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Tão linda e serena e bela

27 de maio de 2009
3 min. de leitura
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Em uma de suas mais belas poesias, Mario Quintana (1906-1994) homenageou a vaca. “Tão linda e serena e bela” foi inspirada nesse animal dócil e pacífico, cuja mansidão de espírito traduz a sabedoria tão esquecida dos homens. A vaca simples como a primeira canção que se fez ouvir no mundo. A vaca natural como o sol a dissipar a névoa das madrugadas. A vaca que nos desafia a razão e nos ensina a simplesmente viver.    

Dos saraus literários de Porto Alegre, pela voz ativista de Rober Bachinski, canta o imortal poeta gaúcho:
 
“Tão linda e serena e bela
e majestosa
vai passando a vaca
Que, se fora na manhã dos tempos,
de rosas a coroaria
A vaca natural e simples
como a primeira canção
A vaca, se cantasse,
Que cantaria?
Nada de óperas, que ela não é dessas, não!
Cantaria o gosto dos arroios bebidos de madrugada,
Tão diferente do gosto de pedra do meio-dia!
Cantaria o cheiro dos trevos machucados.
Ou, quando muito,
A longa, misteriosa vibração dos alambrados…
Mas nada de superaviões, tratores, êmbolos
E outros truques mecânicos!”
 
Mario Quintana estreou na literatura em 1940, com o livro A Rua dos Cata-ventos. Jornalista e tradutor, compôs a partir daí uma obra poética de rara sensibilidade, permeada pela reflexão e pela incessante busca do amor. O poema “Bilhete” bem o traduz:
 
“Se tu me amas
ama-me baixinho.
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
tem de ser bem devagarinho, Amada,
que a vida é breve
e o amor mais breve ainda.”
 
Em outro significativo poema, “As coisas”, Quintana acena para a reconstrução do nosso olhar perante a natureza e tudo que a cerca, sempre atento àquilo que a habita:
 
“O encanto
sobrenatural
que há
nas coisas da natureza!
No entanto, amiga,
se nelas algo te dá
encanto ou medo,
não me digas que sejas feia
ou má,
É, acaso, singular.
E deixa-me dizer-te em segredo
Um dos grandes segredos do mundo:
– é simplesmente porque
Não houve nunca quem lhes desse ao menos
um segundo
olhar.”
 
 
Também poeta das utopias, Mario Quintana acreditava na possibilidade de mudanças. Na capacidade de regenerar o olhar humano. A utopia – ele bem sabia – confunde-se às vezes com o próprio sentido da nossa existência, tornando-se a estrela guia de um longo caminhar:
“Se as coisas são inatingíveis… ora!
não é motivo para não querê-las…
Que tristes os caminhos, se não fora
a mágica presença das estrelas!”
 
Por três vezes Quintana tentou uma vaga na Academia Brasileira de Letras. Sendo ele avesso à politicagem, pelas três vezes não foi escolhido. Tempos depois, ao ter assegurado que enfim seria eleito na quarta tentativa, recusou gentilmente ao convite. Seu lugar, decerto, não era ali, mas junto ao povo que imortalizou seus versos.
 
Vale recordar, a propósito, um trecho do consagrado “Poeminha do Contra”:
 
“Todos estes que estão aí
atravancando o meu caminho
Eles passarão
e eu passarinho…”    
 
Poeta filósofo, Mario Quintana deixou-nos lições inesquecíveis sobre a vida, o amor, sobre o existir, sobre o mar, sobre amar, sobre o amor, sobre o amor que ama o mar, sobre o caminhar, sobre a dor e o amor, o anoitecer, sobre a expressão do amor, sobre a vida, tão linda e serena e bela, e o amor que se confunde com a vida:
 
“Amigos não consultem os relógios
quando um dia eu me for de vossas vidas…
Porque o tempo é uma invenção da morte
Não conhece a vida – a verdadeira –
Em que basta um momento de poesia
Para nos dar a eternidade inteira.”

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