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Escritora mineira faz um histórico da representação do animal na literatura

31 de maio de 2009
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Escritora mineira Maria Esther Maciel faz um histórico das tentativas de autores de representar o animal na literatura, tentando entendê-lo ou até dialogar com ele.

“Se o leão pudesse falar”, escreveu o filósofo Wittgenstein, “nós não o entenderíamos”. Supostamente, ele estaria refletindo sobre a natureza da linguagem e a distância intransponível que nos separa dos animais, mas muitas vezes me pergunto se a frase de Wittgenstein, ao invés de demonstrar reflexão, não tenta esconder o que de fato é um lamento: um pesar pelo fato de que, pelo que tudo indica, o leão nunca falará conosco. Afinal, se os animais nos fossem tão alheios a ponto de serem ininteligíveis, por que escreveríamos tanto sobre eles? A verdade é que desejamos, há séculos, o diálogo com o leão – ou com a lontra ou a abelha -, e a prova disso é a fixa obsessão com eles que a nossa literatura trai.

Em seu ensaio O Animal Escrito (Lumme Editor, 94 páginas), a escritora e professora da Universidade Federal de Minas Gerais Maria Esther Maciel pousa um olhar sobre a inscrição dos animais dentro da literatura universal, em especial sobre o gênero de inventário animal que chamamos de bestiário. Segundo ela, os animais sempre acompanharam a trajetória do ser humano, pelo menos na literatura ocidental, desde as fábulas de Esopo e as incursões de Aristóteles na História Natural, passando pelos bestiários medievais, os compêndios taxonômicos da Modernidade e, finalmente, chegando ao que seu subtítulo nomeia de “zooliteratura contemporânea”. Em todas essas aparições, o nosso animal escrito sempre é retratado como “o estranho por excelência”, aquele Outro que se isola de nós pelo seu silêncio e pela sua impossibilidade de ser apreendido.

Seu texto encontra especial relevância dentro de um nicho das Humanas em ascensão, que se preocupa com o que se tem chamado de “a questão do animal”, articulando estudos culturais, teoria literária, filosofias pós-humanistas e ecologia. Nesse fluxo, podemos mencionar os trabalhos mais recentes de Jacques Derrida e de Giorgio Agamben, os escritos sobre animais de Gilles Deleuze and Félix Guattari, os ensaios de Donna Harraway, as análises de Michel Foucault sobre loucura e animalidade, as publicações de ativistas de direitos animais como Peter Singer e, finalmente, teóricos como Cary Wolfe, Matthew Calarco e Peter Atterton, que tentam organizar a contribuição dos autores acima e de outros menos engajados com a questão do animal, mas cujo pensamento é igualmente importante a essa reflexão, como Martin Heidegger e Emmanuel Lévinas. Podemos mencionar também o antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro, cujo trabalho sobre perspectivismo ontológico ameríndio se aproxima de uma discussão sobre as relações que os animais mantêm conosco, tanto ecológicas quanto pessoais ou ontológicas, que é o que procura entender essa área chamada por vezes de Estudos Animais.

Assim, Maciel nos apresenta a uma breve historiografia da presença animal na literatura, nos guiando firme, porém agilmente, de Aristóteles até o taxônomo Lineu, apontando onde e como a figuração animal foi se metamorfoseando para representar ansiedades humanas diferentes em cada época. Mas é nos bestiários contemporâneos, em especial os latino-americanos, que ela nos apresenta sua erudição e conhecimento, explorando com mais calma os diversos eixos de importância desse gênero tão comum à América Latina.

A zooliteratura anterior ao século 20, segunda ela, se preocupava com animais de um modo observador, por vezes vendo neles características humanas, ou analisando-os cientificamente. Os escritores contemporâneos, por sua vez, adotam uma reflexão mais crítica sobre o animal representado, conscientes de que qualquer natureza humana é sempre criada com relação aos não humanos. E, talvez ainda mais importante, cientes de que a alteridade animal sempre foi o modelo perfeito para a exclusão e dominação de outros seres humanos. Assim, os bestiários do século 20, como o O Livro dos Seres Imaginários, do argentino Jorge Luis Borges, ao alinhavar um rol de animais e suas descrições, separados por categorias, está, de fato, discutindo muito mais do que somente uma classificação de seres não humanos reais ou imaginários. As categorias, sempre tão inesperadas que, como Borges mesmo disse, lembram “as formas cambiantes reveladas por um caleidoscópio”, mostram o limite do conhecimento científico e taxonômico, ao mesmo tempo que o poético texto em prosa mantém a tensão entre parágrafo e verso. Ao questionar tanto o logocentrismo e a linguagem literária, os bestiários não deixam de colocar em xeque a própria questão do ser humano como o entendemos através do nosso legado iluminista.

Não só isso, mas vemos nos bestiários contemporâneos, com clareza inédita, e também no título que a autora escolheu para seu ensaio, algo que Wittgenstein parecia querer encobrir: que a fala oriunda do animal, ou seja, a sua natureza sendo estabelecida por ele mesmo, nunca pode, realmente, existir para nós, já que toda ideia de animal que temos já é, automaticamente, um animal escrito. Se Wittgenstein escreve sobre o leão, se ele o inscreve em algum lugar, já é tarde demais para esperar que o animal venha lhe revelar algo, já que tudo, inclusive sua natureza, já foi decidido por ele. E, assim, os bestiários latino-americanos nos fazem entender por que escrevemos tanto sobre o animal. Escrever o animal é desenhar os limites de sua natureza, inscrevê-lo em algum lugar, riscar a linha que vai nos separar deles, permitindo, assim, que saibamos o que é ser humano.

