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Espécies de perereca repetem curiosos rituais de acasalamento

1 de setembro de 2009
13 min. de leitura
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Nem mesmo a mais linda donzela do mundo transformaria, com um beijo, um sapo, rã ou perereca num príncipe. Mas se você encontrar um deles coaxando saiba que está diante de um príncipe da noite à procura de uma parceira.Quando o sol se esconde no horizonte e a maioria das aves silencia, a sinfonia da natureza fica por conta dos anfíbios. Os lagos se transformam em palcos de cantoria. As músicas não são tão harmônicas, porém variam nos tons e na cadência e são muito, muito antigas.

Esses cantores são os primeiros animais terrestres com cordas vocais. Surgiram entre 200 e 300 milhões de anos. Fósseis e pegadas dos primeiros anfíbios datam do início do Período Devoniano. Deram origem à vida em terra e até hoje são responsáveis por boa parte da manutenção da vida na Terra. Ao longo de tantos milhões de anos foram se diferenciando, desenvolvendo muitas particularidades, a começar pela distinção entre rãs, sapos e pererecas.
 
Generalizando, sapos são anfíbios de pele rugosa e têm glândulas paratóides atrás dos olhos. Rãs têm pele lisa e vivem no chão. Pererecas têm discos aderentes nas pontas dos dedos. Você pode já ter encontrado uma perereca no banheiro, grudada à parede graças, justamente, aos dedos aderentes. A preferência das pererecas pela área do chuveiro deve-se à necessidade de manter a pele úmida, apesar de jamais beberem água. Como parte de sua respiração é feita através da pele, se ela ressecar os poros fecham e as pererecas podem morrer sufocadas.
 
Até hoje os pesquisadores já identificaram no mundo cerca de 5.000 espécies de sapos, rãs e pererecas e estima-se que existam outras mil ainda desconhecidas. Ocorrem em praticamente todo o planeta, nas tundras geladas, nas florestas tropicais e até nos desertos. Seria necessária uma enciclopédia para descrever todos os anfíbios e seus hábitos, e mesmo assim nos perderíamos num universo de particularidades, sem chances de conhecer todos os aspectos desses animais que deram origem à vida em terra firme.
 
Por outro lado conhecendo um pouco mais sobre uma só espécie, a Phyllomedusa distincta, já é possível perceber a importância que esses animais têm no meio ambiente.A Phyllomedusa distincta é uma perereca simpática, de olhos grandes e pupilas verticais. Embora capaz de saltar, prefere caminhar pelas plantas e, se capturada pelo homem, não salta da mão como outras espécies. A lentidão com que caminha, associada à sua cor verde que ajuda na camuflagem entre as folhas, faz com que essa perereca consiga passar quase sempre despercebida pelos predadores.
 
Pude acompanhar o ciclo de reprodução delas, graças a um trabalho desenvolvido por Germano Wöehl Jr. e Elza Nishimura Wöehl, fundadores do Instituto Rã-bugio para a Conservação da Biodiversidade, uma organização não governamental que trabalha com educação ambiental e conservação de anfíbios em Guaramirim, Santa Catarina.

Imagem: Reprodução/EPTV
Imagem: Reprodução/EPTV

Elza e Germano compraram, há alguns anos, uma pequena área de cerca de 4 hectares onde existia uma plantação de bananas. Hoje, a área já se transformou num fragmento de mata atlântica em recuperação, onde um pequeno lago reúne dezenas de espécies de anfíbios, entre elas a Phyllomedusa. Ao caminhar pelas margens do lago é preciso prestar muita atenção para perceber as pererecas camufladas entre as folhagens. Com um pouco mais de atenção dá para perceber folhas cuidadosamente dobradas e coladas, cheias de ovos da perereca.
 
Pode até ser difícil a olhos não treinados encontrar as pererecas ou as desovas, mas quando se tem uma guia como Elza, não existe anfíbio que se esconda. Seus olhos orientais conhecem o lago como ninguém e conseguem enxergar qualquer movimento ou camuflagem perfeita.
 
