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Uma brevíssima reflexão sobre veganismo e budismo

4 de abril de 2009
Paula Brügger
10 min. de leitura
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Que o budismo é uma tradição religiosa que prima pela compaixão por todos os seres não é novidade. É também bastante conhecida a existência de paralelos entre muitos de seus ensinamentos e conceitos científicos oriundos da Física Quântica [1] e outras áreas do conhecimento ocidental, como o de physis [2] e o de self [3]. No que tange à problemática ambiental – campo de discussão que deve incluir nossa relação com os animais não-humanos – um aspecto muito interessante a destacar é que os paralelos entre tais preceitos religiosos e os conceitos apontados desvelam, entre outras questões, os limites de nossa percepção fragmentada sobre tudo e nos remetem a uma cosmovisão na qual todos os fenômenos são manifestações do que podemos chamar de “Ser” (o filósofo Martin Heidegger, por exemplo, diz que a physis é a revelação, a manifestação do Ser). Essa cosmovisão, chamada por alguns de holística, sistêmica ou, ainda, ecológica, nos leva a uma percepção do universo como um todo dinâmico cujas partes se encontram inextricavelmente inter-relacionadas e que inclui cada um de nós: plantas, rochas, animais humanos e não-humanos etc. As interconexões entre esses diferentes caminhos do conhecimento – religioso, filosófico e científico – mostram, portanto, um grau de consiliência [4] fascinante. E uma das conclusões inevitáveis disso tudo é que mesmo quando admitimos a existência de diferentes paradigmas – lentes através das quais vemos o mundo e lidamos com nosso entorno – cada paradigma é marcado por um conjunto de valores que se traduz numa sucessão de pensamentos, os quais, por sua vez, mantêm nossa visão dicotômica e fragmentada sobre tudo. Esse véu de idéias (Ideenkleid, como diria o filósofo Herbert Marcuse) e pensamentos nos impediria de alcançar esse estágio mais elevado que, entre outras denominações, recebe esta:  meditação [5]. É interessante destacar que Aristóteles também afirmava que a mais elevada capacidade humana era a da contemplação (nous), cuja principal característica é que o seu conteúdo não pode ser reduzido a palavras (ou à razão). E palavra e pensamento são inseparáveis. Tudo isso adquire uma importância ainda maior para os que tecem suas trajetórias de vida e suas formas de sentir o entorno a partir de experiências no plano intelectual.

Do budismo ao veganismo: a questão dos “remédios”

