos para explicar seu ponto de vista. Assim, não existe nenhum fundamento lógico para afirmar que os defensores dos Direitos Animais “desvalorizam” os seres humanos e estão mais propensos a violar os Direitos Humanos: antes o contrário. Porém, ao ser humano, devido à complexidade de sua interação com seus semelhantes, pode-se e deve-se reconhecer outros direitos fundamentais, que são essenciais para um ser humano, mas absolutamente desnecessários aos demais animais, pois estão fora da esfera da relação humano-animal, sendo restritos às relações entre humanos. Tais direitos fundamentais, embora muitos deles ainda não sejam reconhecidos como tais pelo discurso dominante, incluem, com pouca margem para controvérsia, o direito à educação, à saúde e à participação política. Aqui sim, podemos falar estritamente em “Direitos Humanos”. Os três direitos basilares, porém, sem os quais todos os demais não significam absolutamente nada – a vida, a liberdade e a integridade – são direitos que os humanos partilham com todos os demais animais, donde sua definição mais apropriada é, como dito, “Direitos Animais”.

10. Assim sendo, chegamos ao ponto fundamental da discussão: se animais são sujeitos de direito, se seus interesses devem ser considerados, preservados e protegidos – e restituídos quando violados – então, sob um ponto de vista estritamente ético, é inequivocamente errado usar animais e transformá-los em propriedade humana. Não existe relatividade nessa questão. Não é, portanto, uma decisão de foro íntimo. A abolição da condição de propriedade dos animais é um DEVER ÉTICO, tanto quanto é a abolição da escravidão humana – que nada mais é do que a redução do ser humano à condição de propriedade. O método para alcançar esse objetivo, no mundo de hoje, é eliminar de nossas vidas cotidianas os produtos derivados da exploração animal – carne, leite, ovos, mel, lã, seda, produtos testados em animais, entre outros. Em outras palavras, a ética comanda que sejamos VEGANOS.

Por “dever ético” não se entenda uma cruzada moralista que irá “impor” o veganismo à força. Por um lado, nenhum princípio moral é efetivamente respeitado se não é socialmente aceito, e tentar impor o veganismo a uma sociedade que não o aceita seria simplesmente inútil. Por outro lado, como os Direitos Animais comandam o respeito aos Direitos Humanos, o recurso a qualquer meio que viole esses direitos é não apenas contraproducente, mas igualmente injustificado. Então, a única arma disponível aos veganos é a força do CONVENCIMENTO.

Portanto, se você, leitor, tem interesse ou simpatia pela causa animal, não assine petições pelo abate humanitário nem ideias afins. Não se deixe levar pelo discurso bem-estarista de que a única coisa que podemos fazer pelos animais é minimizar seu sofrimento, “humanizar” sua tortura e extermínio. Em vez disso, procure informar-se sobre o veganismo, o abolicionismo e a verdadeira doutrina dos Direitos Animais. Você verá que a alimentação vegana é perfeitamente viável em qualquer fase da vida e que existem alternativas éticas para praticamente todos os produtos de origem animal. E, se se sentir convencido, adote o veganismo como princípio de vida. Pois a verdadeira teoria só adquire sentido quando posta em prática. Desvinculada da prática, a teoria não passa de palavras vãs.

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