À noite, com uma pequena lanterna, Elza vai iluminando a margem, guiada pelos ouvidos. Como só os machos coaxam, consegue interpretar dois sons distintos. Existe o coaxar de advertência, quando um macho territorial avisa um outro que está muito próximo. Identificado o som, se o macho intruso não se afastar, o confronto terminará em luta corporal.
 
Já o coaxar de acasalamento é o mais comum, e tem um só objetivo: atrair a parceira. A exemplo de outras espécies de pererecas, os machos de Phyllomedusa coaxam empoleirados em ramos de plantas, bem próximos à lagoa. E a conquista é no grito, ou seja, aquele que coaxar mais intensamente ou for mais insistente vai ganhar os ‘favores’ da parceira. Nas noites mais quentes da primavera ou verão, o que se ouve é um verdadeiro coral de anfíbios.
 
Quando o coaxar de acasalamento consegue seduzir a parceira, o macho imediatamente se agarra às costas da fêmea e o casal entra em amplexo e sai à procura da folha ideal. Uma vez identificada a folha, a fêmea se encarrega de dobrá-la com braços e pernas. Como os machos não possuem pênis, a fecundação dos ovos é externa. A fêmea vai desovando, pouco a pouco, e simultaneamente o macho derrama o sêmen. Junto à desova, a fêmea coloca também um gel em formato de bolinhas, utilizado para manter a umidade dos ovos e também colar as bordas da folha, que passa a ter o formato de um charuto.
 
Apesar de a maioria das desovas de Phyllomedusa ocorrer à noite, é frequente um ou outro macho conseguir atrair a parceira só no final da madrugada e a desova se estender pela manhã. Quando isso acontece é também comum ver um comportamento diferente na reprodução da espécie. Tivemos a oportunidade de observar um casal, já na metade da desova, atrair um outro macho, que, sorrateiramente, parecendo medir cada passo, aproximou-se e se posicionou entre o casal. O segundo macho também participou da desova, que vai gerar girinos de uma mesma mãe, mas de pais diferentes. Essa ‘fertilização sorrateira’ também pode ocorrer à noite.

A desova e o consequente fechamento da folha levam cerca de meia hora. Em média são depositados 170 ovos nesse ninho temporário. O número relativamente elevado de ovos compensa as perdas constantes de desovas, devido a vários fatores ambientais e à ação dos predadores de ovos. Assim que a desova termina, o macho se afasta devagar, já a fêmea ainda leva alguns minutos para vedar o ninho com as bolinhas de gel.
 
Diferente da maioria dos anfíbios, que desovam diretamente na água, os girinos da Phyllomedusa nascerão dentro da folha. Isso pode demorar de sete dias a um mês, de acordo com a temperatura ambiente. Quando os girinos começam a se movimentar e rompem os invólucros dos ovos, as bolinhas de gel ficam liquefeitas, a folha se abre e cada filhote literalmente escorrega pela folha, diretamente para o lago.
 
Na maioria das espécies da subfamília Phyllomedusinae, os girinos são vegetarianos, alimentam-se de algas (‘limo’) e restos de vegetais na água. Os que sobrevivem aos predadores por cerca de 80 dias, transformam-se em mini-pererecas e passam a viver em terra firme, ou melhor, nos ramos e folhas, sempre bem escondidos. Daí vem o nome anfíbio, que significa duas vidas, uma na água e outra em terra. Duas vidas, que na base da cadeia alimentar garantem a existência de muitas outras vidas.
 
Seja na fase aquática ou na terrestre, a importância dos anfíbios para o meio ambiente é facilmente notada. O controle natural da população de insetos das mais variadas espécies é um dos importantes serviços que os anfíbios proporcionam ao homem, tanto no que diz respeito ao controle de vetores transmissores de doenças, como o mosquito da dengue, como na redução de insetos prejudiciais à agricultura.
 