Para a prática da meditação – a qual seria um caminho para atingir essa plenitude, esse estágio atemporal, um “não-lugar” no qual o self se dissolve num todo maior – existem alguns “remédios”, ou elementos facilitadores, de acordo com o budismo. Vou me limitar a citar três deles [6]: a compaixão, o compromisso e a prece. Muitas pessoas acham que as motivações de natureza ética são totalmente diferentes das de origem religiosa ou espiritual. Mas eu não penso que isso seja verdade necessariamente. Se uma motivação de ordem ética, por exemplo, tem por objetivo uma re-ligação com o entorno (a palavra “religião” vem de religare), ética e religião se encontram. É claro que excluo aqui quaisquer formas de fundamentalismo, inclusive as de origem acadêmica. Desse modo, dois dos remédios citados antes têm tudo a ver com o veganismo: a compaixão – a capacidade de se colocar no lugar do outro e com-partilhar seu sofrimento (e isso se constitui num rompimento da barreira do self) e o compromisso. O veganismo – além de sua qualidade ética inquestionável de ser uma proposta de conduta que inclui a “com-paixão” – obriga seus praticantes a um compromisso diário, a uma vigilância permanente todos os dias, e em todos os momentos do dia, uma vez que vivemos numa cultura marcada pelo especismo. O uso de animais não-humanos está presente nos mais variados processos produtivos, práticas culturais e hábitos arraigados em nossa cultura. E o sofrimento deles é banalizado, “naturalizado” e colocado como algo inquestionável, não como fruto de uma dada relação com o entorno ou, por que não dizer, com a physis. Ao postular a libertação dos animais não-humanos por meio da abolição de todas as formas de exploração que lhes são impostas pelos humanos, a prática do veganismo [7] ajuda a construir comportamentos guiados pela consciência e não pelos sentidos. Por exemplo, na dieta [8] vegana estão excluídos todos os ingredientes de origem animal, como ovos, laticínios e mel (e qualquer tipo de carne, evidentemente), além de itens que contenham ingredientes de origem animal. No que tange ao vestuário, não se admite o uso de couro (ou qualquer outro tipo de pele), lã ou seda. E, no geral, quaisquer produtos/itens que tenham sido testados em animais ou que contenham ingredientes de origem animal (por exemplo, cosméticos, alimentos, produtos de limpeza, artefatos de decoração, etc). O princípio abolicionista exclui também a compra de animais de estimação, o uso de animais para esportes ou diversão, a vivissecção, etc. Ser estritamente vegano é quase impossível, pois nossa sociedade usa derivados de animais nos mais diversos setores produtivos, como destacado antes. Mas isso não nos faz esmorecer. Quanto mais nos informamos, mais percebemos a importância de nosso agir ético devido às suas conseqüências benéficas para os animais não-humanos e para o resto da biosfera. E quanto mais nos informamos, tanto mais percebemos que tudo pode ser modificado: ideários, processos produtivos, sentimentos. A violência para com os animais não-humanos e sua banalização (os matadouros são, talvez, a mais evidente expressão dessa banalização) são apenas uma faceta de um estado de coisas baseado na violência, cuja origem está em nossas mentes. O veganismo deve ser visto, portanto, como uma forma privilegiada de praticar o budismo no quotidiano, já que requer a aplicação constante de dois remédios prescritos: a compaixão e o compromisso, além de ser um caminho seguro para a não-violência.

Quanto ao terceiro “remédio”, a prece…

Preces podem assumir as mais variadas formas – como os mantras [9] – e  se constituir num atalho para a ruptura da cadeia de pensamentos sucessivos que turva nossa percepção do todo. A prece pode ser então uma via de re-ligação com o entorno. Mas pode também ter um efeito contrário, quando se torna a principal forma de buscar um agir mais ético. Isso, de certa forma, também acontece no meio acadêmico no qual as teorias podem se transmutar em fundamentalismos e paralisar as atitudes e outras questões de ordem prática.

Uma história que ouvi no Tibet

Entre as muitas histórias que ouvi sobre o budismo, quando de minha visita a Lhasa, uma, em especial, se destacou. A história fala de um homem que ao empunhar um facão para matar um bode ouviu a voz de outro bode que lhe disse: “Por favor, não faça isso. Este animal é ainda muito novo. Se queres ou precisas matar um de nós que seja eu, que já estou velho e já vivi o bastante”. Ao perceber o sentimento de compaixão do animal  que ofereceu sua própria vida para salvar a do outro, o homem se deu conta da crueldade de seu ato e se atirou do alto de um penhasco. Durante sua queda, contudo, foi amparado nos braços de uma divindade que salvou sua vida. Mas o mais interessante da história vem agora. Consta que, ao tomar conhecimento do sucedido, um monge ficou indignado por achar que aquele homem não era merecedor de tal compaixão e, assim, resolveu se atirar – ele também – do mesmo penhasco, a fim de ser igualmente salvo. Sua expectativa, entretanto, foi frustrada e o monge se esfacelou no solo. Muitas são as interpretações possíveis dessa e de outras narrativas. Uma primeira conclusão possível é a de que o monge errou ao haver feito um pré-julgamento. Mas quando ouvi a história, não pude deixar de pensar que rezar – que é uma atividade central na vida de um monge – pode ser bom, mas não é o único nem o melhor caminho para a espiritualidade ou um comportamento eticamente correto. Rezar ou participar de práticas religiosas não garantem uma preparação para um agir ético no mundo real [10]. Mais vale uma mudança de atitude real do que o eterno e estéril encastelamento em rezas e teorias que não mudam o mundo na prática. Muitas pessoas rezam, de fato e de vez em quando,  mesmo sem professar uma fé de forma explícita. Isso me faz lembrar a famosa frase de Oscar Wilde que diz que o “ceticismo é o começo de uma fé”. Na dúvida respondo: viva o veganismo. Digo isso porque, para quem o pratica, não se trata de uma opção estética.  É uma questão de dever. E, com certeza, um caminho seguro para tratar os animais não-humanos como sujeitos de suas vidas e não como meios para satisfazer nossos propósitos terrenos. Os animais não-humanos são nossos companheiros de jornada no planeta Terra. Não nos vemos como parte da natureza devido à predominância de uma visão fragmentada de mundo e uma tradição religiosa [11] na qual predomina o antropocentrismo. Mas é preciso entender que isso não é “natural”. Trata-se de uma construção, de uma lente através da qual nos relacionamos com o entorno, que precisa ser mudada.

