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Domingo não muito Legal

11 de junho de 2009
9 min. de leitura
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Por Renata Octaviani Martins
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O programa “Domingo Legal” em 07/06/2009 vai na contramão da proteção animal e lança quadro dando cachorros de qualquer raça de presente.

No último domingo liguei a TV. E me arrependi.
No SBT, a feliz locutora fazia uma lista de cachorros mais inteligentes. Parei para ver.

Começo de conversa, sou completamente contra esse determinismo canino. Cães – assim como pessoas – têm sim tendências hereditárias e até algumas características físicas que favorecem um ou outro tipo de atividade e às vezes alguns comportamentos. Mas determinar “inteligência” somente pela raça é ou muita ingenuidade ou muita má fé.

Ignora-se todo o histórico de nutrição, ignora-se controle de parasitas, ignora-se o meio, ignora-se o nível de atividade, o estímulo oferecido, quando o filhote foi separado de mãe (influencia muito o comportamento), ignora-se PRINCIPALMENTE a individualidade pura e simples (ou cachorros são itens de série todos iguaizinhos? Quem já conviveu com dois de uma mesma ninhada sabe do que eu estou falando).
 
Ou seja, vende-se o cachorro mágico do filme “x” que faz truques fantásticos simplesmente porque o Rintintin, a Lassie, o Benji, Beethoven, Fluke e tantos outros fazem (sabe-se lá com que tipo de adestramento, aliás) e são de tal raça. Como se fosse “característica de fábrica”. Pois é, mais uma vez, cachorro é produto. Não estou discutindo aqui se o criador trata bem ou mal, se é profissional (sim, tenho incompatibilidades ideológicas sérias com criadores profissionais) ou de fundo de quintal. O problema é muito mais sério do que isso.

A coisa toda já começou mal quando colocou em “quinto lugar” na lista de inteligência os vira-latas. Não estou negando que existam vira-latas muito, muito inteligentes. Mas espera um pouquinho… Que características genéticas de aspecto geral existem em um vira-lata? Vira-latas é cachorro que surge de cruzamentos sucessivos e sem controle, de qualquer tipo de raça. Vira latas, aliás, te desafiam: eles são únicos, eles exigem do adotante atenção redobrada às suas características individuais, eles não têm sequer um esboço de um manual de instruções.

De verdade, cães de raça também deveriam ser tratados como indivíduos e não apenas como grupos… Até porque basta um cão de raça adotar comportamento não esperado para ele ser classificado como “fora do padrão”. Como somos prepotentes, não?

E, ao final, era passado o “custo” do animal. O custo para adquirir, fique bem claro. E a locutora solta a pérola da que o custo do vira-latas varia de acordo com quem são os pais (o que incentiva uma prática nefasta de cruzar animais aleatoriamente para que sejam “bonitinhos” e tentar lucrar algo com eles).

Nenhuma menção à possibilidade de adoção (até a Veja São Paulo dessa semana – e que já fez matérias deploráveis sobre cachorros – abordou o assunto).

A matéria continuava e classificava mais quatro outras raças que eu prefiro nem citar pra não reforçar esse estereótipo absurdo. Com custos sempre altos.

Mas isso por si só teria sido só mais um conceito equivocado com o qual eu não concordo de uma maneira geral (determinismo, utilitarismo e venda de animais) e que infelizmente nem difere muito do cenário da cinofilia brasileira de um modo geral. Conteúdo televisivo no Brasil (em geral, salvo raras exceções) é questionável não só pela maneira como trata os animais. É questionável por como trata desde a dignidade humana, a espiritualidade e a cultura até a nossa inteligência.

O problema foi o que veio depois (e me fez desligar a TV). O apresentador Gugu Liberato no palco com uma ninhada da raça que ganhou o “primeiro lugar” como a mais inteligente (não, nem achei manipulação, imagina…) fazendo uma promoção chamada “Quero meu cãozinho”. Com um apelo meloso do tipo “criancinhas ficam doentes quando querem um cãozinho que tem um preço exorbitante”, convidava os telespectadores a fazerem pelo site sua inscrição no novo quadro e realizarem seu sonho. Copio do formulário:
“Você quer um cachorrinho? O Domingo Legal pode realizar o seu sonho. Preencha a ficha de inscrição, dizendo qual é a raça da sua preferência e conte por que você quer ter um cãozinho.”

O sonho de ter um “cão de raça”… Que sonho mesquinho, que devaneio além da realidade dos animais. Sendo incentivado abertamente!

Eu imagino o que faz um programa de TV promover essa barbaridade. O critério pra dar esse animais é “quem quer mais”, “quem sofreu mais de vontade leva”. Então, já começa errado, focando unicamente no fator “vontade”.

Será que eles vão investigar se a pessoa tem condições de manter uma ração razoável, cuidados veterinários, espaço, compromisso por toda a vida e, principalmente – principal porque é o que eu vejo a maior carência – tempo pra dedicar a esse animal?

Alguns cachorros, justamente pelas seleções levando em conta apenas os interesses dos criadores, apresentam tendência a doenças hereditárias, algumas bastante graves. A pessoa que ganhar o prêmio está preparada para lidar com isso e custear cuidados médicos? E o programa vai acompanhar esse animal por quantos anos? Porque, acreditem, existem cães de raça – que alguém quis a ponto de comprar – abandonados no meio da rua no minuto em que se tornam um inconveniente.