Rãs e pererecas são uma importante fonte de proteína para cobras e para mamíferos, répteis, peixes e aves, apesar dos venenos que diversas espécies possuem na pele. Pudemos flagrar até um surucuá-de-peito-azul (Trogon surrucura), capturando uma perereca para alimentar os filhotes. Os sapos, com o veneno das glândulas paratóides, têm predadores mais específicos. Se engolir sapo não é fácil como figura de linguagem, na realidade é ainda mais difícil. Menos para serpentes como a boipeva, Waglerophis merremi, especializada nessa ‘tarefa ingrata’. O veneno de sapo não a molesta e seu segundo mecanismo de defesa – que é inchar até ficar grande demais para ser engolido – não tem êxito, pois a boipeva possui dois dentes grandes e móveis que usa para perfurar os pulmões do sapo, fazendo-os murcharem.
 
Os anfíbios são também indicadores da saúde ambiental. Sua ausência quase sempre significa que o ambiente está sofrendo agressões. Apesar de serem tão antigos, e de sobreviverem há milhões de anos, muitos são sensíveis à destruição das matas e banhados e à poluição das águas. Os representantes da origem da vida em terra firme, às vezes são os primeiros a desaparecer com as alterações provocadas pelo homem. A expansão urbana e de áreas de agricultura promove a drenagem de inúmeras várzeas e ambientes alagadiços, um processo que diminui, ano após ano, as áreas de distribuição destes simpáticos passageiros do nosso mundo vivo.

Imagem: Reprodução/EPTV
Imagem: Reprodução/EPTV

A pele de todos os anfíbios é constantemente lubrificada por uma complexa mistura de substâncias, que podemos chamar genericamente de secreções, muitas delas venenosas. Uma única perereca da subfamília Phyllomedusinae tem na pele mais de 50 princípios ativos diferentes e cada espécie apresenta misturas diversas de venenos, embora muitos deles exerçam a mesma função. Não é preciso dizer que esse universo ainda é muito pouco conhecido pelos cientistas, embora desperte grande interesse da indústria farmacêutica, a ponto de já constituir uma frente importante de biopirataria.
 
A maioria das substâncias é composta por peptídeos, um tipo de molécula mais simples do que as proteínas, com sequências de 4 a 30 aminoácidos. Para descobrir a identidade de cada peptídeo é preciso recorrer a técnicas e aparelhos de nome complicado: cromatografia líquida de alta resolução, espectroscopia de massa, sequenciamento de aminoácidos. “As Phyllomedusas apresentam a maior riqueza em peptídeos do reino animal e estudar uma única espécie é trabalho para muitos anos”, comenta Antonio Sebben, da Universidade de Brasília (UnB), um dos maiores especialistas brasileiros na matéria.
 
Segundo o pesquisador, esses peptídeos têm três funções básicas, todas de defesa: proteger a pele úmida das pererecas contra fungos, bactérias e protozoários causadores de doenças; causar irritação na boca de predadores, para obrigá-los a regurgitar ou diminuir as chances de predação, e provocar reações no sistema digestivo dos predadores, também para ‘ensiná-los’ que aquelas espécies são ‘pratos indigestos’.
 
A necessidade de proteger a pele deve-se à respiração cutânea, característica que define um anfíbio. Como a pele precisa estar úmida para ser permeável aos gases da respiração, fica muito sujeita aos agentes infecciosos. Daí esses animais terem desenvolvido, ao longo dos milhões de anos de sua evolução, os mais diversos tipos de antibióticos, secretados pelas glândulas da pele.
 
Já as duas defesas contra predadores são estratégias de emergência. De modo geral, os venenos irritam a boca do predador, a ponto de algumas pererecas serem engolidas por cobras e, momentos após, serem regurgitadas inteiras e saírem andando! Também há venenos sistêmicos que, absorvidos pelas mucosas, entram na corrente sanguínea do predador e causam cólicas, prostração ou mesmo morte. Logo os predadores aprendem que aquelas espécies não são boas para comer.
 