Notas:

[1]: O autor que mais popularizou essa conexão foi o físico Fritjof Capra (sobretudo em “O Tao da Física”). Mas veja também Werner Heisenberg e Albert Einstein.

[2]: No que tange ao conceito de physis, veja, por exemplo HEIDEGGER, Martin. Introdução à Metafísica. 2ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969. Entre outros significados, o conceito de physis pode ser correlacionado ao conceito de entorno ou meio ambiente que perdurou na Grécia antiga até mais ou menos o século V a.C. Veja, por exemplo, GONÇALVES, Carlos W.P. Os (des)caminhos do meio ambiente. São Paulo: Contexto, 1989. Mas Heidegger nos adverte que essa palavra fundamental, com a qual os gregos designavam o ente, sofreu uma distorção em seu conteúdo originário com a sua simples tradução para ‘natureza’. Isso acabou confinando a palavra physis a um significado unicamente físico.

[3]: O conceito de self é muito polissêmico. Um dos sentidos, de forma muito resumida, seria o de dar identidade ao sujeito “eu”, em oposição ao que seria “o não eu”, ao objeto, à totalidade que está (aparentemente) fora de cada um de nós. Veja também o conceito de self  na teoria da psicologia analítica de Carl Jung.

[4]: De acordo com a Wikipédia, consiliência é a união de conhecimentos e informações de distintas disciplinas para criar um marco unificado de entendimento. A consilência nos remeteria aqui, então, a uma imagem de fusão ou anastomose entre os conceitos discutidos.

[5]: Referência à palestra “Meditação no budismo tibetano” (Espaço Amitaba, Florianópolis, 19/04/08), proferida por Lama Tsering Everest, cujos argumentos se alinham na direção aqui apontada.

[6]: Estes foram os três “remédios” prescritos por lama Tsering Everest na palestra indicada na nota anterior. Tais remédios seriam tanto caminhos para a prática do budismo quanto meios de tentar driblar formas tipicamente humanas de lidar com o mundo, como a sucessão de pensamentos por meio dos quais tentamos decifrar a realidade que nos cerca.

[7]: Para mais informações visite: www.guiavegano.com; www.svb.org.brwww.vegetarianismo.com.br; www.sentiens.net.

[8]: No filme The Matrix (o primeiro), há duas passagens bastante emblemáticas no que tange aos nossos hábitos alimentares. Uma delas mostra o que os heróis do filme – semideuses para nossos padrões físicos e mesmo morais – usam na sua alimentação: uma massa nutritiva saudável, mas pouco atrativa. Em outra passagem, no mundo da Matrix, o personagem que trai a causa escolhe um suculento filé para o jantar em que ele negocia as condições de sua traição.

[9]: De acordo com a Wikipédia a palavra mantra, do sânscrito, é formada pelo prefixo man- pensar (também manas, mente) e o sufixo -tra, que significa ferramenta. Uma tradução literal seria algo como “instrumento do pensamento (ou mente)”. Outra explicação para o sufixo –tra é “proteção”. Alguns falam ainda em “libertação da mente” como significado.

[10]: Essa crítica também se encontra presente no belíssimo filme Samsara (2001), de Pan Nalin.

[11]: Vários autores afirmam que a tradição religiosa que predomina no Ocidente – a judaico-cristã – é fortemente marcada pelo antropocentrismo. Veja, entre outros, Gonçalves, citado na nota 2.

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