O tal cachorro ganhador do “Top 5 inteligência” é de uma raça que normalmente precisa de um nível de atividade física razoável, até um pouco maior do que outros. Isso realmente tem a ver com uma característica física gerada pela seleção genética. Confinar esse cão em um apartamento (ou mesmo um quintal), sem estímulo, vai gerar um cachorro “destruidor” (ele tem que preencher o tempo de alguma forma), desequilibrado, com auto estima abalada, eventualmente até agressivo. E isso normalmente gera maus tratos e abandono, especialmente quando o comportamento do animal se choca com a expectativa de ter um cachorro “de cinema”.

Outro problema (e na minha opinião o mais grave): o programa está provocando nas pessoas uma ganância por cães de alto valor, como se fossem objetos de desejo. Mas que tipo de amor uma pessoa pode devotar a um cachorro que vale um milhão de dólares que seja diferente do amor que ela pode devotar a um vira latas resgatado do meio da rua? É esse tipo de amor incondicional – que você dá sem esperar nada em troca – que é a única recompensa de se conviver com cães.
E, agora, vamos falar dos interesses da causa animal.

Será que esse programa não poderia ter feito uma filmagem no CCZ de São Paulo ou em qualquer ONG da cidade e feito uma campanha incentivando adoções? Será que o quadro “Construindo um sonho”, do mesmo programa, não poderia ter dado a uma ONG ou protetor independente um abrigo que seguisse a legislação sanitária e depois fizesse uma campanha maciça de adoção dos animais?

Conte agora, por que você quer um cãozinho? Pra exibir para vizinhança? Um cachorro para você olhar e sentir orgulho dele ser lindo (bom, as minhas são vira latas e eu acho elas lindas, a única questão é que isso não foi determinante pra ficar ou não com elas)? Ou porque você quer um companheiro a quem dedicar um tempo, você quer ter mais responsabilidade, você quer poder ajudar um animal desses?

Se sua resposta for a terceira, interessa mesmo se o cachorro é branco, preto, cinza ou amarelo? Faz diferença ter olho castanho ou verde? Se a orelha fica em pé ou de lado? Que idade ele tem? Interessa realmente se ele “sabe” (entre aspas pq isso se ensina, mesmo aos da raça mais pura do mundo) se portar em exposições ou fazer truques absolutamente inúteis (o que é diferente de você ensinar truques até como uma forma de brincadeira e de interagir com o animal)? Não, certo?

O que deveria ser analisado ao adotar um cachorro é: eu posso cuidar adequadamente desse animal, ele vai ter um espaço adequado pro seu porte, eu vou poder dedicar a ele o tempo adequado, vou poder ficar com ele todo o tempo da vida dele, estou pronto pra assumir esse compromisso? Ter ou não ter uma animal não é uma questão de ego!

Aliás, eu me questiono se o SBT vai cumprir a legislação municipal e vai entregar esses cães castrados. Ou se eles vão, além de todo esse problema, dar suporte a criações de fundo de quintal.

Acessei o formulário do site da promoção e fiz minha inscrição ( http://www.sbt.com.br/domingolegal/fale/cadastro.asp?id=21 ).

Afinal, eu também tenho um sonho relativo a cães:

Eu não quero um cãozinho – já adotei duas, resgatei e encaminhei pra adoção mais alguns e ajudo atualmente uma voluntária que resgatou e cuida de mais de 80 cães aguardando um lar.

Que “sonho” de ter um cãozinho é esse que não pode ser atendido com uma adoção amorosa de um cachorro que realmente precisa de um lar? Que determinismo é esse que esquece que cães são indivíduos e reforça a idéia de que a raça determina comportamentos? Quer um amigo? Mas amigo não se compra!

O que eu quero é que os produtores desse programa coloquem a mão na consciência e pensem um pouco no que se está incentivando com essa promoção.
Meu sonho é ver um Brasil em que a esterilização e adoção de animais – abandonados aos milhões pelas ruas, CCZs e abrigos de ONG’s e protetores independentes – sejam incentivadas e que cães deixem de ser encarados como “objetos de desejo”, que deixem de ser exibidos em vitrines de pet shops como se fossem um produto de luxo.

Eu quero que o problema de abandono de animais seja tratado com seriedade e que cachorros parem de ser tratados como produtos a serem adquiridos por um preço. Eu quero que as pessoas parem de querer ter animais pq eles são “fofos” ou fazem truques engraçadinhos, mas sim porque têm condições pra isso e adotar um animal, acabando com o comércio dos mesmos, faz parte da solução de um imenso problema, além de um ato de amor.

O que eu quero mesmo é que esse programa promova um pouco de educação para seus telespectadores ao invés de incentivar a ganância de ter um animal de alto custo e tratar a questão animal como um  mero problema de ego (”eu quero”).

E, se a produção levar essa promoção adiante, espero ao menos que cheque muito bem as possibilidades do ganhador, fique atenta ao destino desse animal (cães de raça são abandonados no minuto em que se tornam inconvenientes. Tenho alguns no canil pra doação), garanta que terão estímulo adequado e cumpra a legislação municipal da cidade de Sâo Paulo, entregando esses animais castrados. E compense essa má ação ajudando o CCZ, ONGs e protetores independentes numa campanha que incentive seriamente a adoção de animais.

Até a próxima, de preferência com notícias mais felizes.

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