A função de proteção contra os agentes causadores de doenças é a que mais interessa à indústria farmacêutica. Os venenos das Phyllomedusas podem ser classificados como antibióticos de amplo espectro, capazes de matar microorganismos com muito mais eficiência do que os antibióticos sintéticos, mesmo os mais avançados. “Como são moléculas relativamente pequenas, ainda têm a vantagem de penetrar com facilidade no organismo, ou seja, constituem uma nova geração de antibióticos”, diz Sebben. “Deve-se tomar cuidado, porém, com algumas aplicações difundidas, ultimamente, com base no uso tradicional desses venenos por etnias indígenas, as chamadas ‘vacinas de sapo verde’ ou ‘kampu'”.
 
A ‘vacina’ é feita com o veneno da Phyllomedusa bicolor. Causa dor, distúrbios gástricos e é considerada depurativa, sendo usada também em rituais de iniciação. “O simples fato de ter uma aplicação cultural não significa que é bom”, alerta o especialista, lembrando que existem outros venenos misturados aos de efeito ‘desejado’, e estes são capazes de causar alterações de pressão sanguínea e outros problemas. “Além disso, o direito dos anfíbios à conservação deve ser respeitado”, continua. “Pegar um anfíbio na mão não causa dano algum ao ser humano: eles não espirram nem cospem veneno e não precisam ser mortos só porque se aproximaram de uma casa ou entraram no banheiro. Basta levá-los de volta para o mato e depois lavar bem as mãos”.
 
Só há problemas quando as substâncias da pele chegam até as mucosas – boca, nariz e olhos – justamente porque são venenos desenvolvidos para afastar predadores e, portanto, agem quando o anfíbio é abocanhado (ou quando alguém põe a mão na boca, depois de manipular o animal). “Os anfíbios não transmitem doenças ou infecões ou ‘cobreiros’, como se diz popularmente”, completa Antonio Sebben. Na verdade, são mais limpos do que gatos e cachorros e não transmitem vírus ou bactérias, como os ratos.
 
Brasileiras de verde-amarelo -as espécies de Phyllomedusa
 
Existem cerca de 600 espécies de anfíbios brasileiros, dois terços das quais endêmicas, ou seja, exclusivas do Brasil. A subfamília Phyllomedusinae tem cerca de 20 espécies nativas, quase todas com as cores nacionais estampadas na pele:
 
Phyllomedusa ayeaye: a perereca-de-folhagem-com-perna-reticulada, é natural de Minas Gerais e encontra-se criticamente ameaçada de extinção.
 
Phyllomedusa bicolor: ou sapo-verde é a maior delas, com 12 cm. Algumas etnias indígenas e ribeirinhos da Amazônia utilizam seus venenos como ‘vacina’, em rituais curativos ou de iniciação. Duas das substâncias encontradas nas secreções – dermorfina e deltorfina – já são produzidas sinteticamente por laboratórios internacionais.
 
Phyllomedusa tarsius habita a Amazônia Central e se reproduz em poças d’água, na floresta ou em capoeiras de embaúbas.
 
Phyllomedusa distincta é uma das espécies mais comuns da região Sudeste. Consegue viver bem em ambientes alterados pelo homem.
 
Phyllomedusa hypochondrialis é chamada de rã-de-cera. Mede 10 cm e vive em média 10 anos, preferindo a proximidade de bromélias, tanto nas florestas como nos cerrados.
 
Phyllomedusa tetraploidea mede 4 a 5 cm e vive na Mata Atlântica e matas de interior, das regiões Sudeste e Sul do Brasil até Missiones, na Argentina.
 
Phyllomedusa vaillantii é natural da Amazônia e do escudo da Guiana. Sua distribuição se estende até o leste do Equador.
 
Phrynomedusa fimbriata é considerada extinta. Vivia nas matas do estado de São Paulo.
 
Phasmahyla cochranae é nativa do estado de São Paulo e ocorre nas encostas da Serra do Mar. Os girinos vivem em pequenos córregos encachoeirados, têm a boca virada para cima e se alimentam de partículas em suspensão na água. Dependem da oxigenação, temperatura, sombra e qualidade da água para a sobrevivência.
 
Phyllomedusa oreades foi descrita há cerca de um ano, vive no cerrado e tem um veneno promissor contra o Trypanossoma cruzi, parasita causador do Mal de Chagas.

Fonte: EPTV

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