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Da autoconsciência e da senciência – Parte 1

17 de março de 2009
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Que animais sentem dor e são dotados, em diferentes graus, de senciência, é uma questão virtualmente consensual entre estudiosos e debatedores da questão animal. Uma outra questão, bem mais controversa, diz respeito à existência de autoconsciência e o papel que esta exerce na atribuição de direitos aos animais. Neste debate evidencia-se como em muitas circunstâncias o bem-estarismo está muito mais próximo do onivorismo que do abolicionismo, e acaba por fim servindo como força auxiliar do onivorismo, em vez de contribuir, como eles alegam, como uma via realista, reformista, incremental para a abolição da exploração animal.

O conceito de autoconsciência e seu papel-chave no debate sobre os direitos animais está ligado, principalmente, ao filósofo australiano Peter Singer, autor do livro Libertação Animal (1975), que se tornou um marco e uma referência para o debate contemporâneo sobre os direitos animais.

Um dos argumentos centrais da filosofia de Singer é que o dano que se causa a um ser é tanto maior quanto maior for seu grau de autoconsciência. Por autoconsciência entende-se a capacidade do indivíduo de perceber-se com um ser existente, consciente de sua individualidade e de sua presença no mundo, portanto capaz de mensurar os danos que sofreria ao ter sua vida extinguida. Para Singer, existem diferentes graus de autoconsciência, e a vida de um animal com elevado grau de autoconsciência tem mais valor quando em confronto com a vida de um animal com grau menor de autoconsciência. Pelo mesmo motivo, Singer alega que a morte em si não é necessariamente um dano à maioria dos animais não humanos, mas principalmente os sofrimentos infligidos aos animais quando vivos (ele abre exceção a essa regra no caso dos primatas superiores).

Singer advoga que, no tratamento dos animais não humanos, deve-se aplicar o princípio da igualdade de consideração de interesses, isto é, que interesses iguais devem ser tratados de formas iguais. Porém, se houver conflito de interesses iguais, prevalece o interesse daquele ser dotado de maior autoconsciência. O interesse de um animal não-humano pela vida deve ser considerado na mesma medida que o interesse de um ser humano pela vida, mas não ser equiparado.

Conclui-se daí que:

1.   O ser humano tem o direito de usar animais quando os benefícios que ele pode extrair disso superarem os danos causados aos animais não humanos, no caso de estar na balança os interesses básicos de ambos.

2.   Uma morte indolor, pelo sistema ético de Singer, é moralmente aceitável contanto que se tenham observado todos os requisitos para que o animal não humano tenha tido uma vida plena enquanto ainda vivo.
Por este motivo Singer não advoga publicamente contra a vivissecção e, embora afirme que a criação de animais para abate não se aplica ao item 1 (mas sim a vivissecção), ele defende a adoção de reformas bem-estaristas como meio de preencher os requisitos exigidos pelo item 2. Singer se torna, portanto, o mentor do bem-estarismo contemporâneo e fornece amplos subsídios para a defesa do onivorismo. Os bem-estaristas se comunicam em termos muito parecidos, enquanto os onívoros simplesmente se contentam em defender as medidas de bem-estar sem levar em consideração o princípio singeriano da igualdade de consideração de interesses: jamais o interesse do ser humano pelo bife prevalece, dentro desse princípio, sobre o interesse do boi pela vida.

Embora aparentemente muito lógica, e até sedutora, a filosofia de Singer apresenta muitas e perigosas lacunas. Ao dar tamanha centralidade à autoconsciência, Singer abre caminho para a desvalorização da vida daqueles seres humanos definidos como “não-paradigmáticos”: recém-nascidos, pessoas com problemas cognitivos. Por não serem capazes de se perceber como indivíduos no mundo, fazer planos e projetar-se no futuro, suas vidas são menos valiosas no sistema filosófico de Singer. Desse modo, ele alega que o infanticídio de um recém-nascido é um crime menos grave que o assassinato de um ser humano adulto. Não é muito difícil supor os efeitos deletérios que tal filosofia pode ter, mesmo que não seja a intenção do seu autor. Ela serve para respaldar a eugenia e o extermínio de seres humanos com problemas cognitivos, como era preconizado pelos nazistas.

Um outro problema do conceito de Singer para autoconsciência é a falta de um critério objetivo para a sua determinação. Um exemplo de experiência que costuma ser citado para determinar o grau de autoconsciência de um animal é o do reconhecimento no espelho. Bebês adquirem autoconsciência quando reconhecem sua imagem refletida no espelho. Animais não humanos, da mesma forma, serão autoconscientes se forem capazes de reconhecer-se na imagem refletida que têm diante de si. Alguns animais que têm essa capacidade descrita são, além dos primatas superiores (chimpanzés, gorilas, orangotangos), os golfinhos e os elefantes.

Entretanto, o teste do espelho carece de objetividade e padece de antropocentrismo: supõe que só existe autoconsciência quando ela for semelhante à do ser humano. Não obstante, é sabido que, diferentemente do que acontece com seres humanos, muitos animais não têm a visão como o sentido mais importante para a sobrevivência e comunicação. Muitos animais reconhecem uns aos outros pelo olfato, e nos faltariam subsídios para determinar a presença de autoconsciência nesses casos. Supor que um animal não humano não é autoconsciente por não saber distinguir fisionomias é tão arbitrário quanto supor que o ser humano não é autoconsciente por não saber distinguir o próprio odor do odor exalado por outros de sua espécie.

A questão, porém, é mais profunda que isso. O conceito de autoconsciência é falho e limitado porque sequer explica por que a vida humana deve ser respeitada, uma vez que, como vimos, ela desvaloriza a vida de seres humanos não paradigmáticos. Outro critério deve, portanto, ser encontrado.

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