Isso fica particularmente aparente no bestiário do uruguaio Victor Sosa, que, segundo Maciel, apresenta jogos sonoros de linguagem em suas categorias caóticas, onde entendemos que o bestiário é muito mais um exercício das possibilidade da linguagem do que de classificação animal – ou que essas duas coisas são, na verdade, uma só: a própria natureza do animal é uma manifestação linguística. Tanto que uma de suas categorias insólitas é “os animais estabelecidos”, mostrando que nenhum animal simplesmente é, mas que eles têm sempre sua natureza estabelecida para eles, quase sempre quando escrevemos sobre eles. E é no ornitorrinco, animal presente na capa de seu livro, que Maciel demonstra que tal impossibilidade de classificação se articula mais visivelmente e ele que vai provar que qualquer classificação, qualquer comparação de um animal a outro – assim como se tenta fazer com cada parte do corpo do ornitorrinco – já desliza para o “registro poético”, uma vez que a poesia sempre é o meio daquilo que já deriva para o incompreensível. Assim como os animais.

Jacques Derrida já havia percebido que os seres não humanos não podem ser agrupados juntos, nem como animais, nem em categorias ainda mais específicas. Tanto que ele tentou dizer o singular “animal” no plural, usando seu neologismo animot. Essa sua nova palavra é homófona ao plural francês animaux, mas ela carrega a consciência da origem linguística do conceito de “animal” por conter o elemento mot, “palavra”, ao mesmo tempo que seu eco de palavra plural evidencia a variedade de vidas animais que tentamos agrupar. Para ele, animalidade não é nada além de linguagem. Ainda mais interessante é a tese de Maciel de que é essa própria natureza linguística do animal que configura a lógica paradoxal de inclusão e exclusão da América Latina do seio da civilização ocidental. Segunda ela, a identidade latino-americana é igualmente problemática por sua natureza discursiva, incluída no Ocidente “pela força da geografia, das cartografias, das caravelas”, ao mesmo tempo em que sempre estivemos à margem de tal historiografia ocidental.

Derrida figura no capítulo mais interessante do ensaio, onde Maciel nos traz uma outra linhagem de autores contemporâneos engajados com animais. Esses, talvez cansados da tentativa inútil de entender o animal linguístico, procuram travar algum tipo de simbiose poética com a animalidade, mas desta vez não em termos absolutos, mas sim com animais específicos, buscando algum tipo de “compromisso afetivo” ou “contágio” no contato com um só animal, “tomado em sua insubstituível singularidade”, tentando extrair do encontro com ele algum tipo de conhecimento alternativo sobre o humano, ou, talvez, um desafio para nossa racionalidade. Derrida é um deles, que vislumbrou a possibilidade de o animal ter um olhar sobre nós ao ser surpreendido pelos olhos de um gato sobre seu corpo nu após o banho. Dentro do olhar animal, ele pôde ver “o limite abissal do humano”, e é exatamente esse abismo que os escritores interessados em encontrar um animal, em serem vistos por um, querem cruzar.

Maciel nos apresenta, então, a autores que tentaram comungar com o animal no terreno dele, tentando se afastar da linguagem, da descrição e representação, para habitar o corpo animalesco, para estar na dimensão plenamente física que é o mundo do animal. Mas, como é de se esperar, essa interação física humano-animal ainda é limitada, não pela incapacidade de o animal falar nossa língua, como diz Wittgenstein, mas por causa da nossa inabilidade de sair da dimensão da linguagem, que é o nosso mundo. Por mais entregues ao espírito animalesco que sejam os poemas desses autores, ainda eles são poemas, ainda eles são linguagem, ainda o animal está sendo escrito, delimitado. A angústia dessa impossibilidade parece encontrar eco na citação de Clarice Lispector, segundo a qual segurar um passarinho na concha da mão meio fechada “é como se tivesse os instantes trêmulos na mão”. Meio-fechada, pois vivemos sempre no limiar entre o desejo do contato com o animal, do diálogo com uma perspectiva exterior à humana, e entre o nosso aprisionamento em um mundo linguístico. O que nos resta, nos parece dizer Maciel, é tentar ao máximo nos deixar afetar e contagiar pela presença animal, e é tocante perceber que seu texto, nesse momento, incorpora o tom quase delirante da escrita de Clarice.

Se Wittgenstein, como a autora o elucida para nós, acredita que a lógica de uma língua animal seria tão estrangeira ao ponto de ser incompreensível, é a impossibilidade humana de sair da linguagem que ele parece estar querendo mascarar. Mas como o perspicaz ensaio se presta a demonstrar, chamando autores que trazem, inclusive, visão de animais sobre nossa sina linguística, é somente através do engajamento genuíno que se tem uma chance de transcender essa condição. Não um engajamento com a animalidade, mas com o animal no singular, com o gato, o carneiro, o avestruz, o chimpanzé, o lagarto ou a tartaruga que venha a pousar o olhar sobre nós e, assim, falar conosco.

POR RODOLFO PISKORSKI – Ensaísta e tradutor, cursa Letras na UFSC

Fonte: Zero Hora

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