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A história de Sílvia e Marcos Pompeu que dedicam suas vidas a cuidar de animais

6 de maio de 2009
6 min. de leitura
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Eles nunca viveram na Savana africana. Tiveram sua natureza castrada pelos maus tratos dos tempos de circo, abandonados quando não serviam para o picadeiro. Os 13 leões e leoas que vivem num santuário ecológico em Cotia, região metropolitana de São Paulo, compartilham essa origem.
Barú foi descartado ainda filhote e mantido por um guarda rodoviário a espera de um abrigo adequado. Seu companheiro Will não teve a mesma “sorte”. Viveu 13 anos numa pequena gaiola, num circo no Rio de Janeiro, até ser resgatado e levado ao santuário, em 2006. Foi quando ele pode pisar na terra pela primeira vez na vida. Correu e rolou o corpo pela grama como um gatinho de estimação. Por um momento, deve ter se esquecido de que teve as garras arrancadas e os membros atrofiados pela vida em cativeiro.
Para Silvia e Marcos Pompeu, idealizadores do Santuário Ecológico Rancho dos Gnomos, esses leões não perderam a majestade. Tornaram-se marca registrada da entidade. O rancho é um dos três mantenedores de fauna no país reconhecidos pelo Ibama aptos a receber esses grandes felinos. Mas eles não são os únicos moradores.
Outros 370 animais, domésticos e silvestres, vivem nos 35 mil metros quadrados de área do santuário. Entre eles, bichos-preguiça, bugios, macacos-prego, veados, araras, jabutis, cães, gatos e até um tigre-de-bengala.
O objetivo da entidade, organização não governamental desde 2000, é atender todo tipo de animal necessitado, de qualquer parte do país, dando apoio a instituições como o Ibama e a Polícia Ambiental. “Já chegamos a ter 2.500 animais”, conta Marcos. A maior parte das ocorrências que chegam ao Rancho deve-se a tráfico e apreensão em residências, seguida de desmatamento e queimadas.
Silvia e Marcos não são ambientalistas por formação, mas dedicam a vida ao santuário ecológico. Uma dedicação que vai do café da manhã ao jantar e toma, muitas vezes, madrugadas de sono. Há 17 anos, o rancho também é a morada dos Pompeu, que fizeram do nome do local uma homenagem aos gnomos, figuras tidas como protetoras da natureza. Na verdade, a história de vida do casal nunca apontou para o caminho que segue hoje. Foi uma surpresa para a família, amigos e para eles próprios. Jovens urbanos, não tinham contato próximo com a natureza e nem sonhavam com uma aproximação. “Eu tinha alergia de tudo, de capim, da terra, do pernilongo, da muriçoca, da borboleta…”, relembra Silvia, aos risos.
O espaço que hoje é o rancho já foi o sítio da família de Silvia, que era usado como depósito para coisas velhas e sem uso. Depois de anos, em 1991, recém-casada, Silvia voltou ao antigo sítio apenas para abarrotá-lo com os últimos pertences do apartamento, para que pudesse se mudar com o marido para os Estados Unidos, onde sua família já vivia.
Mas o que deveria ser uma despedida virou uma decisão para toda a vida. “Nós viemos trazer umas tralhas e acabamos ficando com elas”, conta Silvia. Apesar do estranhamento diante do pedido da esposa para ficar, Marcos aceitou naquela noite – e por muitas outras. “Estava acontecendo uma transformação muito grande, mas ainda não conseguia identificar qual era”, diz Silvia. Por dois anos, ela se “internou” no sítio, tempo que lhe permitiu descobrir como lidar com a terra e com os bichos.
O ponto de partida foi uma cabra prenha que Marcos comprou. De uma, o casal passou a cuidar de 40 cabras. Vieram também cachorros abandonados ou feridos recolhidos na beira da Rodovia Raposo Tavares, que leva à região onde se localiza o rancho. A decisão de acolher os animais veio certeira depois que Silvia e Marcos participaram de um congresso no Memorial da América Latina, em São Paulo, e descobriram a realidade dos maus tratos contra animais. “Pensei: isso não existe, não é possível.
