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Antropólogos, antropófagos e antropocentrismo

8 de março de 2009
Paula Brügger
6 min. de leitura
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A epistemologia mais recente sustenta que todo conhecimento é metafórico, embora isso não implique, absolutamente, em sua neutralidade axiológica (política, ética etc.). Assim, apesar de louvável, não existe essa prerrogativa de um cientista – seja ele antropólogo ou não – “entender, sem aprovar ou condenar” diferentes pontos de vista sobre determinados assuntos. Mesmo que o pesquisador consiga expurgar pré-noções e preconceitos que influenciam diretamente no seu “objeto” de estudo, o ideal de neutralidade estará comprometido porque sempre haverá uma visão de mundo maior que orienta o olhar do pesquisador. É, no mínimo, como diz Cassirer: “todo conhecer teórico parte de um mundo já enformado pela linguagem e tanto o historiador, quanto o cientista, e mesmo o filósofo, convivem com os objetos exclusivamente ao modo como a linguagem lhos apresenta”. Portanto, crer em descrição objetiva ou neutra da natureza é estar preso à metáfora positivista. É nesse mais profundo sentido que se pode dizer que todas as ciências são humanas. E, como sabemos, a maior parte do conhecimento que construímos é dominado por uma visão de mundo antropocêntrica.

Concordo plenamente que as civilizações que atribuíam um valor positivo à caça, guerra ou canibalismo tenham sido destruídas, juntamente com seu entorno, por civilizações que pregavam a compaixão e outros valores supostamente nobres (excluo o termo “humanitário” por ser mais uma expressão do especismo, já que se atribui um valor positivo ao que se assemelha à conduta humana). De fato, há uma destruição sem precedentes de ordem gen(ética), étnica etc. Mas será essa destruição provocada pela afirmação de valores como amor, compaixão, ou respeito às diversidades, ou precisamente pelo seu descumprimento? Também concordo que as primeiras denúncias contra a farra do boi que tiveram início nos anos 1980 – e alcançaram visibilidade nacional – partiram sobretudo de interlocutores “não nativos”. Mas discordo que não houvesse ninguém daqui que fosse contra a farra. Até hoje, muitas pessoas não protestam abertamente contra ela por medo de represálias por parte de alguns farristas truculentos, e não por concordarem. Dizer, também, que nas festas bárbaras a dor e a violência são explícitas tampouco é verdade. Ainda este ano ouvi de uma amiga – professora numa dessas cidades onde as farras ocorrem de forma mais ostensiva – que, indagadas sobre a possibilidade de o boi sofrer ou sentir medo, os farristas responderam: “Medo, o boi? Não! Quem tem medo é a gente”. Ou seja, não há percepção do sofrimento do animal ou, se há, isso é banalizado da mesma forma que banalizamos outras formas de sofrimento. Não é à toa que recentemente houve uma tentativa de chamar a farra de “brincadeira” (e não “violência”) do boi. Não procede, portanto, afirmar que o sofrimento seja explícito nesses contextos, embora também seria leviandade dizer que todos os farristas são maus ou sanguinários.

Os contextos culturais mudam, é verdade, mas a ignorância é a mesma – é tudo especismo – embora em muitos casos não seja o especismo elitista (discriminação geral contra os não-humanos) e sim o do tipo que admite o sofrimento de alguns animais e não outros. Este é certamente o caso dos “rebanhos imolados em aras do culto ao espeto” que o professor Sáez menciona (e nisso, eu concordo) – tão bem expresso na frase “Animais: se você ama uns, por que come outros?” A mesma falta de clareza de pensamento permite a continuidade de outras práticas bárbaras como a vivissecção. Vale lembrar ainda – para mostrar o quão frágil é o argumento de que nas sociedades “civilizadas” há uma atitude cínica no que tange à violência – que muitas pessoas que não têm conhecimento do sofrimento infligido aos animais não-humanos em diferentes processos produtivos e outros contextos, mudam seus hábitos e opiniões ao assistirem filmes como Terráqueos ou A carne é fraca. Outros não. Continuam com seus hábitos predatórios, ou mudam apenas aqueles que não implicam nenhum esforço. São os que, cientes ou não, advogam em causa própria ou, no máximo, militam em lutas que não atentam contra seus prazeres hedonistas. Mas isso não é agir de forma ética.

Devo ainda dizer que, se todos fôssemos veganos, ainda causaríamos mesmo alguma destruição, pois é impossível viver ex nihilo. Mas tenha certeza de que essa mudança de valores e comportamento – somada a muitas outras – diminuiria sobremaneira nossa “pegada ecológica” e aumentaria muito a “capacidade de suporte” do planeta. No plano ético, então, as mudanças para melhor seriam incomensuráveis.

Embora o professor Sáez diga que não está tentando desculpar algo ruim pelo motivo de que há algo pior, a argumentação pautada pelo relativismo, nestes casos, não permite outra interpretação. Concordo que tais questões são complexas e por isso mesmo não penso que haja a dicotomia antropófagos sanguinários em terras paradisíacas versus culturas que pregam a compaixão, mas praticam o oposto. O fato é que a nossa sociedade industrial se desenvolveu unicamente no plano técnico. Eis o cerne do problema: trocamos tacapes por pentiuns. No plano ético pode-se dizer que somos até mais atrasados que os povos caçadores-coletores, já que podemos prescindir de muitas “maldades” que tais povos “primitivos” (sic) são obrigados a perpetuar por motivos de sobrevivência. A continuidade da “violência colateral, especializada e mais eficiente” mencionada é o resultado não apenas de diferenças de percepção no que tange à dor do outro, mas sobretudo ao avanço de uma técnica cada vez mais sofisticada e desprovida de preocupações de ordem ética. É como diz Marcuse, “a luta pela existência e a exploração do homem e da natureza se tornaram cada vez mais científicas e racionais”. Esse fato é reconhecido até mesmo em letras de músicas de rock, como em Zooropa (da banda U2). Nessa melodia, tensa e melancólica, aparecem frases em tom sarcástico como “we’re mild and green, and squeaky clean”…

Sim, é mais provável que a “farra” desapareça devido ao aumento da especulação imobiliária e não pela militância, assim como o fim da caça às baleias-azuis se deveu muito mais à sua inviabilidade econômica do que aos protestos de ambientalistas. Talvez seja uma postura ingênua, e quiçá até quixotesca, essa de teimar em me insurgir contra as maldades institucionalizadas de forma explícita ou não. Mas ainda prefiro ser uma voz dissonante no meio da multidão furiosa, do que me sentar na varanda e assistir à banda passar tecendo considerações pretensamente livres de juízos de valor sobre um planeta que vai ladeira abaixo. O que é o famigerado relativismo? O conhecimento pelo conhecimento? Como nos adverte o casal Greek (antivivisseccionistas), “o conhecimento pelo conhecimento (…) é o último refúgio do cientista louco”. Se tudo é relativo, não vale a pena lutar por nada. Isso sim, me parece hipócrita e mesmo mórbido.

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