Era um mundo que eu realmente desconhecia”, relembra Silvia. A agitação do trabalho no sítio deu lugar a um sentimento de depressão. “Foi exatamente aí que nós decidimos fazer alguma coisa”, conta ela.
Refeito o fôlego, o casal passou a buscar informação, ir a todos os congressos possíveis e não parou mais. A ligação de um amigo, da ONG Ipab – Instituto de Proteção aos Animais do Brasil, propôs mais um desafio. “Você pode receber uma leoa?”, perguntou ele.
Silvia sempre admirou os felinos, mas jamais imaginou cuidar de um deles. Foram três meses até que decidissem receber Tacha, como ela passou a se chamar assim que chegou ao rancho, em 1994. Ela tinha pouco menos de 11 meses e havia sido vendida por um circo a uma família que morava num sobrado no bairro da Aclimação, em São Paulo.
A leoa cresceu mais do que seus donos imaginavam e decidiram doá-la a alguma instituição. Debilitada pela alimentação inadequada, Tacha viveu por mais três dias apenas. Bartô, o segundo leão a chegar, dois anos depois, conseguiu sobreviver e continua no rancho até hoje. Ele foi comprado ainda filhote por um fotógrafo que o utilizava para tirar fotos de crianças. Para isso, queria mantê-lo “criança” também o quanto pudesse, alimentando Bartô com apenas um copo de leite por dia, para retardar seu crescimento.
Esse foi só o começo. De lá para cá, acumularam-se histórias de chocar. A de Gaya é considerada símbolo de crueldade. Entre outras agressões sofridas, a leoa teve seus caninos serrados na base, o que lhe rendeu graves infecções, complicações de saúde e, por fim, a perda de duas de suas presas. Em 2003, duas leoas, Biná e Hera, e o leão Lupam foram apreendidos pela Polícia Ambiental. Estavam presos numa pequena e enferrujada carreta-jaula, abandonada em plena praça pública na cidade de Sumaré, SP.
No mesmo ano, o órgão apreendeu outras duas leoas, Agna e Kiara, encontradas numa pequena gaiola com a porta soldada em Jundiaí, também em São Paulo. “Minha maior alegria foi poder desmanchar essas carretas”, disse Marcos, apontando para a única que restou, para ser mostrada em atividades educativas.
Darshan, o último leão a dar entrada no rancho, em 2006, foi doado a um frigorífico em Cariacica, ES, em troca de pedaços de carne. Desativado, o local continuou servindo de morada para o leão por 13 anos. Hoje, Darshan é o maior felino do rancho. Seus 300 quilos contrastam com a leveza com que caminha para atender carinhosamente ao chamado de Marcos.
Sua boa forma, assim como a dos outros leões e do tigre-de-bengala, é mantida com uma média de seis quilos de carne por dia. A verba para manutenção vem da parceria com uma empresa, de “sócios” do rancho – qualquer pessoa que queira colaborar mensalmente com um valor fixo – e de doações eventuais.
Mas essas fontes cobrem apenas 40% dos gastos totais, que incluem o pagamento de 14 funcionários. O restante se acumula até que se consiga um novo parceiro. “É um milagre diário”, diz Silvia.
Por conta da limitação dos recursos, neste ano foi necessário frear o ritmo daquilo que Marcos considera o “coração do rancho”: as atividades de educação ambiental. Eles recebem grupos de crianças de todo o Brasil para conscientizá-las sobre maus tratos contra animais. “São as três horas que nós temos para mudar a realidade de fora. É a nossa chance”, ressalta Silvia.
No futuro, o casal pretende ampliar esse trabalho. “Queremos transformar o Rancho num grande laboratório de como é possível viver em harmonia com outros seres, sem degradar, de maneira simples, reciclando o que você consome, respeitando outras formas de vida”, diz Silvia. Em suma, um laboratório do bem.
Fonte: Revista Globo Rural

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